segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Descontextualizado

contextos O manual Contextos cai em alguns lugares comuns da escrita de manuais, o que faz dele um manual menos interessante para estimular a capacidade crítica dos estudantes. Estranho sempre quando, ao ler um manual, me deparo muitas vezes com afirmações atrás de afirmações, num espírito muito dogmático de afirmar que isto é isto e aquilo é aquilo. A organização de manuais de filosofia como o Contextos faz com que a lógica inicialmente aprendida não possua qualquer utilidade de aplicação nos restantes conteúdos. Ora, o interesse da lógica é fornecer ao estudante a ferramenta para que questione os argumentos dos filósofos e tome as suas próprias posições racionalmente fundamentadas. Claro que aquilo que se pede é a um nível elementar.

O manual dá o pontapé de saída com uma série de desafios da lógica e raciocínio. Notei logo que os textos apresentados são retirados de um livro que se chama, Jogos e testes de lógica para crianças. É proposto aos alunos que resolvam esses exercícios para verem a vantagem de se estudar lógica. A opção não é a mais adequada, uma vez que os alunos deveriam ver essas vantagens ao longo do manual e não em exercícios de raciocínio destinados às crianças. Dá-se logo a começar uma ideia errada do que é a lógica e a razão do seu estudo na filosofia. De uma forma muito simples pode-se explicar ao estudante que a lógica visa avaliar argumentos e introduz-se as noções iniciais, como a distinção verdade/validade, premissas/conclusão, etc. Após dominar estas noções que por regra compreendem rapidamente, então parte-se para a análise dos argumentos quer com a lógica silogística, quer com a lógica proposicional, dependendo da opção do professor. Mas o Contextos começa logo por estar desorganizado no modo como começa. Nas noções iniciais da lógica, mesmo antes de começar com a proposicional e a silogística, trata as noções básicas como se só existisse a lógica silogística. Isto é dar uma ideia limitada ao aluno do âmbito de aplicação da lógica. Para além disso o professor que opte por leccionar a lógica proposicional fica logo encurralado no início com uma série de noções que são pensadas apenas para a lógica silogística, para além de outras que pura e simplesmente não se encaixam em qualquer uma das lógicas. Vamos ver algumas delas: Logo na página 17 comete-se uma falha muito comum ao afirmar-se que a extensão e compreensão do conceito variam na razão inversa. Isto vê-se até bastante bem se pensarmos no seguinte: como é que a compreensão de um conceito pode crescer ou decrescer, ser maior ou menor? A compreensão não se mede em termos de extensão. Não tem uma expressão quantitativa. A compreensão define as propriedades que definem um conceito, mas não a quantidade. Por exemplo, a compreensão do conceito «chinês» envolve as seguintes ideias: habitante de um país asiático, que faz fronteira com os países tal e tal e a compreensão do conceito «nepalês» envolve as ideias: habitante de um país asiático, que faz fronteira com os países tal e tal. Qual deles envolve mais características definidoras, digamos assim? Definir chinês e definir nepalês envolve mais ou menos o mesmo, mas há muitíssimos mais chineses do que nepaleses, pelo que a extensão de «chinês» é muito maior do que a extensão de «nepalês». A classe de objectos a que o conceito «chinês» se aplica é muito maior do que a classe de objectos a que o conceito «nepalês» se aplica. Está apresentado um contra-exemplo à ideia de que quanto maior for a extensão menor é a compreensão e vice-versa. Ou podemos dar ainda outro contra-exemplo à ideia de que quanto maior é a extensão menor é a compreensão e que nos é mais familiar. Pense-se nos seguintes conceitos: «brasileiro» e «português». Qual deles tem uma maior extensão? Dado que há mais brasileiros, o conceito «brasileiro» tem uma maior extensão. Isso quer dizer que brasileiro tem uma menor compreensão do que português? Qual é o conjunto de qualidades ou características definidoras de brasileiro e qual é o conjunto de qualidades definidoras de português? E por que razão o conjunto de qualidades definidoras de «brasileiro» é menor que o de «português»? Este é claramente um erro que não se encontra só no Contextos. É muito comum ele aparecer, mas se pensarmos um pouco no que andamos a ensinar e se fizermos uso da tal capacidade crítica que queremos fomentar nos alunos, concluímos que não faz qualquer sentido ensinar estas noções deste modo.

Na página 18 comete-se uma falha igualmente comum nos manuais. Acredito que aconteça por falta de atenção, mas não deixa de ser uma falha comum que consiste em afirmar que a proposição é um enunciado, portanto, que é algo do domínio da linguagem. As frases são sons articulados ou inscrições numa superfície e isso não é verdadeiro nem falso. Está lá ou não está. O que pode ser verdadeiro ou falso é aquilo que esses sons e essas inscrições exprimem. Em termos muitos simples, é o seu significado. É por isso que diferentes frases podem exprimir a mesma proposição. Ora, a melhor forma para evitar estes erros que muitas das vezes ocorrem por pura distracção daquilo que se está a escrever, é dar ao aluno definições iniciais operacionais tais como: “Proposição é o pensamento que uma frase declarativa com sentido exprime”. Mais adiante o manual refere que «Mas nem todas as frases são proposições». Nenhuma frase é proposição! As frases exprimem proposições, mas não são proposições.

Além dos erros, algumas opções não são as mais correctas do ponto de vista didáctico como por exemplo, em vez de se dar ao estudante uma lista de objectivos da lógica (página 14), bastava dar uma explicação fácil de que a lógica consiste no estudo da argumentação válida e dar logo a distinção entre validade dedutiva e não dedutiva. Esta distinção dá-se numa página. Deixo aqui uma sugestão: a dedução diz-nos que é impossível obter uma conclusão falsa, se as premissas do argumento forem verdadeiras. Assim, se eu tiver o argumento seguinte:

A relva é azul e as nuvens amarelas

Logo, a relva é azul

Eu sei que premissa e conclusão são falsas. Mas vamos lá imaginar uma circunstância possível em que é verdade que a relva é azul e as nuvens amarelas, por exemplo, num planeta distante. A pergunta pela validade é a seguinte: se a premissa for verdadeira, o que acontece à conclusão? Se a conclusão continuar falsa, o argumento é inválido, se for verdadeira, nesse caso o argumento é dedutivamente válido porque é logicamente impossível que a premissa seja verdadeira e a conclusão falsa. Mas acontece que existem aspectos da argumentação que a forma lógica da dedução não capta. E esses são os aspectos informais da argumentação. Por essa razão existe o estudo da lógica informal, na qual, a verdade das premissas não garante a verdade da conclusão. Nesse caso falamos de força do argumento. Mais arranjo, menos arranjo está aqui apresentado ao estudante as noções básicas de que ele vai precisar. Não é necessário estar a perder mais tempo.

Na página 26 diz-se que o argumento dedutivo é “usado em todas as ciências (…) é particularmente importante na lógica, na matemática e na física teórica”. Bem, a dedução é um dos campos de estudo da lógica, mas, de resto, as deduções são tão usadas e importantes na física como na metafísica, na matemática como na filosofia.

Na página 27 aparece esta definição confusa, “se um argumento for válido, isto é, se respeitar todas as regras formais, e se as premissas que o constituem forem verdadeiras, então a conclusão terá de ser necessariamente verdadeira”. Esta definição induz o estudante em erro porque a regra de validade é precisamente que o argumento é válido se a premissas verdadeiras corresponder uma conclusão verdadeira, pelo que esta é que é a regra da validade, mais nenhuma. Dá-se, assim, a ideia errada, que os alunos têm de aprender outras regras formais para saber se o argumento é válido. Quais são essas regras?

Na página 82 dou-me conta de uma imprecisão. Define-se entimema como um silogismo no qual falta uma premissa. Todas as noções da lógica estão, no Contextos, muito agarradas à lógica aristotélica e acaba por dar uma ideia limitada da lógica ao estudante. Na verdade o entimema é um argumento em que uma das premissas não é explícita, mas não necessariamente no silogismo que é um tipo de argumento entre muitos outros tipos.

Para a epistemologia o Contextos opta por oferecer a fenomenologia para explicar a relação entre sujeito e objecto. É uma opção que me parece redutora e que muitos manuais já abandonaram. Neste ponto do programa o que se pretende é expor ao aluno o problema central do conhecimento. Ora, a fenomenologia não coloca a questão, trata-se antes de uma resposta ao problema, pelo que é uma opção enganadora. Por outro lado, tenho a convicção que os alunos não apreciam a cantiga que se conta nos manuais sobre a fenomenologia. Neste ponto a opção mais correcta é situar o problema real do conhecimento, fazer a pergunta pela sua origem e possibilidade e passar de imediato para os tipos de conhecimento. E o Contextos acaba por colocar as questões de um modo pouco claro para o aluno, tal como, “será o conhecimento um acto efectuado por um sujeito no estado puro que apreende um objecto no estado puro?”p.121. Isto abre espaço a explicações menos claras para o nível do estudante como a que aparece, como resposta a esta questão, “(…) não existe de um lado o sujeito abstracto e, do outro, uma realidade que ele irá conhecer objectivamente. O sujeito interage com a realidade, e é desse processo que o conhecimento emerge. Representar o objecto é também, em certa medida, construir o objecto” (p.122) Isto acontece em parte porque os textos escolhidos não são os mais adequados. Não são textos argumentativos que exponham com clareza uma tese, mas textos que se limitam, no grosso, a fazer afirmações. Ora, o estudante não tem ainda a sofistificação exigida para questionar parte significativa dessas afirmações. Mas vale a pena citar uma frase do texto que antecede a resposta dos autores à questão que referia acima. Diz o texto: “a realidade não se apresenta primeiramente ao homem sob a forma de objecto do conhecimento, da análise e da teorização, cujo pólo oposto e complementar seria o sujeito abstracto do conhecimento que se encontraria simultaneamente dentro e fora do mundo” (p.122). Este é um exemplo de muitas ocorrências destas ao longo do manual, o que o torna um manual mais difícil e pouco estimulante para os estudantes. Pouco adiante, para a questão central, “o que é o conhecimento?”, o manual propõe estas respostas:

aquilo que nos é presente na prática, oferecendo-nos resistência;

Aquilo que é ou pode ser esclarecido pelo conhecimento científico;

Aquilo que se opõe ao nada, ao aparente, ao ilusório;

Aquilo que se opõe ao potencial, ao meramente possível;….” (p.124)

Em vez de fazer afirmações sobre o que é conhecimento, seria uma opção muito mais acertada deixar que os filósofos falassem, para tal expondo a tese dos filósofos, sendo que a definição tradicional e a mais discutida de conhecimento é a do Teeteto. Ela aparece mais adiante no manual, pelo que não existia razões para mais divagações obscuras. Claro que há muitos problemas que se colocam sobre a questão “o que é conhecimento?”, mas ao estudante do secundário basta que lhe possamos oferecer a base da discussão. É por aí que entra na discussão do conhecimento.

Avançando, na página 125 podemos ler o seguinte: “Para Kant, por exemplo, o nosso conhecimento da realidade é limitado pelo espaço e pelo tempo. Sendo assim, só podemos conhecer os fenómenos, ou coisas para nós, isto é, aquilo que nos é dado no espaço e no tempo. Não podemos conhecer os seres que fazem parte do mundo inteligível – o númeno. O númeno é a coisa em si mesma, que apenas pode ser pensada, o que é incognóscível. Podemos conhecer o fenómeno, mas não a coisa em si, que constitui o seu fundamento.”(p.125). Este tipo de explicações exige a tal sofistificação que os nossos alunos não têm nem têm de ter neste nível de ensino e condiciona o professor que terá de estar muito tempo de aula a descodificar o texto. Estes exemplos são suficientes para mostrar a forma como o manual está organizado.

Em relação aos temas e problemas da cultura científico tecnológica é o lugar comum que aqui tenho discutido em relação a outros manuais. Os temas são tratados de forma acrítica, não confrontando nunca o estudante com teses adversárias. A vantagem de incluir num manual as objecções é que se possibilita ao estudante reflectir a partir das suas próprias intuições em relação ao mundo que o rodeia. Os capítulos seguintes seguem a mesma organização, de modo que não há muito mais a dizer sobre o Contextos.

Não tem erros flagrantes, mas tem imprecisões principalmente na lógica, investindo demasiado numa leitura silogística da lógica o que limita a opção pela lógica proposicional. Há opções melhores, mais rigorosas, pelo que não encontro razão pela votação no Contextos.

Marta Paiva, Orlanda Tavares, José Ferreira Borges, Contextos, Porto Ed, 2008

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