O manual Um outro olhar sobre o mundo é uma caricatura da filosofia. Na verdade tenho notado que a análise de manuais tem provocado algum choque e tenho procurado proceder às minhas análises de um modo pedagógico, apontando aspectos que os autores podem e devem melhorar. Como é que procedo para fazer uma análise? Normalmente começo por ir directamente aos pontos nos quais os manuais mais falham. Se notar que daí não decorrem grandes erros, então parto para a análise de outros pontos e, no final, procuro dar uma imagem de conjunto como é que o manual pode funcionar em termos didácticos para os estudantes, analisando o tipo de linguagem e aspectos relacionados com a organização, entre outros.
Nota-se uma melhoria significativa na qualidade de alguns manuais em algumas unidades centrais. As unidades finais de opção continuam a não sofrer grandes alterações. E noto também que uns manuais se inspiram noutros, não decorrendo daí qualquer problema. É até positivo que sigam os melhores exemplos. Um manual não é uma obra de arte que tenha de primar pela originalidade. Tem de ser rigoroso e claro para os estudantes. Há manuais que o conseguem melhor que outros.
Quando peguei pela primeira vez em Um Outro Olhar sobre o Mundo, fui de imediato vêr a unidade da lógica e pude verificar que alguns erros da edição anterior foram corrigidos. Como a edição é de dois volumes muito leves, o que me agrada, pensei que poderia estar perante um manual razoável. Enganei-me. À medida que fui lendo descobri uma série de erros, invenções e incoerências imperdoáveis num manual. Procurei analisar os erros mais incontroversos. Claro que se tomarmos os erros durante anos a fio como verdades, o nosso confronto com a verdade acaba sempre por soar estranho, como pode soar neste caso. Mas explicarei por que razão este é, de facto, um manual a evitar.
Logo na entrada é apresentada ao estudante uma distinção que não produz qualquer efeito, a distinção entre aquilo que os autores chamam de lógica natural e lógica científica. É possível e legítimo defender que a lógica tem uma aplicação tanto na vida prática como na ciência, mas daí a estabelecer uma divisão como se tratasse da existência de duas lógicas é pressupor que o mundo está divido, quando não é verdade. Para argumentarmos no nosso dia a dia, a lógica faz falta, mas faz também para argumentarmos no campo do conhecimento, do saber e da ciência. Esta distinção aparece talvez porque os autores mais tarde vão fazer uma incompreensível divisão entre lógica formal e informal, completamente errada, em que defendem uma espécie de divisão histórica entre lógica formal e informal. Lá regressarei, mas desde já este ponto merece uma explicação breve: a divisão da lógica em formal e informal, não é porque a formal se aplique a uns ramos do saber e a informal a outros ou à vida prática.
Outro aspecto que me chamou a atenção foi que oUm Outro Olhar Sobre o Mundo procura inovar onde não é necessária qualquer inovação, que é precisamente na alteração dos termos mais técnicos da filosofia. Assim, falam de forma típica e forma padrão, argumento correcto, etc. Não há qualquer problema, mas a terminologia técnica serve precisamente para nos orientar no estudo, pelo que querer variá-la de livro para livro não produz qualquer resultado útil e acaba por produzir também muitas confusões despropositadas. Querer variar no léxico central é um erro. Mudar de terminologia a propósito das mesmas coisas é didacticamente desastroso. Se a ideia é inovar, foi uma má opção.
Talvez nessa tentativa inovadora, o manual fale de valor lógico das proposições, em vez de valor de verdade. O valor de verdade não tem rigorosamente nada que ver com lógica. Saber se a proposição expressa pela frase «a relva é verde» é verdadeira depende apenas dos nossos sentidos e de ver se o mundo é realmente assim. Onde está aí a lógica? Lá porque a validade de um argumento (dedutivo) determina que se as premissas forem verdadeiras a conclusão também terá de o ser, isso não significa que determinar se as premissas são verdadeiras é uma questão lógica. Não é! Saber se uma dada afirmação é verdadeira é uma questão de olhar para o mundo e de ver se o mundo é mesmo assim. Para se saber que a proposição expressa pela frase «o céu é verde» é falsa, basta ter olhos na cara e conhecer as cores. Agora, uma vez que sabemos que as premissas são verdadeiras (coisa para que não precisamos da lógica para nada), o que se segue daí? Perguntar o que se segue daí é que já é entrar no domínio da lógica.
Seguindo o manual vou encontrando algumas imprecisões curiosas, como, por exemplo, a que aparece na página 20, “o número de premissas e conclusões de um argumento é variável….”. Isto é falso. É verdade que num argumento o número de premissas é variável, mas só se pode ter uma conclusão. Se com as mesmas premissas obtivermos outra conclusão, nesse caso, o que temos é outro argumento. “Sócrates é grego e Descartes francês. Logo Sócrates é grego.” é um argumento, mas, “Sócrates é grego e Descartes francês. Logo, Descartes é francês” é outro argumento.
Na página 53, referindo-se à proposição diz-se que ela é “expressão linguística do juízo”. Já aqui anotei em relação a outros manuais este erro comum. A proposição não é expressão linguística do juízo. A frase é que é a expressão linguística da proposição.
Ainda na mesma página podemos ler, “trata-se de frases que, por nada afirmarem, nada negarem, não são consideradas verdadeiras nem falsas. Por isso, a lógica as exclui do seu âmbito, lidando apenas com proposições declarativas, as únicas que possuem um significado avaliável em termos de verdade ou falsidade.” Esta explicação é confusa para os estudantes, até porque são as frases que são declarativas e não as proposições.
Na página 82 quando se introduz o tema das falácias (Principais falácias, diz o título), afirma-se que “assim, dizem-se falaciosos os argumentos inválidos, isto é, aqueles em que as premissas não sustentam a conclusão” Claro que uma falácia formal é isto, mas e as falácias informais? Note-se que muitas falácias informais não têm formas lógicas inválidas, como é o caso do falso dilema, só para dar um exemplo. Quando queremos pela primeira vez explicar aos alunos as falácias, devemos explicar tanto as formais como as informais. Refere-se no início da página que os argumentos que são falácias se assemelham na forma aos argumentos válidos. Após isto pede para passar para a página 85, porque, entretanto, se vai fazer incluir as falácias do silogismo. Não é fácil de seguir, este manual. Logo de seguida, então, ensina-se as falácias da afirmação do consequente e negação do antecedente.
Na página 96, faz-se a distinção entre demonstração e argumentação, uma distinção errada uma vez que uma demonstração também é uma forma de argumentação – para tal, afirmando que “a razão humana não é uma capacidade meramente formal e abstracta, antes se liga às vivências do ser humano, em que coexistem necessidades, preferências e emoções, condicionando-o na compreensão do mundo e nas opções que efectua ao longo da vida. A racionalidade não se confina, aos esquemas da lógica e das ciências exactas, estendendo-se ao contexto das relações humanas, em que escasseiam as verdades indiscutíveis e reinam as opiniões, as convicções, as crenças e os valores”. Não se percebe o valor duma afirmação destas para a disciplina de Filosofia, mas já se está a adivinhar a caricatura: a lógica formal é uma mecânica que só serve fins científicos e a lógica informal é que é amiga do ser humano porque é capaz de reflectir as suas emoções, valores, taradices psicológicas, etc.. Mas vale a pena espreitar o resto do texto:
Continua na página 97 “o facto de não se apurar verdades inquestionáveis em dimensões da vida humana como a moral, a filosofia, o direito, a religião, a economia, não significa que sejam áreas em que as coisas se passem de modo irracional”
Quer dizer: a lógica formal é uma coisa fria e distante ligada e às ciências e depois temos a vida humana, que se faz todos os dias com a lógica informal. Disparate – a lógica formal e informal aplicam-se a qualquer área. Trata-se do nosso raciocínio que faz parte da vida humana e não vive em contentores separados. Esta é uma imagem pobre, para além de profundamente errada e infeliz, que se passa ao estudante.
Diz-se ainda “de facto, ao observarmos a organização da vida das pessoas, constatamos que elas são capazes de pensar, dizer e fazer coisas em que está implicado o uso de regras de pensamento que estão para além das sistematizadas pela lógica formal. Trata-se de regras de uma outra lógica, que designaremos por lógica informal”. Uma outra lógica? Bem, por vezes é melhor mesmo encarar estes disparates com ironia
Temos aqui algumas coisas interessantes: 1º O que se pode concluir pela leitura deste manual é que não vale a pena estudar lógica, é uma chatice que não nos revela a verdadeira dimensão do ser humano; 2º A lógica informal é uma outra lógica. É a lógica aplicada à verdadeira vida.
Estar a dar a ideia ao aluno que o que é importante para a vida prática é a lógica informal é de um disparate intolerável. É a mesma coisa que ensinar aos estudantes que não precisam das pernas, só precisam dos braços, pelo que podem cortar as pernas uma vez que não servem para construir nada. A lógica formal faz parte da nossa forma de argumentar. Nem é melhor nem pior que a informal, nem se aplica mais à ciência nem menos. Sinceramente não sei como é possível chegar a este ponto.
Mas o disparate vai mesmo longe ao ponto de se tornar uma caricatura: “de âmbito mais alargado e preceitos mais flexíveis que os da lógica clássica, esta lógica empenha-se na resolução de questões ligadas à prática, reconhecendo e valorizando o poder argumentativo da razão como capacidade insubstituível” Mas que lógica clássica? A lógica formal é a clássica? E a lógica formal é a moderna, não? Ligada à vida humana? Até parece que a lógica formal foi desenvolvida por máquinas ou por marcianos e não por seres humanos. Bem tenho fortes motivos para abandonar mesmo aqui a análise deste manual. Não se sabe sequer do que se está a falar.
Mas ainda assim insisto em ler mais: “só pelo seu exercício – da lógica informal – o ser humano é capaz de escolher as atitudes e condutas que lhe possibilitam a adequação adaptada às circunstâncias em que vive. E o ser humano tem consciência de que, ao reflectir para tomar as suas decisões mais razoáveis, não está perante o absolutamente falso, mas inserido numa pluralidade de coisas em que umas se tornam preferíveis a outras em função de critérios diversificados”.
Estou arrebatado.
Já agora, mesmo a completar: “Também os advogados, políticos, cientistas, filósofos e padres evitam afirmações gratuitas, justificando o que afirmam para obter credibilidade por parte dos ouvintes”. Só mesmo manuais como este não evitam afirmações gratuitas.
A unidade da epistemologia é contemplada com 30 páginas e 38 páginas para os temas e problemas da cultura científico tecnológica. É conveniente referir que o programa indica 12 aulas para a epistemologia e 8 para os temas e problemas. Apesar do programa indicar duas teorias explicativas do conhecimento, Um Outro Olhar Sobre o Mundo despacha nada mais, nada menos que 8 teorias explicativas do conhecimento (realismo, idealismo, empirismo, racionalismo, apriorismo, dogmatismo, cepticismo e criticismo) em cerca de uma página para cada uma. O programa pede para confrontar duas teorias, mas este manual oferece uma autêntica lista telefónica de teorias, sem qualquer confronto, aviando-as em pouco mais de 10 páginas. As teorias são oferecidas a metro para serem decoradas pelos estudantes, sem quaisquer argumentos ou possibilidade de discussão. Toda a epistemologia, um tema central do programa e da filosofia, tem metade das páginas dos temas e problemas que mais não passam de pseudo-filosofias inventadas.
Antes mesmo de terminar, vale a pena passar os olhos no tema das concepções de verdade. O tratamento dado é o da verdade no sentido de aletheia, veritas e emunah. Quando vamos ler notamos que estas não são concepções de verdade, mas os termos grego, latim e hebraico para a palavra «verdade». Portanto, para Um Outro Olhar Sobre o Mundo, cada tradução da palavra verdade é uma concepção de verdade. Como sou nortenho de origem fico sempre com a esperança que a Berdade também possa ser uma concepção de verdade filosoficamente relevante.
Podemos ler este manual como um sinal do que devemos evitar para a disciplina de filosofia. Sou da opinião que a maioria dos manuais tem ainda muitos passos a dar para melhorar a sua qualidade e a qualidade do ensino da disciplina, mas há lentamente alguns sinais de abertura dos autores. O Outro Olhar Sobre o Mundo necessita de alterações de fundo para se revelar um instrumento de trabalho mais desejável. Nem o facto de ser recomendado por D. Januário Torgal Ferreira e de ter dois volumes, o que particularmente me agrada, lhe dá um brilhozinho.
Um outro Olhar sobre o Mundo, Asa, 2008
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