domingo, 30 de agosto de 2009

Como é que ensino filosofia? Parte 4



O trabalho ao longo do ano exige alguma diversificação de estratégias. Normalmente não opto nem por trabalho de grupo, pelo menos no sentido habitual, nem por recursos extra aos textos de filosofia, como filmes, literatura, artes ou outros. O meu estilo de leccionação direcciona o trabalho todo em torno da discussão activa e da leitura activa dos textos. Nigel Warbuton tem um livro muito pequeno (nem 100 páginas tem), Philosophy: the essential study guide, (Routledge, 2004) que tem funcionado como um excelente guia para as minhas aulas. Segundo Warburton o trabalho de estudo em filosofia tem 4 componentes principais:


Leitura activa


Escuta activa


Discussão activa


Escrita activa


Identificamo-nos facilmente com estas 4 palavras: ler, Ouvir, discutir e escrever. Mas é na palavra “activa” que se estabelece a diferença específica do estudo filosófico. E tal resume-se de modo simples. Por “activa” o autor entende que se pensa no que se está a ler, a ouvir, a discutir e a escrever. È isto que um professor de filosofia pode esperar dos seus alunos, que deixem de ter uma atitude passiva perante os estímulos intelectuais e comecem a pensar seriamente nas coisas. Não vou aqui recensear o pequeno e útil livro de Warburton, mas é uma leitura muito boa para professores já que o autor dá exemplos práticos mostrando diferenças essenciais no trabalho de estudo em filosofia, por exemplo, com exemplos práticos, o autor mostra a diferença entre um trabalho plagiado do que se leu e um trabalho original. E mostra-o a vários níveis de desenvolvimento, isto é, desde o plágio descarado, passando por níveis intermédios de mescla entre o plágio e o original, até ao texto original.


Não podemos pedir aos nossos alunos que logo no primeiro teste sejam completamente originais e sustem bem as suas teses. É precisamente para isso que os estudantes estudam filosofia como formação geral no secundário. Temos 2 anos para ensinar os alunos a pensar pela sua própria cabeça e não faz sentido esperar que eles consigam fazer isso logo no primeiro período do 10º ano. Sobretudo há que ter consciência que os alunos progridem a ritmos muito diferentes uns dos outros. Alguns colegas dizem logo que fazem os testes diagnóstico que notam que os alunos não são capazes de raciocinar filosoficamente. Mas não há nada de espantoso nisto já que nós estamos nas escolas precisamente para lhes proporcionar essa ferramenta, a do pensamento autónomo.


A ideia de que um aluno pode filosofar incorre também em confusões. Muitas vezes há a tendência a pensar que somente os grandes filósofos podem filosofar e aos restantes resta a possibilidade de estudar o que os grandes filósofos pensaram. Podemos compreender a falsidade desta tese se pensarmos nas outras disciplinas: será que um aluno quando está em laboratório de biologia não está a fazer biologia? Se não está a fazer e estudar biologia está no laboratório a fazer o quê? O que ele está a fazer é a compreender as teorias da biologia. Ainda que a um nível muito primário ele está a praticar e a fazer ciência. Por que razão um aluno de filosofia não pode filosofar? Por não ser um filósofo? Mas será que é preciso ser filósofo para fazer filosofia ou pensar filosoficamente? Não parece que assim seja. As aulas de filosofia existem precisamente para os alunos filosofarem. E podemos estar descansados que nenhum aluno vai roubar o estatuto a Hegel ou Kant.


O ensino tem valor pois dá as ferramentas aos mais jovens para compreenderem o funcionamento do mundo. Das melhores versões de compreensão do mundo que os seres humanos inventaram e descobriram são a ciência e a filosofia. Fazer com que as pessoas, especialmente os mais jovens, realizem as suas próprias descobertas, ainda que a níveis muito simples, não é um defeito, mas uma virtude. Qualquer ser saudável é capaz de se dedicar à discussão racional de uma forma organizada. Não se pretende muito mais que isso com o estudo da filosofia.


As aulas de filosofia não existem para dar a conhecer a obra de Ingmar Bergman, Rilke ou Salvador Dali. As aulas de filosofia existem para as pessoas aprender a discutir os problemas organizadamente, ainda que se possam usar os exemplos supracitados. Nem as aulas de filosofia servem para promover os meus gostos pessoais, as minhas preferências religiosas, etc.


As aulas de filosofia podem ser muito estimulantes e diversificadas só com a discussão e leitura activas. Não são necessários mais adereços. Apesar de não trabalhar muito em grupo, tenho no entanto algumas preferências para diversificar as minhas aulas. Gosto, por exemplo, de dar as aulas com powerpoint, pelo menos as mais expositivas. Prefiro o powerpoint aos quadros tradicionais de ardósia, já que detesto o pó largado pelo giz e tenho um pequeno problema: quando escrevo nos quadros de ardósia, como muitas vezes esses estão gastos pelo tempo, canso-me rapidamente no músculo do braço. Por essa razão comprei um netbook de 8,9 “(Asus, eeepc, 901) que me dá muito jeito e tem sido um autêntico companheiro de aulas. Um dos problemas é que nem sempre tenho o projector disponível e aqui é necessário algum jogo de cintura com o funcionário que leva o aparelho à sala de aula. No mercado começam a aparecer projectores portáteis, muito pequenos. Ainda são muito caros (cerca de 300€ para cima), mas talvez num futuro próximo estes projectores venham já incorporados nos computadores portáteis, como passou a acontecer com as webcams.


Ainda assim já me aconteceram imprevistos, como chegar à sala de aula, os estores serem fraquinhos e a lâmpada do projector estar parcialmente gasta, ou seja, não se vê nada. Aqui há que contar com a mudança de planos ou partir para o plano B. Em regra sou muito rápido a decidir estas coisas. Acontece-me com frequência fazer um powerpoint no intervalo de uma aula para a outra, em 15 minutos. Basta passar a aula que tenho planificada para o powerpoint.


No passado investi em alguns filmes e documentários, mas confesso que foram sempre experiências fracassadas, pois não soube muito bem articular o conteúdo desses materiais com o conteúdo filosófico. Talvez seja uma insuficiência minha já que conheci alguns colegas com ideias fantásticas e com experiências notáveis. Mas também é verdade que nunca conheci um professor de filosofia que conhecesse bem a filosofia analítica e o conseguisse fazer sem incorrer em vagueza incompreensível para a maioria dos alunos. A verdade é que nunca conheci muitos professores com alguma formação em filosofia analítica (o que não faz, note-se, de um professor melhor ou pior professor), pelo que tenho de dar aqui o benefício da dúvida. E, depois, claro, conheço aquelas experiências completamente falhadas como a que retratei da Formiga Z, proposta do manual mais adoptado no país para o 10º ano, Pensar Azul, (Texto Editora, 2007). Ver AQUI e AQUI o que escrevi sobre a Formiga Z.


Ao longo do ano é verdade que não diversifico muito as aulas de filosofia (não vou por isso algum dia poder aspirar a ser professor titular). As minhas aulas são simples, directas e têm como preocupação central estimular os alunos a pensar sobre os problemas que proponho para discussão. É verdade que muitas das vezes tenho de me desviar um pouco dos conteúdos e problemas a estudar. Isto acontece particularmente quando tenho turmas de alunos muito calados, que raramente respondem, mesmo quando lhes pergunto directamente alguma coisa. Nestes momentos, que acorrem ocasionalmente durante alguns minutos de algumas aulas, questiono os alunos de como organizam o seu estudo, improviso uns pequenos ateliers na sala de aula sobre metodologia de estudo, proponho objectivos de curto prazo, tipo semana a semana, para os alunos cumprirem e claro que muitas destas vezes a conversa resvala um pouco para os problemas dos adolescentes, das suas angústias pessoais, etc. Sigo duas regras nestas ocasiões: aumentar a auto estima dos jovens promovendo uma ideia de que são mais capazes do que o que pensam (e regra geral penso que é assim mesmo) e, a segunda regra, é a de não alimentar exageradamente estas conversas. A segunda regra resulta da experiência passada. No meu passado profissional detinha-me um pouco a tentar compreender as dificuldades dos jovens, mas comecei a aperceber-me de que quando o faço não ajudo mais os meus alunos do que se lhes ensinar e insistir e exigir deles. Exigir deles e do seu trabalho é também fomentar uma cultura de responsabilidade e rigor. É claro que devemos uma vez mais usar do bom senso e saber interromper a aula para os ouvir. Mas qualquer cedência feita resulta em pedidos de mais cedências, pelo que não devemos pensar que algum dia podemos eliminar por completo alguma tensão que existe entre um professor que exige aos seus alunos e os alunos que querem mais facilidades.


Finalmente, uma sugestão.


As escolas estão atolhadas de horas para distribuir aos professores sem saber bem o que lhes há-de pôr a fazer. Apercebi-me dessa realidade e a verdade é que gasto muito do meu tempo particular a expor dúvidas por mail aos alunos. No início de cada ano apresento projectos à escola nesse âmbito, fazendo incluir esse trabalho no meu horário anual. Por vezes esses projectos são aceites, dependendo das escolas. È uma sugestão que ajuda a rentabilizar o nosso tempo para a nossa disciplina. É que isto de conseguir tempo para trabalhar na disciplina é cada vez mais uma luta já que os últimos governos, especialmente o último conseguiu fazer com que os professores passem a maior parte do tempo nas escolas com tarefas inúteis.


Ainda continua.... amanhã.

2 comentários:

António Daniel disse...

A nossa tarefa será, parafraseando alguém, desbanalizar o banal. O mais difícil de fazer é mostramos um mundo diferente daquele que os alunos estão habituados. Ajudá-los a ir mais além. Por isso considero que ser professor é exercer uma profissão criativa.
Parabéns, o seu texto está muito bom. É com estes exemplos que o nosso ego profissional consegue algum fôlego.

Rolando Almeida disse...

Obrigado Daniel. Ainda tenho mais uns capitulozinhos para publicar :-)
abraço e bom trabalho