A seguir passo a apresentar o meu trabalho de análise aos manuais do 11º ano, de 2008. Vou postando um a um até todo o arquivo estar completo e que pode passar a ser acedido na barra ao lado em “Manuais”. Os textos seguem sem qualquer alteração, tal como foram publicados na altura. É interessante ler alguns comentários. Para tal basta aceder na barra aqui em cima no blog a “Arquivo FES”.
Estamos perante um manual de filosofia que faz a apologia do relativismo, mas fá-lo em forma de disparate e não discutindo racionalmente os problemas apresentando-os aos alunos de forma clara. E isto é aborrecido porque se quero escrever alguma coisa sobre manuais, não posso deixar passar em branco disparates como os que aparecem neste manual. Confesso que uma análise um pouco mais atenta colocaria a nu ainda mais disparates, mas o que a seguir vou apresentar é em número suficiente para deixar completamente de lado um manual como este. É claro que o desejável na crítica de manuais é que ela seja construtiva. Por construtiva não entendo necessariamente elogiosa. Para isso não escrevia crítica alguma. Por construtiva entendo apontar erros fundamentais que habitualmente aparecem nos manuais e que devem ser evitados pelos autores. Um pouco de trabalho por parte dos autores permite eliminar parte substancial desses erros. O manual agora em análise, Em Diálogo (Lisboa Editora) presta um mau serviço ao ensino da filosofia e impõe aos alunos uma ideia falsa do que é a filosofia. Passo então a explicar porquê:
Rolando Almeida
Vou começar por pegar no que em primeiro lugar me faz pensar que este é o manual do relativismo. Ainda por cima defende o relativismo à custa de falsidades, apesar que um manual não deve defender seja que teoria for, sob pena de se tornar doutrinário. Na página 65 aparece um quadro onde se procura diferenciar demonstração de argumentação. Defende-se que a demonstração “ocorre em contexto científico”, ao passo que a argumentação “ocorre em situações da vida corrente”. Por demonstração entende-se ainda o seguinte: “o discurso é impessoal e puramente racional, recorre a linguagens específicas dotadas de rigor e precisão, parte de premissas previamente estabelecidas e apresenta-se como evidente independentemente da aprovação do auditório” ao passo que por argumentação entende-se: “ o discurso é pessoal e contextualizado, podendo apelar para os afectos, utiliza uma linguagem natural, ambígua e imprecisa, parte de premissas discutíveis e questionáveis, é do domínio do verosímil e do preferível e a sua aceitação depende da aprovação do auditório”. Mais tarde, na página 114 diz-se o seguinte: “ por outro lado, o próprio facto de diferentes filósofos chegarem a conclusões muito diversas relativamente a um tema/problema parece constituir razão suficiente para rejeitar a sua pretensão a serem demonstrativos, porque as verdades demonstráveis são objecto de assentimento universal e tal não acontece com as «verdades» que os filósofos pretendem atingir. Acresce ainda que, mesmo quando a pretenderam ignorar, sempre os filósofos recorreram à argumentação com o objectivo de fazerem prevalecer as teses que defendem, o que mais uma vez prova que a sua pretensão à universalidade e à necessidade implica contradições insuperáveis. A partir dos fins do século XIX, novas correntes filosóficas surgiram, reagindo contra uma concepção de verdade absoluta, pondo em questão pretensas evidências e denunciando o carácter subjectivo que o conceito de certeza afinal implica. Os próprios filósofos tomaram consciência de que nem todas as razões são constringentes, sem por isso deixarem de ser razões”. Na página 113 tem um subcapítulo com o título de “Crise do modelo clássico de racionalidade”, para depois, na página 209, se retomar um outro subcapítulo denominado “Crise da concepção clássica de racionalidade”. Creio que os exemplos dados falam por si, mas não seria mesmo melhor fazer um manual no qual se anuncia que a filosofia não faz qualquer sentido em vez da insistência na crise da racionalidade. Para além disso a primeira noção que se dá de argumentação é claramente falsa, nem é verdade a ideia que se dá que a argumentação é subjectiva e a demonstração é científica e objectiva. A demonstração é uma forma de argumentação. O que os autores querem mostrar é a diferença entre lógica formal e informal, ou da dedução e da não dedução. Ora, tanto a ciência com a filosofia usam a lógica, formal e informal, pelo que o que se está a dizer é uma tremenda falsidade. A crise da racionalidade é um momento da filosofia protagonizada em grande parte pelos filósofos e sociólogos pós modernos. Nem faz grande sentido falar em crise da racionalidade aplicada à filosofia, uma vez que tal corresponderia a uma crise da própria filosofia. Ora a diversidade de filosofias não é indicativo de crise de racionalidade, bem pelo contrário. A filosofia faz-se com discussão activa de argumentos, pelo que a existência de uma pluralidade de filosofias indica que elas estão em discussão. Este discurso da crise da racionalidade tem contornos religiosos, no sentido em que se assume que as filosofias absolutas estão em ruptura. Mas aí está a fazer-se uma confusão entre filosofia e absolutismo ou pensamento único, o que não passa de um enorme disparate. Mas vamos avançar que há ainda muito para dizer (e não fica tudo dito).
Na página 17 afirma-se: “quando raciocinamos podemos fazê-lo usando argumentos dedutivos, indutivos ou por analogia. Só os primeiros são susceptíveis de validade formal e, consequentemente, constituem o objecto privilegiado do estudo da lógica”. Isto não é completamente verdade e não é correcto que se ensine assim. Não percebo muito bem porque é que os autores fazem a divisão entre “argumentos dedutivos e indutivos ou por analogia”. Claro que os argumentos por analogia são não dedutivos mas não tem um lugar de maior destaque que as generalizações ou as previsões, por exemplo. Depois não é verdade que os argumentos dedutivos constituam o objecto de estudo privilegiado da lógica. A lógica tanto estuda os argumentos dedutivos como os não dedutivos sem qualquer privilégio. A lógica é basicamente o estudo da argumentação, formal ou informal. E em filosofia argumentamos tanto dedutivamente como indutivamente, tal como em qualquer outro saber. A lógica é a gramática da argumentação. Hoje em dia existe bibliografia suficiente em língua portuguesa para se evitar estes disparates e os autores citam por mais de uma vez Anthony Weston que explica muito bem o lugar da lógica informal na filosofia.
A definição de dedução que os autores oferecem ao aluno é desnecessariamente complexa. Retiraram-na da enciclopédia Logos, quando existem livros em língua portuguesa com definições muito mais rigorosas e adequadas para os alunos. Apesar de me parecer uma má definição, a de Manuel da Costa Freitas, que aparece no manual e que diz o seguinte: “ a dedução abrange deste modo, todo e qualquer movimento em que o espírito desce ou passa não só do género à espécie (homogéneo), mas ainda, e com maior frequência, dos princípios às consequências, das causas aos efeitos, do simples ao composto (heterogéneo)”(p.17). Para além de pouco clara e, parece-me, desadequada, esta definição de dedução, no mínimo, deveria contradizer a ideia que os autores depois dão da lógica dedutiva, de que só se aplica à ciência, uma vez que é uma coisa muito mecanizada.
Mais à frente, na página 18, temos o seguinte texto: “a dedução é um tipo de inferência muito útil se queremos demonstrar a outrem aquilo que sabemos ser verdadeiro ou se queremos descobrir algo que inicialmente não conhecíamos, mas que poderíamos inferir, a partir dos dados que possuímos”. Confesso, mais uma vez, não compreender muito bem o que se está a dizer. É pouco claro e é errado. A dedução permite-nos testar a validade dos raciocínios formais, nada mais.
Na página 19, podemos ler o seguinte: “podemos dizer que a indução corresponde a uma generalização, uma vez que, a partir de casos particulares, se apresenta uma conclusão geral” - Então e uma indução como “Todos os cães que vi até hoje ladraram, logo o cão do Gonçalo vai ladrar”, é uma previsão indutiva, mas parte de uma premissa geral para uma conclusão particular. O que acontece é que a definição de indução dada só se aplica a alguns argumentos indutivos e não a todos, pelo que é ainda uma definição insuficiente.
No capítulo da lógica proposicional (p.48) os autores cometem uma falha inaceitável: confundem premissas com circunstâncias e assim, em vez de dizerem: “há o argumento é inválido, porque existe pelo menos uma circunstância em que a verdade das premissas não é conservada na conclusão” afirmam: “o argumento é inválido na primeira premissa”. Veja-se o que diz o manual: “tanto a primeira premissa como a segunda premissa são verdadeiras em todas as suas circunstâncias, mas, uma vez que a segunda premissa apresenta uma conclusão falsa, o argumento é inválido, independentemente de a primeira premissa apresentar uma conclusão verdadeira”. Bem, nem vale a pena mostrar o inspector de circunstâncias que antecede esta explicação. Nada do que está escrito tem a ver com o que se passa com o inspector. No meio disto, ainda há que rir: então as premissas apresentam conclusões? Está a confundir-se literalmente premissas com argumentos. E isto é como não se saber bem do que se está a falar. Seria o equivalente a dizer que o meu filho é também o meu pai, ou que o meu braço tem uma perna aleijada. Para além disto, o manual praticamente não propõe exercícios. Como é que queremos que os alunos aprendam um pouco de lógica sem realizarem exercícios de lógica?
Ainda me arrisco a mais uns comentários. A «Estrutura do acto de conhecer» em vez de colocar as questões centrais na filosofia do conhecimento, começa por expor a fenomenologia, ou aquilo que os autores pensam que é a fenomenologia. Não se compreende esta opção uma vez que aquela narração do sujeito que sai e entra em si está já gasta e já toda a gente percebeu que aquilo não é nada que se pareça com a fenomenologia. Mas é curioso que após 3 páginas de fenomenologia entra-se logo para a tese da crença verdadeira justificada e para os contra exemplos de Gettier (que a determinado momento os autores resolvem chamar de exemplos negativos de Gettier). Em relação à fenomenologia duas palavras mais: não me parece que exista algum problema em expor a fenomenologia como uma área da filosofia. Não percebo é por que razão tem de aparecer na epistemologia e, além de tudo, parece-me uma teoria pouco intuitiva para alunos do secundário. Provavelmente à custa de levarmos com tanta fenomenologia pós moderna na universidade, existe ainda a tendência de a explorar num ou noutro manual.
Mas o mais impressionante vem a seguir: depois de levarmos com 8 páginas dedicadas a Kant, proporcionalmente muitas mais que aquelas que são dedicadas ao racionalismo e empirismo, o que aparece? Jean Piaget. O leitor leu bem: Jean Piaget. Nesta altura fui de imediato verificar a data do manual. Estava quase a acreditar que tenho 16 anos e estou no meu 11º ano. Este é o programa de há uns 20 anos atrás. Estava quase a desistir, mas ainda assim queria saber até onde o disparate poderia ir. Só a folhear; Bachelard para a filosofia da ciência. Este manual é de facto um regresso ao passado.
Uma nota mais: se os autores na sua bibliografia, muito pobre, citam as edições brasileiras, por que é que no final dos textos a referência aparece no original inglês?
O manual até tem uma capa bonita e a grafia é sóbria. O conteúdo é para esquecer. Tinha prometido a mim mesmo que teria de ser suave nas minhas análises aos manuais, mas a asneira por vezes atinge dimensão tal que é inevitável soar a duro.
Assim não vale a pena apresentar um manual no mercado. Por certo alguns professores não se actualizam e não estão dispostos a mudar as suas práticas, com a conivência do programa, da ausência de exame e do laxista sistema de ensino. Mas não há razão alguma para que se apresente um manual como este aos professores.
Para terminar, na página 239, há uma questão para o problema do «efeito das tecnologias na comunicação na sociedade contemporânea» que é a seguinte, “viveremos num conto de fadas?”. Após esta experiência receio bem que sim.
Adília Maia Gaspar e António Manzarra, Em diálogo, Lisboa Editores, 2008
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