sábado, 15 de agosto de 2009

Manuais - Este amor pelo saber

este amor Eis o primeiro manual chegado às minhas mãos para as adopções de 2008. Sendo o primeiro merece uma consideração preliminar: a crítica de manuais pretende-se pedagógica e colaborativa. O interesse é chamar a atenção de aspectos que me parecem errados e que, continuamente, aparecem nos manuais. Por outro lado pretendo colaborar com os colegas professores de filosofia nas suas adopções. O blog está aberto à crítica, pelo que os colegas que discordarem das minhas opções podem enviar os seus textos que publicarei com gosto. Sabemos que existem muitas filosofias diferentes, mas defendo que existe um modo de filosofar. Por outro lado não compactuo com os manuais do «eduquês» pelas razões que frequentemente tenho apontado, mas que se podem resumir a:

1º Não estimulam o pensamento crítico do aluno.

2º Transformam o ensino da filosofia em algo que tem de tudo menos de filosofia desprestigiando a própria filosofia e degradando o seu ensino.

Creio que os leitores deste blog estão já familiarizados com estas ideias, pelo que me poupo ao trabalho de as argumentar outra vez. Com esta posição, penso que é defensável a ideia de que se pode ensinar filosofia a partir de referências extra filosóficas, desde que tal seja concebido com o método próprio da filosofia. Para se fazer um bom manual não é necessário cair-se no erro sistemático de que se tem de apresentar um teatro de fantoches. Um manual do «eduquês» dificilmente será um manual rigoroso, mas aceito também que o «eduquês» seja defensável em determinadas circunstâncias. Também é claro que não há um manual que seja o El Dourado do ensino da filosofia, mas há certamente manuais melhores que outros. Como me dei conta no ano passado para os manuais do 10º ano, existem manuais de filosofia excelentes (o que não me parece que existisse há uns anos atrás, razão pela qual nunca me interessava pelos manuais), manuais bons, manuais razoáveis e manuais medíocres. Pela minha vontade eliminaria de uma vez por todas os medíocres. E existem manuais medíocres que não o eram aqui há uns anos, mas hoje em dia existe bibliografia e informação suficiente para não repetir erros do passado. Se há uns anos esses manuais eram a realidade possível, hoje são a realidade impossível.

Por fim, claro que a história dos manuais é delicada porque ainda é um negócio rentável. E ainda bem, caso contrário não existiria qualquer estímulo para que um professor dispense muitas horas da sua vida a conceber um manual. Acontece que quando o negócio é bom é natural que atraia também os menos talentosos e interesseiros no êxito financeiro. Nas minhas críticas alheio-me sempre deste aspecto, que creio não ter interesse discutir nem estou à altura para tal, mas sei que ele existe. Nem sei se vou ter tempo para fazer a crítica de todos os manuais, pelo menos dos que me chegam às mãos. Pelo menos vou fazendo o possível. Passe as justificações preliminares, apresento o primeiro manual.

Amândio Fontoura, Mafalda Afonso e Maria de Fátima Gomes, Este amor pelo saber, A Folha Cultural, 2008

Ficha:

Qualidade do manual: muitos capítulos a rever e algumas opções didacticamente discutíveis

Cumpre com a finalidade? – Se o professor souber corrigir o manual cumpre.

Eficácia: satisfatória

Classificaria o manual Este Amor pelo Saber (A Folha Cultural) como um manual razoável. Poderia ser um manual muito melhor. Não o é por algumas opções pedagógicas que me parecem pouco consensuais e pela repetição de alguns erros infelizmente muito comuns.

Mas vamos aos erros e, depois, às opções menos consensuais.

Logo no primeiro capítulo os autores apresentam a conhecida distinção entre raciocínios analíticos e raciocínios dialécticos. Apresentam os raciocínios analíticos como fazendo parte do âmbito da lógica formal, ao passo que os raciocínios dialécticos “ganham sentido no contexto de uma teoria da argumentação”. Acontece que os autores estão a fazer uma confusão. Tanto os argumentos dialécticos como os demonstrativos, assim caracterizados por Aristóteles, buscam a verdade, sendo a diferença que nos dialécticos as premissas são discutíveis porque as pessoas discordam do que é verdade. Logo à frente (p.14) os autores definem argumentação como a “apresentação de considerações não demonstrativas, mas opinativas”. Isto é obviamente falso, pois pode-se argumentar demonstrativamente; quando argumentamos que a Maria não está na praia porque a vimos agora mesmo no cinema, estamos a argumentar demonstrativamente. Todo este capítulo contém imprecisões que, com efeito, não afectam de forma decisiva um bom ensino da filosofia. Mas não existe qualquer razão para definir dedução como o raciocínio que vai do geral para o particular, ao passo que a indução é o contrário. Isto é falso. Se eu disser “alguns lisboetas são benfiquistas, logo alguns benfiquistas são lisboetas”, trata-se de um argumento dedutivo e, com efeito, não parte do geral para o particular. Ele é dedutivo porque se a premissa for verdadeira é impossível que a conclusão seja falsa. Por outro lado, se eu disser “Todos os japoneses observados até hoje são simpáticos, logo o Akira que é japonês é simpático”, é um argumento não dedutivo no qual a premissa é geral e a conclusão particular. Não faz qualquer sentido continuar a cometer estes erros quando têm sido sistematicamente apontados desde há anos. E logo a seguir não se compreende o exemplo dado no manual:

Nenhuma lisboeta é sueca

Helena Roseta é Lisboeta

Logo, Helena Roseta não é sueca

Os autores referem - o que está certo - que a segunda premissa é particular. Mas, então e em que ficamos? Primeiro afirmam que deduzir é partir do geral para o particular e depois dão um exemplo de um argumento com uma premissa particular que chega a uma conclusão particular. Isto significa  que se está a partir do particular para o particular. Torna-se evidente que há aqui confusões a serem desfeitas. Os autores fazem ainda uma associação entre dedução e ciências exactas e indução e ciências experimentais. Ora bem: primeiro, algumas ciências experimentais são exactas, como a física, e, segundo, a dedução é muito usada em filosofia, que não é uma disciplina exacta.

Os autores definem correctamente que num argumento dedutivamente válido a verdade das premissas implica a verdade da conclusão. Esta definição não é a mais fácil para os estudantes porque podemos ter argumentos válidos com premissas falsas e conclusão falsa, ou até com premissas falsas e conclusão verdadeira. Por essa razão a definição mais adequada é que, num raciocínio dedutivamente válido, é impossível ter a conclusão falsa se as premissas forem verdadeiras, mas tudo o resto pode acontecer. Além do mais podemos ter um argumento com premissas verdadeiras e conclusão verdadeira e ser inválido. A única coisa que não pode acontecer e que perfaz a regra é mesmo isso, que é impossível que a conclusão seja falsa se as premissas forem verdadeiras. A definição de validade explica-se de um modo muito simples:

A neve é verde e as nuvens amarelas

Logo, a neve é verde

Tanto premissas como conclusão são falsas. Mas vamos lá imaginar um mundo possível no qual a neve fosse realmente verde e as nuvens amarelas. Nesse mundo a premissa seria verdadeira. Haveria alguma forma de, sendo a premissa verdadeira, a conclusão ser falsa? Não. E isto é o que explica a validade formal. O argumento é dedutivamente válido, mas não é sólido e muito menos cogente (estas noções não aparecem no manual). O manual dá uma ideia errada de que a lógica formal é muito rigorosa e virada para as ciências e a lógica informal muito subjectiva e virada para a argumentação, opinião e filosofia. Começa logo aqui a dar-se uma ideia espalhafatosa do que é a filosofia e, pior ainda, uma ideia falsa.

Creio que daqui já se retém uma ideia mínima das cenas dos próximos capítulos.

Em relação às opções pedagógicas 

Este manual tem opções pedagógicas e didácticas muito discutíveis. Ainda que resumida a uma página não vejo qualquer vantagem em ter incluído a fenomenologia, pelo menos do modo como foi incluída. Ou se clarifica o problema ou se ele não é claro mais vale nem abordá-lo. O manual é igualmente fraco nas propostas de actividades, mas neste ponto até entendo que nós é que estamos habituados a que os manuais venham carregadinhos de actividades, quando as podemos criar com facilidade se tivermos um bom manual.

Conclusão

Alguns erros cometidos neste manual são muito comuns e aparecem com frequência. Como assim é podemos criar alguma tendência a pensar que não se tratam de erros, mas a prova dos nove reside na consulta de alguma da bibliografia central. Basta comparar três bons livros e percebemos de imediato onde estão os erros, pelo menos os erros mais imediatos e básicos. Não tenho qualquer dúvida que existe um esforço por parte dos autores em apresentarem um manual simples e eficaz, mas os erros do primeiro capítulo, de que me dei aqui conta somente dos mais básicos, desmotivam para a leitura dos capítulos seguintes. O professor que ensinar por este livro, se quiser um ensino estimulante da disciplina, vai ter de emendar constantemente o manual.

Graficamente o manual é bonito embora eu continue a pensar que se exagera nos manuais de filosofia de fotografias que são mais condignas de um catecismo. Dá a sensação de se ter nas mãos um objecto de propaganda religiosa tal é a pimbalhada das imagens. E isso fica mal, dá uma ideia patusca e pouco séria da filosofia e não entusiasma nada os jovens. Aliás durante anos ensino com fotocópias e os alunos não é por aí que desmotivam.

De resto, os autores têm aqui uma boa base para fazerem uma edição posterior corrigida. Compreendo que não é fácil e adivinho que fizeram aqui um esforço genuíno, mas é necessário limar as arestas e, sobretudo, corrigir o que há a corrigir.

Sem comentários: