Analisei o manual Pensar Azul sob dois aspectos principais: rigor científico e organização metodológica.
O manual em questão não me parece possuir erros científicos flagrantes, apesar de ter encontrado um ou outro que quero esclarecer. Com efeito, a organização metodológica muitas vezes ao longo do manual incita a confusões. São opções que produzem enganos no estudante e que merecem algum esclarecimento. Para mostrar estes aspectos vou aqui dar alguns exemplos.
Na página 20 diz-se que a proposição é “o pensamento expresso numa frase declarativa”, mas na página 42 aparece a seguinte definição: “chamamos juízo a esta relação entre um sujeito e um predicado, afirmando ou negando que um certo predicado convém ao sujeito. À sua expressão ou enunciado linguístico chamamos proposição”. O que se afirma nestas duas páginas sobre o que são proposições é contraditório e induz confusões perfeitamente evitáveis. Se na primeira tentativa de definição a proposição é o pensamento expresso numa frase declarativa, na segunda, ela já é a expressão ou enunciado linguístico do juízo. A confusão que aqui fica é, pois, a seguinte: afinal uma proposição é algo linguístico ou extra-linguístico? No primeiro caso ela é correctamente caracterizada como uma entidade não linguística, na segunda ela já aparece como algo linguístico. Mas hoje é consensual que a proposição não é a frase, ou, como refere o manual, o “enunciado linguístico de um juízo”. As proposições são expressas pelas frases declarativas; não são a expressão de seja o que for. Assim, o que se afirma na p. 42 é incorrecto e parece estar em contradição com o que se afirma na p. 20. A proposição é uma propriedade extra linguística diferente da frase. Por essa razão, por exemplo, Quine pode defender que não existem proposições, mas Quine jamais poderia defender que as frases declarativas não existem. É precisamente porque as proposições são extra linguísticas que a discussão em torno da sua existência se tornou possível. A frase é que é uma entidade linguística.
Na página 57, nas “ideias a reter” aparece a definição de proposição outra vez como “as proposições expressam relações entre conceitos”. Mas isto implica que a afirmação “Chove.” não exprime uma proposição, o que é simplesmente errado. A frase “Chove.” exprime inquestionavelmente uma proposição e não há aqui qualquer relação entre conceitos. Quais seriam aqui os conceitos relacionados? Assim, o estudante ou decora estas coisas sem saber bem o que está a dizer e fica na mesma, ou usa a tal capacidade crítica que é suposto o professor incutir nele e descobre que a lógica afinal não tem lógica nenhuma, gerando na sua mente uma grande confusão.,
Ainda na página 42 podemos observar o exemplo dado de um juízo: “O João não é um aluno aplicado”. Duas páginas antes tinha-se dito que, (p. 40), “o conceito é uma representação mental abstracta que designa, na mente, um conjunto ou uma classe de objectos ou de seres”. Como neste manual também se diz que as proposições expressam relações entre conceitos, ou seja, expressam juízos, ficamos sem saber que conceitos estão a ser relacionados no exemplo atrás referido. Note-se que, de acordo com a definição de conceito apresentada, “João” não pode ser – e muito bem – tomado como conceito, pois não designa “uma classe de objectos ou de seres”. Mas o exemplo parece querer dizer que “João” é um conceito. Em que ficamos?
Na p. 33 escreve-se: “Chamamos dedutivos aos argumentos cuja conclusão é logicamente necessária”. Isto é simplesmente falso. Veja-se o seguinte argumento dedutivo válido: “Se Cavaco Silva é algarvio, é português. Cavaco Silva é algarvio. Logo, Cavaco Silva é português.” Obviamente que a conclusão “Cavaco Silva é português” não é sequer necessária, quanto mais logicamente necessária. Os autores confundem duas coisas bem diferentes, a saber: a conclusão ser logicamente necessária, por um lado, e a conclusão seguir-se necessariamente das premissas, por outro. Mas este é um erro comum nos manuais, o que é lamentável.
Não saindo ainda da unidade da lógica, a estrutura organizativa pode suscitar alguns enganos: tomemos um exemplo. Na página 72, o ponto 1.2.1. é sobre as “Forma de inferência válida”, mas um dos pontos do sumário indica as “falácias formais”. Isto pode ser enganador, pois o estudante pode pensar que as falácias formais são uma das formas de inferência válida, o que não faria algum sentido.
Deixando agora a lógica formal, o ponto, 2.1., “O domínio argumentativo – a procura da adesão do auditório” – define-se argumentação do seguinte modo (p.89) “chamamos argumentação à actividade social, intelectual e discursiva que, utilizando um conjunto de razões bem fundamentadas (argumentos), visa justificar ou refutar uma opinião e obter a aprovação e a adesão de um auditório, com o intuito de alterar o seu comportamento”. Não existe nada de errado nesta definição, só que ela não aparece aqui no sentido mais claro para a filosofia. Em filosofia, quando argumentamos não pretendemos necessariamente alterar o comportamento de alguém, mas tão só convencer racionalmente o auditório dos nossos argumentos. Para além de tudo podemos, em certo sentido, argumentar connosco mesmos. A definição é, uma vez mais, enganadora.
Na página P.107 – “chamamos argumento indutivo, ou indução, à inferência cujas premissas, sendo particulares, não garantem a verdade da conclusão” Observemos um exemplo:” todos os corvos que vi até hoje são pretos, logo o próximo corvo que vir é preto”. A premissa é universal e a conclusão particular, mas o argumento é indutivo, o que mostra que a definição está errada. Aliás este é um erro comum em muitos manuais, em que se confunde generalização com indução. Mas as generalizações são apenas uma caso particular de argumentos indutivos e é errado definir o todo pela parte. Curiosamente a definição dada anteriormente de argumento não dedutivo está correcta, (p.107), “um argumento não dedutivo válido com premissas verdadeiras torna provável, mas não garante, a verdade da sua conclusão”. Sendo que a indução é um tipo de argumento não dedutivo, o facto de o argumento ser bom ou mau nada tem a ver com as premissas serem universais ou particulares, mas verdadeiras ou falsas.
Outros aspectos:
O manual apresenta no início de cada unidade uma situação problema. Parece-me uma opção feliz para introduzir o aluno na discussão dos problemas filosóficos. Acontece que os textos escolhidos não apresentam qualquer problema filosófico, pois tanto parte de imagens como de poemas como o de Silva Mendes, “Chuang Tzu e a borboleta”, as calcinhas cor-de-rosa do capitão, etc… porque é que esta opção é errada num manual de filosofia? Porque pensamos que isto é ir directo às vivências do aluno? As vivências dos alunos são problemas reais da vida e não textos, sejam eles poéticos ou não. Ora a filosofia trata de problemas reais da vida humana, pelo que é falso pensar que o estudante entra na discussão desses problemas através da poesia, por exemplo. Os alunos gostam da filosofia quando entram na discussão activa dos seus problemas. Além disso ainda está por demonstrar que os alunos preferem entrar indirectamente na filosofia através de poemas do que directamente através das ideias filosóficas. É curioso ouvir muitos colegas de Português queixarem-se que muitos alunos não gostam nem sabem apreciar poesia e depois verificar que os professores de Filosofia vão precisamente pegar na poesia para os motivar para a Filosofia. Há muitos mitos acerca daquilo que realmente motiva os alunos para a filosofia, mas isso daria outra conversa.
A situação problema para introduzir a unidade da lógica formal é um excerto de um livro, veja-se o nome, “as calcinhas cor-de-rosa do capitão” e o nome do texto: “ o amor é uma falácia”. Na página 21 aparece uma imagem, a acompanhar toda a página, que interrompe a exposição dos conteúdos para se analisar a partir do seguinte problema: "Como é que a linguagem estética organiza o real?". Pelos vistos, parte-se logo do princípio que há uma linguagem estética, o que não é pacífico entre filósofos, e que essa tal linguagem organiza o real, o que é ainda menos pacífico. Mas quem diz que há uma linguagem estética e que ela organiza o real? Isto não é apelar ao sentido crítico dos estudantes, mas antes endoutriná-los com pressupostos que são mais do que discutíveis. Isto é dogmatismo filosófico.
Na página 28 outra imagem, desta vez do Pollock, com o seguinte problema, "Há uma forma lógica no discurso artístico?”. Ora é este tipo de abordagem que aparece em desfavor da própria filosofia, para além de que o Pensar Azul está cheio de citações de Dalai Lama, Jorge Sampaio, Charlie Chaplin, Madre Teresa, etc. fazendo-nos pensar, por vezes, que não se trata de um manual de filosofia.
Na unidade dos horizontes da filosofia, no problema da filosofia e a cidade, aparece um problema que é (p.252), “como construir uma sociedade justa”. Os textos são os já referidos de Madre Teresa e Dalai Lama ignorando os filósofos que tratam do problema da justiça na filosofia política ou filosofia moral.
A definição de entimema dada na página anterior também é problemática. Define-se assim: (p.106) “entimema é um silogismo em que uma das premissas é omitida por ser óbvia e poder ser facilmente subentendida”. Acontece que o entimema pode não ser um silogismo, mas qualquer tipo de raciocínio ou argumento.
Na página 256, propõe-se um curto texto do jornal Público, de Maria Filomena Mónica, onde é colocada a seguinte questão: “Identifique a posição da autora e argumente a favor ou contra”. Esta questão é levantada sobre um texto no qual a autora não está a defender praticamente nada.
O manual vai apresentando algumas propostas de actividades que, no meu ponto de vista, pouco ou nada têm de filosófico. Vejamos os exemplos recolhidos na página 263:
“Programar a semana dos direitos”
“Pintar um mural representando acções capazes de tornar o mundo mais humano”
“Lançar um concurso literário com o tema «fazer sofrer os outros é fazer mal a si mesmo» ”.
Por princípio não tenho nada a opor a estas actividades, mas fica uma questão: por que razão num manual de filosofia? A proposta do concurso literário é excelente para disputar o destaque com os professores de português. O manual deveria propor actividades relacionadas com o trabalho filosófico, tal como escrever ensaios filosóficos, um dos grandes instrumentos para avaliar a capacidade de argumentação.
Um outro aspecto que me parece importante destacar nesta edição de Pensar azul prende-se com a linguagem usada. A linguagem usada nem sempre é clara para estudantes e, em muitas situações, as opções não são as mais sensatas. Mas vejamos um exemplo: Para explicar o conhecimento e sensação, na unidade do conhecimento (p.153):
“Esta posição conduz a um subjectivismo extremo que se nega a si mesmo. Com efeito, se o mundo dos fenómenos «é dominado por um fluxo impossível de conter, no qual nada é», se nada é em si e se tudo depende da percepção, o próprio sujeito da percepção não existe como tal pois é constituído pelo próprio acto de percepcionar. Então, não há continuidade do sujeito da percepção, pois a cada momento temos um sujeito independente do sujeito que o precedeu”
Após uma citação aparece:
“O conhecimento é opinião verdadeira – se a sensação ou a percepção não podem ser consideradas conhecimento (porque, sem consistência nem durabilidade, «não são»), então o saber deve ser buscado, «naquilo em que a alma (…) se ocupa das coisas que são» e «a isso se chama opinar».”
Ora, esta linguagem é opaca para o estudante. Curiosamente, isto contrasta muitas vezes ora com textos poéticos, ora com explicações mais simples.
Em termos de estrutura o manual apresenta algumas fragilidades. Por exemplo, na página 189, em vez de se fazer uma distinção simples entre senso comum e ciência, que se pode fazer em dois ou três parágrafos, dado que esta distinção é muito fácil de traçar, aparecem duas citações de Maria Luísa Couto Soares que, além de pouco claras para os estudantes, os induzem em erro. Para o senso comum, a citação diz: “o mundo em que vivemos tem cores, sons, sabores, etc… A imagem científica do mundo exclui todas essas características qualitativas fundadas na estrutura subjectiva da nossa sensibilidade (…)”. Ora, como é que o estudante se sente perante isto? O que é, para o estudante, a estrutura subjectiva da nossa sensibilidade? Para além disso não é correcto dizer ao aluno que a ciência exclui os sons, sabores, cores, etc. Então e a física e engenharia do som? E as cores também são estudadas na óptica. Mas mais à frente, na mesma citação, refere-se que “a actividade sensitiva é o pensamento vivido, incorporação do significado, é o alicerce e fundamento de toda a acção prática” . Tenho sérias dúvidas que o aluno aprecie e compreenda esta linguagem. E o que aqui se quer dizer poderia ser dito de um modo muito claro pelos próprios autores do manual, pois é para isso que eles estão lá..
Em alguns problemas das unidades finais, o manual não cita um único filósofo dando uma ideia algo pobre do que a filosofia faz hoje em dia pelo mundo.
Uma palavra final para o aspecto do livro em termos gráficos. Quando peguei nele lembrei-me que poderia constituir uma alusão ao graffiti, com a orientação que falei acima de estar mais próximo da vivência dos alunos. Quando folhei o manual notei que o aspecto sugere a velha e tosca técnica manual do corte e cola, com marcadores fluorescentes amarelos a destacar o mais importante. Mas o conteúdo é exactamente assim também. Se nalgumas partes o manual até parece acessível, noutras é confuso e nada estimulante.
São estas as razões que fazem com que eu não vote pela adopção este manual.
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