segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Como é que ensino filosofia? Parte 5



As dificuldades


Como docente de filosofia assumo muitas dificuldades inerentes à profissão. Nem todas são explícitas para poder aqui postar no blog, mas entre as principais que deveriam ser incluídas em qualquer boa reforma do sistema educativo, destaco:


- Falta de actualização de conhecimentos em ciências da educação. A investigação que temos disponível em ciências da educação parece-me demasiado carregada pela ideologia, em sentido fraco. Trata-se de um estudo fortemente marcado pelo construtivismo. Não estou a defender que não se estude as teorias construtivistas aplicadas às ciências da educação, mas não faz qualquer sentido estudá-las como se fossem o supra sumo da teoria educativa ou fosse a única corrente pensada até aos dias de hoje. Há falta de discussão e diversificação de conhecimentos a este nível. As formações disponíveis relacionadas com as ciências da educação são, em regra, muito pobres e pouco dadas à discussão e aplicação de técnicas que possam ajudar o professor a ultrapassar as dificuldades. Mesmo não sendo a minha maior área de especialização é verdade que muitas das vezes sinto que os professores não sabem como dar respostas a muitas situações por ausência de conhecimentos que constituiriam a ferramenta essencial para ajudar a responder a situações mais complexas. São inúmeras as vezes em que as respostas não saem muito do senso comum.


- A quase total ausência de formação em filosofia em ensino é, do meu ponto de vista, trágico para o ensino da disciplina. E aqui creio que a culpa está directamente no ensino superior. Quem melhor está preparado para formar professores do secundário senão os “especialistas” do superior? Para além do mais seria essa uma forma de ir ao secundário recrutar alunos interessados nos cursos de filosofia. Não faz qualquer sentido que o ensino superior se desligue da realidade do mundo. O nosso ensino superior ainda anda de costas voltadas para os jovens e para o ensino secundário, com as consequências que se sabe. E neste ponto creio que não há responsabilidades políticas, parte das pessoas o interesse em construir a sua disciplina, trabalhar para o seu sucesso e interesse. Há todo um trabalho de divulgação junto das pessoas e das escolas a ser feito. Este descer à terra poderia ser decisivo e não implica tantos recursos quanto se possa pensar à partida. Em Portugal ainda se olha para o trabalho intelectual como se este fosse uma entidade sagrada, disponível só para alguns. O trabalho intelectual deve ser divulgado e estar disponível para os que menos acesso a ele têm.

domingo, 30 de agosto de 2009

Como é que ensino filosofia? Parte 4



O trabalho ao longo do ano exige alguma diversificação de estratégias. Normalmente não opto nem por trabalho de grupo, pelo menos no sentido habitual, nem por recursos extra aos textos de filosofia, como filmes, literatura, artes ou outros. O meu estilo de leccionação direcciona o trabalho todo em torno da discussão activa e da leitura activa dos textos. Nigel Warbuton tem um livro muito pequeno (nem 100 páginas tem), Philosophy: the essential study guide, (Routledge, 2004) que tem funcionado como um excelente guia para as minhas aulas. Segundo Warburton o trabalho de estudo em filosofia tem 4 componentes principais:


Leitura activa


Escuta activa


Discussão activa


Escrita activa


Identificamo-nos facilmente com estas 4 palavras: ler, Ouvir, discutir e escrever. Mas é na palavra “activa” que se estabelece a diferença específica do estudo filosófico. E tal resume-se de modo simples. Por “activa” o autor entende que se pensa no que se está a ler, a ouvir, a discutir e a escrever. È isto que um professor de filosofia pode esperar dos seus alunos, que deixem de ter uma atitude passiva perante os estímulos intelectuais e comecem a pensar seriamente nas coisas. Não vou aqui recensear o pequeno e útil livro de Warburton, mas é uma leitura muito boa para professores já que o autor dá exemplos práticos mostrando diferenças essenciais no trabalho de estudo em filosofia, por exemplo, com exemplos práticos, o autor mostra a diferença entre um trabalho plagiado do que se leu e um trabalho original. E mostra-o a vários níveis de desenvolvimento, isto é, desde o plágio descarado, passando por níveis intermédios de mescla entre o plágio e o original, até ao texto original.


Não podemos pedir aos nossos alunos que logo no primeiro teste sejam completamente originais e sustem bem as suas teses. É precisamente para isso que os estudantes estudam filosofia como formação geral no secundário. Temos 2 anos para ensinar os alunos a pensar pela sua própria cabeça e não faz sentido esperar que eles consigam fazer isso logo no primeiro período do 10º ano. Sobretudo há que ter consciência que os alunos progridem a ritmos muito diferentes uns dos outros. Alguns colegas dizem logo que fazem os testes diagnóstico que notam que os alunos não são capazes de raciocinar filosoficamente. Mas não há nada de espantoso nisto já que nós estamos nas escolas precisamente para lhes proporcionar essa ferramenta, a do pensamento autónomo.


A ideia de que um aluno pode filosofar incorre também em confusões. Muitas vezes há a tendência a pensar que somente os grandes filósofos podem filosofar e aos restantes resta a possibilidade de estudar o que os grandes filósofos pensaram. Podemos compreender a falsidade desta tese se pensarmos nas outras disciplinas: será que um aluno quando está em laboratório de biologia não está a fazer biologia? Se não está a fazer e estudar biologia está no laboratório a fazer o quê? O que ele está a fazer é a compreender as teorias da biologia. Ainda que a um nível muito primário ele está a praticar e a fazer ciência. Por que razão um aluno de filosofia não pode filosofar? Por não ser um filósofo? Mas será que é preciso ser filósofo para fazer filosofia ou pensar filosoficamente? Não parece que assim seja. As aulas de filosofia existem precisamente para os alunos filosofarem. E podemos estar descansados que nenhum aluno vai roubar o estatuto a Hegel ou Kant.


O ensino tem valor pois dá as ferramentas aos mais jovens para compreenderem o funcionamento do mundo. Das melhores versões de compreensão do mundo que os seres humanos inventaram e descobriram são a ciência e a filosofia. Fazer com que as pessoas, especialmente os mais jovens, realizem as suas próprias descobertas, ainda que a níveis muito simples, não é um defeito, mas uma virtude. Qualquer ser saudável é capaz de se dedicar à discussão racional de uma forma organizada. Não se pretende muito mais que isso com o estudo da filosofia.


As aulas de filosofia não existem para dar a conhecer a obra de Ingmar Bergman, Rilke ou Salvador Dali. As aulas de filosofia existem para as pessoas aprender a discutir os problemas organizadamente, ainda que se possam usar os exemplos supracitados. Nem as aulas de filosofia servem para promover os meus gostos pessoais, as minhas preferências religiosas, etc.


As aulas de filosofia podem ser muito estimulantes e diversificadas só com a discussão e leitura activas. Não são necessários mais adereços. Apesar de não trabalhar muito em grupo, tenho no entanto algumas preferências para diversificar as minhas aulas. Gosto, por exemplo, de dar as aulas com powerpoint, pelo menos as mais expositivas. Prefiro o powerpoint aos quadros tradicionais de ardósia, já que detesto o pó largado pelo giz e tenho um pequeno problema: quando escrevo nos quadros de ardósia, como muitas vezes esses estão gastos pelo tempo, canso-me rapidamente no músculo do braço. Por essa razão comprei um netbook de 8,9 “(Asus, eeepc, 901) que me dá muito jeito e tem sido um autêntico companheiro de aulas. Um dos problemas é que nem sempre tenho o projector disponível e aqui é necessário algum jogo de cintura com o funcionário que leva o aparelho à sala de aula. No mercado começam a aparecer projectores portáteis, muito pequenos. Ainda são muito caros (cerca de 300€ para cima), mas talvez num futuro próximo estes projectores venham já incorporados nos computadores portáteis, como passou a acontecer com as webcams.


Ainda assim já me aconteceram imprevistos, como chegar à sala de aula, os estores serem fraquinhos e a lâmpada do projector estar parcialmente gasta, ou seja, não se vê nada. Aqui há que contar com a mudança de planos ou partir para o plano B. Em regra sou muito rápido a decidir estas coisas. Acontece-me com frequência fazer um powerpoint no intervalo de uma aula para a outra, em 15 minutos. Basta passar a aula que tenho planificada para o powerpoint.


No passado investi em alguns filmes e documentários, mas confesso que foram sempre experiências fracassadas, pois não soube muito bem articular o conteúdo desses materiais com o conteúdo filosófico. Talvez seja uma insuficiência minha já que conheci alguns colegas com ideias fantásticas e com experiências notáveis. Mas também é verdade que nunca conheci um professor de filosofia que conhecesse bem a filosofia analítica e o conseguisse fazer sem incorrer em vagueza incompreensível para a maioria dos alunos. A verdade é que nunca conheci muitos professores com alguma formação em filosofia analítica (o que não faz, note-se, de um professor melhor ou pior professor), pelo que tenho de dar aqui o benefício da dúvida. E, depois, claro, conheço aquelas experiências completamente falhadas como a que retratei da Formiga Z, proposta do manual mais adoptado no país para o 10º ano, Pensar Azul, (Texto Editora, 2007). Ver AQUI e AQUI o que escrevi sobre a Formiga Z.


Ao longo do ano é verdade que não diversifico muito as aulas de filosofia (não vou por isso algum dia poder aspirar a ser professor titular). As minhas aulas são simples, directas e têm como preocupação central estimular os alunos a pensar sobre os problemas que proponho para discussão. É verdade que muitas das vezes tenho de me desviar um pouco dos conteúdos e problemas a estudar. Isto acontece particularmente quando tenho turmas de alunos muito calados, que raramente respondem, mesmo quando lhes pergunto directamente alguma coisa. Nestes momentos, que acorrem ocasionalmente durante alguns minutos de algumas aulas, questiono os alunos de como organizam o seu estudo, improviso uns pequenos ateliers na sala de aula sobre metodologia de estudo, proponho objectivos de curto prazo, tipo semana a semana, para os alunos cumprirem e claro que muitas destas vezes a conversa resvala um pouco para os problemas dos adolescentes, das suas angústias pessoais, etc. Sigo duas regras nestas ocasiões: aumentar a auto estima dos jovens promovendo uma ideia de que são mais capazes do que o que pensam (e regra geral penso que é assim mesmo) e, a segunda regra, é a de não alimentar exageradamente estas conversas. A segunda regra resulta da experiência passada. No meu passado profissional detinha-me um pouco a tentar compreender as dificuldades dos jovens, mas comecei a aperceber-me de que quando o faço não ajudo mais os meus alunos do que se lhes ensinar e insistir e exigir deles. Exigir deles e do seu trabalho é também fomentar uma cultura de responsabilidade e rigor. É claro que devemos uma vez mais usar do bom senso e saber interromper a aula para os ouvir. Mas qualquer cedência feita resulta em pedidos de mais cedências, pelo que não devemos pensar que algum dia podemos eliminar por completo alguma tensão que existe entre um professor que exige aos seus alunos e os alunos que querem mais facilidades.


Finalmente, uma sugestão.


As escolas estão atolhadas de horas para distribuir aos professores sem saber bem o que lhes há-de pôr a fazer. Apercebi-me dessa realidade e a verdade é que gasto muito do meu tempo particular a expor dúvidas por mail aos alunos. No início de cada ano apresento projectos à escola nesse âmbito, fazendo incluir esse trabalho no meu horário anual. Por vezes esses projectos são aceites, dependendo das escolas. È uma sugestão que ajuda a rentabilizar o nosso tempo para a nossa disciplina. É que isto de conseguir tempo para trabalhar na disciplina é cada vez mais uma luta já que os últimos governos, especialmente o último conseguiu fazer com que os professores passem a maior parte do tempo nas escolas com tarefas inúteis.


Ainda continua.... amanhã.

sábado, 29 de agosto de 2009

Estudar filosofia

9780415341806 Se alguém lhe disser que nunca teve qualquer dificuldade em acompanhar a discussão de um artigo ou livro de filosofia, ou está a mentir ou a mentir a si mesmo. A filosofia pode ser desafiadora. Ela incide em grande parte sobre problemas abstractos. Isso pode tornar difícil a tarefa de acompanhar a cadeia de argumentação. Ler filosofia não é uma questão de interpretação de factos, mas sim de lidar com ideias que podem parecer muito obscuras. Se o trabalho que está a ler foi escrito há algum tempo atrás, as ideias podem estar expressas numa linguagem arcaica. É provável que inclua termos técnicos ou palavras conhecidas usadas de maneira diferente. E, verdade seja dita, nem todos os filósofos que estudamos escreveram de forma clara. Alguns até parece deleitar-se na obscuridade da sua escrita.

 

Nigel Warburton, Philosophy: the essential study guide, Routledge, 2004, p.11 (Tradução e adaptação minha).

Como é que ensino filosofia? Parte 3


Introdução ao programa

Até aqui foi só aquecer. Agora, talvez já na terceira aula, o trabalho é sério e para andar para a frente. Neste momento o estudante já reúne informação sobre como vai ser avaliado em filosofia e quais os principais pontos do programa. As primeiras aulas do 11º ano passamos muito tempo a recorrer a pré conhecimentos, mas se eles estiverem bem sólidos vamos recuperar com muita facilidade esse tempo. Por exemplo, se as primeiras aulas do 10º estamos a ensinar os instrumentos lógicos do pensamento, com as noções de proposição, premissa, conclusão, etc. no 11º é de esperar que os alunos tenham já uma noção sólida desses conhecimentos e, nesse caso, avançamos directamente para a acção. No caso do 11º ano há uma série de noções que temos de expor antes de avançar para a discussão filosófica propriamente dita já que iniciamos com o ensino a lógica. Mas em qualquer ano, 10º ou 11º convém o quanto antes passar para a discussão propriamente dita dos problemas já que é esse o objectivo da disciplina.

Este trabalho é muito variável já que ele depende também, e muito, dos alunos que temos pela frente. Por essa razão percebemos logo nesta fase inicial que vamos ter de fazer alguns ajustes nos programas de ensino (já que eles oferecem essa possibilidade).

Um dos melhores métodos que conheço para ensinar logo nesta fase inicial é passar o maior parte do tempo da aula que podemos com perguntas. Em vez de darmos uma definição de premissa perguntamos aos alunos se sabem o que é uma premissa. Podemos fazer perguntas espontaneamente, tais como:


“podem existir premissas sem conclusão?”,


“pode existir mais que uma conclusão para várias premissas?”,


“será que um argumento pode ter somente premissas?”,


“qual a necessidade de uma conclusão num argumento?”,


etc.


Há professores muito imaginativos no modo como colocam as perguntas, outros obedecem mais aos cânones e aos manuais, outros ainda navegam com tal facilidade na filosofia que inventam problemas e questões a toda a hora. Talvez a melhor regra a seguir nesta situação seja aquela que nos diz que o ensino não é uma tarefa mecânica de despejo de conhecimentos dos outros, mas um laboratório vivo de conhecimento e por isso temos de ser muito criativos. Nem sempre é muito fácil ser criativo. Ao fim de duas aulas seguidas de 90 minutos, se a turma que vier a seguir for muito barulhenta ocorre muitas vezes termos de deixar os alunos a ler em silêncio para nosso descanso também. Não há problema nenhum nisso. É bom para eles que raramente pegam num livro para ler e bom para o professor que está um pouco mais cansado nessa altura.

Mas a lição principal é esta, a mesma que aprendemos com Sócrates: temos de estar permanentemente a colocar problemas e questões. Não precisamos de mostrar erudição, mostrar que lemos 1000 livros na vida e dominamos grego e alemão. Quanto muito, essa atitude só vai criar reverência nos alunos e progressivo desinteresse pela disciplina. É aqui que o professor tem a oportunidade de mostrar o que é ser informal, mas sério e exigente. O professor de filosofia não conquista os seus alunos atirando-lhes palavras em grego para o caderno. O professor de filosofia tem oportunidades soberanas para cativar os estudantes a gostar e estimar a disciplina. Para tal, basta que tenha um gesto tão simples como virar-se para o aluno com ar intrigado e perguntar: “mas que razão ou razões te levam a pensar assim?”. Se relermos os diálogos de Sócrates – e todos os professores leram parte desses diálogos – notamos que Sócrates conduz a discussão na descoberta de respostas. Na maioria dos diálogos Sócrates passa mais tempo calado que os seus interlocutores. E isto acontece, como sabemos, porque Sócrates conduz o seu aluno numa descoberta que tem de ser auto descoberta. E estas primeiras aulas são decisivas para colocar em prática este desempenho filosófico. Claro que temos de ter consciência que a performance de um professor pode variar muito, razão pela qual temos também de contar com a nossa espontaneidade e experiência.

Mesmo com a minha experiência que já vai quase em década e meia de ensino, são ainda algumas vezes aquelas em que falho na aplicação do método nas primeiras aulas. Estudei no ensino formal, em que o professor é que dita a matéria a estudar. Aliás, nem habituo os meus alunos a chamar “matéria a estudar” em filosofia, mas antes “problemas a discutir”. Também eu ainda sofro de uma tendência a passar muito tempo a falar, muito expositivo. Mas é precisamente isto que é necessário corrigir e é bom estarmos conscientes que não corrigimos todos os defeitos num ano. Vamos corrigindo e aprendendo. A graça de um trabalho criativo como ensinar filosofia é precisamente essa.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Como é que ensino filosofia? Parte 2



Inteirar-me das turmas e horário – preparar as primeiras aulas com critérios de avaliação e regras gerais de funcionamento da aula e da disciplina.


Tomar conhecimento das turmas e anos que vou leccionar é o passo seguinte. Logo no primeiro dia de aulas posso inserir mais dados no portfólio e organizar as turmas nas folhas de cálculo. Durante as primeiras semanas de aulas esta é uma tarefa quase diária uma vez que leva algum tempo até que as turmas se organizem completamente. Há alunos que desistem, outros que são transferidos, etc.

A primeira aula pode ser decisiva. Durante todos estes anos de ensino ouvi as mais variadas histórias sobre a primeira abordagem aos alunos. Estou consciente que não existe um método que acerte completamente e um mesmo método pode ser bom nuns casos e falhar noutros. Mas seja qual for o método não há nenhum que acerte completamente, nem outro que falhe completamente. Para esta primeira abordagem conto também com a minha personalidade. Cada professor deve seguir a sua.Parece-me mau mostrar uma personalidade que não se tem. A informalidade, mas séria e com método pode ser a linha principal orientadora. O objectivo é iniciar um trabalho de leccionação com estudantes adolescentes e, acima de tudo, convém ser firme, mas saber contornar a firmeza em alguns momentos. Mas não se pode de alguma forma quebrar a firmeza nos critérios de avaliação. Passo os primeiros 90 minutos com cada turma a clarificar muito bem como vão ser avaliados ao longo do ano e, em regra, marco logo as datas dos testes para o ano inteiro. Explico muito bem, fazendo-me acompanhar de uma grelha aprovada em grupo, do que se avalia em filosofia e como se avalia. Explicito o que é que se avalia nas atitudes e valores numa aula de filosofia. Pode-se recorrer a uma margem relativa de negociação e o próprio programa deve contemplar essa margem, mas em última instância cabe ao professor decidir e não aos alunos sob pena de se instalar a confusão. A experiência diz-me que os alunos não gostam nem de professores demasiado autoritários, nem demasiado permissivos, pelo que encontrar o meio termo é a tarefa destas primeiras aulas.

Em alguns casos consigo cumprir com este ponto em metade do tempo da aula e, nesses casos, avanço logo para a ficha diagnóstico. Com esta ficha começo a ter uma primeira ideia da capacidade de cada aluno em aplicar técnicas de raciocínio. Em regra faço esta ficha com pequenos exercícios de raciocínio e algumas questões de resposta curta. No 10º ano temos adoptado o Arte de Pensar que é um manual que rentabilizo muito mais que qualquer outro e, nesse caso, recorro à ficha que vem com o manual.

Se for o caso desta ficha passar para a segunda aula dou somente metade da aula para a sua realização e aproveito a outra metade para fazer a primeira abordagem ao programa. De um modo muito superficial informo os alunos sobre as unidades a estudar.

Nestas primeiras aulas surgem questões habituais dos alunos. Se o professor é exigente nas notas finais, se faz testes difíceis e, para as turmas do 10º ano, se a disciplina é difícil. Também para estas respostas é necessário recorrer ao bom senso. Em regra respondo sempre que me considero um professor exigente comigo mesmo, pelo que é natural que exija trabalho e empenho dos alunos para alcançarem bons resultados. Em relação aos testes informo os alunos que eles não são difíceis já que não recorro às famosas ratoeiras. O teste não é para apanhar o aluno em falso, mas é um momento importante da sua avaliação, o momento em que o aluno pode mostrar que conhece as matérias e que sabe pensar sobre elas. Mas também é verdade que o bom senso indica-me que devo desdramatizar um pouco os testes. Como é que o faço? Os nossos alunos estão habituados a que os testes difíceis representem algumas coisas, nomeadamente:


- Perguntas rasteira;


- Dezenas, muitas vezes chega a uma centena, de páginas para ler;


- Decorar o que estão a ler.


E é aqui que a minha intervenção começa a desdramatizar os testes. Não vai ser necessário ler centenas de páginas, nem decorar o manual, muito menos as perguntas rasteira. Não podemos esquecer que os estudantes tem 4 ou 5 disciplinas que lhes pede mais tempo de estudo. Se cada uma delas remeter para 70 ou 90 páginas de estudo para a realização de um só teste, isso significa que a maioria dos estudantes não têm sequer tempo de compreender e assimilar conteúdos. Os professores queixam-se habitualmente que os alunos não têm hábitos de leitura formados. Ora, é contra producente pedir a quem não tem grandes hábitos de leitura, que leia cerca de 50 páginas para um só teste. Isto multiplicado por 5 disciplinas, por exemplo, dá 250 páginas. É muito? Não. Mas é igualmente verdade que jovens que não tem os tais hábitos de leitura não se vão pôr a ler 250 páginas para realizar os primeiros testes. É mais sensato remeter no máximo o estudo de umas 20 páginas por teste. Isto se tivermos presente que compreender um conteúdo leva demasiado tempo a um jovem. O que se pede ao estudante é que trabalhe um pouco, passo a passo e sobretudo consiga aplicar as técnicas do raciocínio filosófico. Para além de tudo um dos momentos de avaliação, no terceiro período, é a redacção do ensaio argumentativo e aí sim o aluno vai ter de ler mais alguma coisa (ainda que muito longe da centena de páginas).


Estas são dificuldades que enfrentamos no início do ano. Os alunos estão habituados a ter de ler para decorar. Ora, estudar não é isso, ainda que tal seja o resultado de um ensino que ainda carrega o peso do formalismo do passado, pelo menos nos cursos gerais. Nestas primeiras aulas é necessário muito cuidado para explicar pacientemente aos alunos como se estuda e trabalha em filosofia. Muitas das vezes, quando tal se faz sentir necessário, há que aplicar aqui uma estratégia que traz sempre bons resultados. Arranja-se um bom texto argumentativo, acessível a estudantes de secundário e leva-se para a aula. Começa-se por explicar que se vai ensinar a estudar filosofia. Aí já se pode começar a trabalhar a tese, razões que apoiam a tese e a conclusão, que são pequenos elementos indispensáveis a um bom ensino da filosofia e que muitos estudantes não dominam. Para alunos do 10º ano esta tarefa tem enormes vantagens. É que os alunos começam desde cedo a perceber que não vão decorar textos, mas sim discutir problemas, aqueles que os textos levantam. É certo que não é do pé para a mão que se motiva logo no início uma turma de 20 alunos, mas nós somos professores, não somos profetas e como tal não os podemos salvar a todos. E também devo considerar que aparecem muitos contra tempos principalmente no início: alunos chico espertos que interrompem para mandar piadas marginais, outros que pedem para ir à casa de banho a ver se cola e outros ainda que querem é falar e tentam desviar o assunto para aquilo que lhes interessa. A regra a seguir sempre é a da firmeza e atacar logo estes problemas na 1ª aula. Ninguém vai à casa de banho (a experiência mostra-me que os pedidos de ida à casa de banho ocorrem com muita frequência nas primeiras semanas de aula e ao fim de 1 mês desaparecem quase por completo se o professor for firme) e aos chico espertos já lhes explicamos que as atitudes e valores a avaliar em filosofia é o saber ouvir o outro, sem o ironizar no mau sentido e sobretudo saber participar activamente nas discussões. Ainda há outros contra tempos que me lembro, como aqueles alunos que estão com o caderno novo e esferográfica na mão e ficam zangados se o professor não passar metade da aula a ditar apontamentos. O ensino não tem só coisas boas e muitas mais vezes que as desejáveis, cria maus hábitos nas pessoas.

O próximo post mostra como entro no trabalho duro. Fica para amanhã.

Como é que ensino filosofia? Parte 1


Vou dar início a uma série de pequenos posts onde tentarei mostrar como ensino filosofia no ensino secundário. Vou postando por partes. Esta primeira parte obedece a um trabalho ainda prévio à leccionação propriamente dita. Espero que este trabalho ajude os colegas que visitam o blog.



Portfólio – trabalho prévio



Praticamente no início de mais um ano lectivo, ainda que esteja a gozar os últimos dias das férias, aproveito para organizar o portfólio para o próximo ano, subdividido em várias secções. Desde já, a primeira dificuldade é não saber com que anos e turmas vou trabalhar. Esse trabalho, provavelmente o mais importante de todos, muitas das vezes acaba a ser feito em cima da hora, com as imperfeições naturais que daí decorrem. Para o portfólio utilizo uma daquelas pastas da Ambar com micas agregadas. Lá coloco, numa ordem que já uso há uns anos, horário do professor (deixo uma mica vazia até o ter em mãos), os critérios de avaliação, turmas e grelhas de classificação, textos e materiais extra e um plano prévio de actividades (normalmente de continuação já que ando há uns anitos na mesma escola). Na qualidade de delegado de grupo, uma das propostas que fiz inicialmente ao grupo foi a de fazer planificações que coubessem no máximo em duas folhas. Assim é de fácil consulta e andamos com as planificações sempre à mão. Planificações de 15 páginas significa que são arquivadas e nunca mais ninguém olha para o documento. A portabilidade foi um dos critérios que o meu grupo de trabalho adoptou.

Uso o portfólio em versão digital e imprimo somente o material estritamente necessário para andar comigo dentro da pasta no portfólio fisíco. Estes portfolios da Ambar tem a vantagem de terem no interior da capa dois lugares para cd. Isso permite-me, no final de cada ano, gravar tudo em cd e arquivar. Não se espere daqui que tudo esteja na sua organização perfeita. Não existem métodos ideais e durante o ano são muitos os documentos que vou acumulando, de modo que passado uns anos trabalhar com o portfólio nem sempre é tarefa fácil. E com a burocracia cada vez maior nas escolas, ainda mais complicado é. Por essa razão também mando muita coisa para o lixo, ainda que tenha sempre receio de enviar para o lixo material que possa vir a fazer falta.

Como tenho alguma prática de ensino neste momento não estou ainda a trabalhar directamente nos programas já que nem sei bem quais os anos e turmas que vou leccionar. Esta tarefa é tanto mais complicada quanto menos anos de ensino temos e é um erro que as escolas deviam ter a preocupação de corrigir. Claro que muitos professores só querem saber do horário cedo para reclamar que queriam esta ou aquela tarde livre, mas cada vez mais os professores necessitam dos horários atempadamente para aproveitar a primeira semana de Setembro para preparar os programas. Se, por exemplo, me couber em má sorte leccionar Psicologia A ou B, terei de passar um fim de semana inteiro a preparar a primeira unidade já que nunca leccionei esses conteúdos. E isto porque os horários são entregues aos professores pouco tempo antes do ano arrancar. No ano seguinte ao meu estágio fui parar a uma cidade distante do interior do país e entregaram-me um horário com filosofia do 10º ano, 11º e Psicologia e pediram para começar a trabalhar nesse mesmo dia. Nunca tinha leccionado Psicologia na vida. No ano seguinte fui parar a uma Vila do interior e apresentei-me na escola às 9h da manhã e meia hora depois estava já dentro de uma sala de aula. Assim é mais complicado realizar o trabalho prévio de estudar os programas, preparar as aulas a partir do manual, etc. isto para já não referir a probabilidade de termos um mau manual adoptado e nesse caso ter de fazer um autêntico trabalho de pesquisa, corte e costura ao longo do ano lectivo. Fazer isto para 3 disciplinas diferentes (em muitos casos é mais) é uma tarefa complexa e uma circunstância conhecida só por quem está bem por dentro da realidade que é uma escola, os professores.

Este é o trabalho que ando a realizar neste momento, portanto toda a gente já sabe o que ando a fazer. Os passos que seguem é o que irei fazer a seguir ao portfólio. Nada disto, entretanto, tem muito a ver com ensinar filosofia, mas mais com o ensinar em geral. Mas sem este trabalho prévio, mais ou menos elaborado, é impossível chegar a uma sala de aula. Esta é também uma parte importante do que aprendem a fazer os futuros professores nos estágios. Com a experiência este trabalho torna-se mais organizado, mais fácil de fazer. É mais fácil pois já temos um conjunto de materiais organizados e temos também experiência. Mas este trabalho é enorme para um professor nos primeiros anos de profissão que anda de terra em terra com a casa às costas e é obrigado a mudar de escola vezes sem conta. É que cada escola tem os seus métodos de trabalho próprios. Há escolas mais burocráticas, outras menos, grupos de trabalho mais activos e outros menos. Para além disso existe a mania de empurrar todo o trabalho burocrático para os mais novos (também já fui vitima disso) e, como tal, quanto menos anos de serviço tem um professor, mais embaraçado pode ficar com os inícios de anos lectivos. Resta ainda dizer, pelo menos para os leitores não professores, que 90% se não mesmo 100% deste trabalho é realizado em casa, razão pela qual a sala do meu T2 está transformada numa biblioteca / escritório.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O desejo de ser engenheiro

DSCF0369 Aproveitei o mês de férias em Agosto para renovar os meus cartões de identificação e tirar o cartão do cidadão. Quem me atendeu foi um jovem adolescente de 15 anos. Achei curioso o jovem estar ali a trabalhar e perguntei como é que estava ali a realizar tal trabalho. Respondeu-me que pediu a um familiar para poder estar ali a aprender durante as férias já que era melhor para ele do que estar em casa a ver TV. Devo registar que todo o trabalho dele estava a ser acompanhado por um adulto. Mas é verdade que o jovem fez o trabalho todo direitinho e fiquei contente com o atendimento (provavelmente por estar tão habituado a comunicar com jovens desta idade). Claro que não resisti a colocar as habituais questões sobre a sua vida escolar e as suas expectativas futuras. Quando lhe disse que era professor de filosofia, o jovem parou as tarefas e olhou para mim perguntando: “mas o que vou estudar em filosofia?”. Ora esta é uma questão que não me assusta e tenho um enorme prazer em responder. Quando dei a resposta mais curta, mas mais clara que me foi possível, o jovem ficou uns segundos com ar pensativo e respondeu: “acho que vou gostar, pois gosto das disciplinas que me fazem pensar”, ao que eu ripostei: “então deves gostar de ciência, por exemplo. Queres ser cientista?” Mas o jovem respondeu que não quer ser cientista. O que ele quer é ser engenheiro de informática. Mas quando questionei o jovem sobre a razão pela qual ele quer ser engenheiro de informática, notei que ele tem uma imagem distorcida do que pode fazer um engenheiro de informática. Tem uma ideia ainda muito elementar. Até aqui nada de grave já que ainda é muito jovem e não se espera que tenha já uma ideia consistente sobre o que é a engenharia. O que me parece mais grave é a ideia que o ensino lhe vai incutir até à conclusão do ciclo de ensino do secundário, do que é a informática. A grande maioria dos nossos alunos pensam que a informática é dominar o Word, o Windows e fazer um blog. Raramente nessa disciplina usam a inteligência e o raciocínio. Não aprendem, por exemplo, técnicas básicas de programação, não se confrontam com problemas. Ora, o engenheiro é aquele que cria engenhos e para tal é um pensador que aplica o seu raciocínio numa área específica. Mas os alunos que concluem o secundário não fazem pálida ideia que um engenheiro de informática possa ser tal coisa. O nosso ensino é assim. Há a tendência pela nossa parte, profissionais da filosofia, a pensar que é uma realidade que afecta a filosofia, mas tal não é verdade. O mau ensino não é exclusivo da nossa disciplina e atravessa-as a todas, com piores e menos piores efeitos.


Nota: a fotografia lá a cima é mais uma obra de arte minha :-)

Felicidade

DSCF0251 Ao pegar no último capítulo do livro de James Rachels recentemente publicado entre nós, Problemas da filosofia (Gradiva), li que a felicidade não tem uma relação directa com a riqueza e a posse de dinheiro. Já tinha lido esta tese com uma evidencia forte em Peter Singer , Como havemos de viver? (Dinalivro). Parece que há estudos que comprovam esta tese. De modo até muito intuitivo concordo com a tese (até porque a mesma me conforta quando tenho pouco dinheiro). Mas também li que alguém que acredita que a sua actividade tem valor tem mais possibilidade de ser feliz. Singer faz uma distinção útil entre valor intrínseco e valor extrínseco. Segundo esta distinção a riqueza material, o dinheiro só possui valor extrínseco, isto é, funciona como um meio para valores intrínsecos. De um modo mais claro, o dinheiro possibilita que alguém possa ajudar os menos favorecidos com acções humanitárias. Segundo ainda esta tese, só actividades com valor intrínseco são fortes no sentido de fazer alguém mais feliz. Mas será mesmo assim? Será que o dinheiro não tem valor intrínseco? Em que sentido uma acção como ajudar alguém a viver melhor faz alguém mais feliz do que ter dinheiro? Será que ter a acumular dinheiro não pode ser uma actividade com valor intrínseco, valor por si mesma? Por quê? Será que a posse de dinheiro não pode fazer a vida de alguém uma vida com sentido? O que pensa o leitor?

sábado, 22 de agosto de 2009

Encontro nacional de professores de filosofia

Já está mais que divulgado nos canais conhecidos, mas não poderia deixar passar em branco este importante acontecimento. Infelizmente nunca consigo estar presente, mesmo considerando que as datas são as mais adequadas e as melhores segundo o calendário escolar português. Este ano o encontro conta com uma participação de peso, Richard Swinburne, um dos mais importantes filósofos actuais da filosofia da religião. É uma boa oportunidade para presencialmente aprender e discutir os problemas desta área ainda tão estudada da filosofia. Se alguém se oferecer como repórter para o FES fico desde já agradecido. A organização é da Sociedade Portuguesa de Filosofia.

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segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Reverência linguística e filosofia

DSCF1659 Uma das coisas que menos gosto de fazer é divulgar aqui no blog textos, principalmente os da revista Crítica, já que assumo que o meu blog vive na sombra do trabalho imenso da Crítica. A diferença é que a Crítica é uma revista profissional de filosofia, ao passo que o meu blog não passa de apontamentos breves e pessoais, enriquecido com variadas referências bibliográficas e afins. Como participo no blog da Crítica e faço assistência editorial à Crítica já pensei mesmo em extinguir este blog. Mas por coincidência na altura em que pensei tal coisa notei que o blog estava de viva saúde em termos de afluência diária. Cerca de 300 visitas diárias é muita fruta para um blog de filosofia. Entretanto perdi a conta mas creio que neste momento o blog está com menos visitas, mas em Agosto a maioria dos leitores estão deitados na areia de uma das muitas praias da costa portuguesa. Serve isto para justificar, espero que bem, que algumas vezes não resisto a citar um ou outro texto publicado na Crítica. O último deles, A traição aos gregos, de Gonçalo Armijos Palácios é um toque directo e claro na ferida. Recordo que durante o meu curso de licenciatura imensos estudantes viviam oprimidos com a ideia de terem de – como eles afirmavam – pensar em alemão ou grego. Para tal organizavam-se seminários de leitura do texto filosófico em grego e alemão na faculdade. E não era raro os professores ostentarem as suas edições no original. Nada disto seria problema, até porque também me parece uma vantagem ler as obras no original, não fosse a ideia maluca de que pensar a sério teria de ser em grego ou alemão. Quem não dominasse alemão ou grego era coxo para a filosofia, mesmo que não soubesse o raio de um modus ponens. Ah, e o francês era obrigatório e lá iam os estudantes à Marquês de Tomar comprar as edições em francês que depois ostentavam debaixo do braço. Edições portuguesas eram para os pobres de espírito. Carl Sagan não sendo filósofo, não passava de um mero divulgador de ciência. Russell era um filósofo menor do circulo de Viena (observe-se o erro). Esta atitude universitária motivava 3 ou 4 alunos por turma a estudar grego e alemão e a ler as investigações lógicas de Husserll. Ou então motivava 2 ou 3 alunos a ler a passagem da crítica da razão pura para a prática e passarem a vida com 30 páginas de texto com análises que não lembra a ninguém. Para dar um ar de intelectual engraçado, alguns relacionavam a Mafaldinha com Descartes, elaborando teses em volta de um conceito que atribuíam a Descartes, mas que mais ninguém via esse conceito a não ser o iluminado. Nem o próprio Descartes topou tal coisa! A maioria dos estudantes eram atirados directamente para o desinteresse pelo curso e acumulavam toneladas de apontamentos das aulas que reproduziam as palermices dos professores e completavam o seu estudo com a história da filosofia de Nicola Abagnano, um autor italiano e uma das histórias da filosofia que mais facilmente e mais baratas se encontrava nas livrarias. Grande parte destes estudantes eram absolutas máquinas reprodutoras e passaram a interessar-se somente na conclusão do curso com a melhor média possível. Foi assim que muitos destes estudantes enganaram os mestres e acabaram as suas licenciaturas com médias mais elevadas. Ainda hoje não é raro encontrar nas escolas públicas espécimes dos que classifiquei atrás, os tais que liam – ou diziam ler – em alemão ou grego. Cheguei a observar a situação caricata de um professor que tinha um livro de filosofia em edição brasileira, mas encapou-o e colocou na capa, à mão, o título da obra em alemão. Ah, e o grosso dos estudantes, os tais que liam o Abagnano, jamais podiam levar esses livros para a faculdade debaixo do braço. Tal era sinal de repulsa pelos mais iluminados pela mão divina de Heidegger.

Mas a língua sempre me pareceu uma questão, apesar de importante, secundária (no sentido em que há outras técnicas que tem de ser aprendidas e que não se aprendem) para se poder pensar filosoficamente. Mas, afinal, não se pensou já com muito rigor, em grego, latim, francês, alemão ou inglês? E o que leva um filósofo como Descartes a escrever em latim? Será porque o que escreveu em latim é mais relevante do que o que escreveu em francês? Ou teriam sido outras razões que levaram Descartes a escrever em latim? Acaso as obras em latim de Descartes são mais importantes do que as escritas em francês? Afinal qual é a vantagem de nos nossos dias um estudante ler inglês? Mais acesso à bibliografia central. Nada mais. De resto o mesmo estudante se tiver que pensar filosoficamente tanto o faz bem em português, como em inglês ou alemão.

O texto publicado na Crítica toca nestes aspectos de forma muito clara. O autor defende que não existe qualquer boa razão para pensar a superioridade filosófica de uma língua em relação a outra, a não ser razões imaturas de reverência pelos que se consideram ser autoridade.

Vale a penaler o texto. Publicado AQUI.

Nota: a foto lá em cima é da minha autoria e o candeeiro encontra-se nos Prazeres, ilha da Madeira

O mundo, raciocínio e demónios

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O mundo está cheio de fanatismos. É o que mais há. Até as tecnologias são levadas ao extremismo do fanatismo de tons religiosos. O mundo está infestado de demónios. Todos os dias ouvimos notícias tolas e sem qualquer fundamento racional. Esta é também a razão principal pela qual o ensino da filosofia a jovens é tão relevante, para desenvolver o pensamento crítico e autónomo. Um bom ensino da filosofia é um bom antídoto (há muitos outros) para o raciocínio autónomo. Recentemente vi na TV algumas notícias sobre Michael Jackson. Entre algumas outras versões, das mais tolas destaco estas duas:

1) O fantasma de Michael Jackson anda em Neverland.

2) Michael Jackson era um extra terrestre (por acaso também me pareceu muitas vezes).

O que é que há de tolo nestas versões? É que qualquer uma das duas não possui qualquer sustentação racional e são baseadas em crenças falsas, pelo que não as podemos conceber como conhecimento racional e efectivo.

Mas como compreender que estas versões são tolices e não simplesmente acreditar cegamente e confortavelmente nelas? Uma das boas formas é começar a ler alguma boa introdução à filosofia. Talvez o mais acertado ainda fosse ler alguma boa introdução à epistemologia e avaliar como as crenças humanas são formadas. Na falta de disposição para o exercício essencial filosófico, que tal ler a obra de Carl Sagan, Um mundo infestado de demónios, Gradiva? Trata-se de um livro que nos ajuda a perceber a origem dos mitos e dos fantasmas que muitas vezes nos povoam a mente. O tema dos extra terrestres, muito em voga na altura da edição original do livro, tem um tratamento de destaque. Mas o livro aborda ainda questões relacionadas com a natureza das crenças religiosas e de modo muito claro explica ainda como se forma falácias no raciocínio.

Claro que para a leitura atenta é necessária abertura cognitiva, isto é, o leitor tem de estar disponível para questionar as suas próprias crenças. Se assim é temos ainda um pequeno problema para responder. Como fazer com que um fanático seja capaz de questionar as suas crenças? Não é próprio do fanatismo pressupor que as suas crenças estão já mais que justificadas? Talvez aqui seja melhor ir um pouco atrás e ler mesmo algo de filosofia. A minha sugestão é que se comece pela Alegoria da Caverna de Platão. Sem grandes rodeios é possível que o fanático compreenda a sua circunstância no mundo. Mas, mesmo pressupondo a leitura inicial de Platão e se seguíssemos as suas premissas, só na educação temos uma resposta eficaz para a formação do pensamento crítico. O fanatismo não é algo que se abandone ao fim de 300 páginas lidas. Mas tem de se começar por algum lado.

DEF 2.0

def2 Está para breve a edição do Dicionário Escolar de Filosofia (DEF), organizado por Aires Almeida. Ao que soube, a 2ª edição é maior que a primeira, mas é indiscutível que o DEF tem sido uma ferramenta de trabalho indispensável para o trabalho a desenvolver com as matérias de ensino no secundário, sendo igualmente útil para pesquisas rápidas. O DEF tem uma edição online (ver também na barra acima). A editora é a Plátano.

sábado, 15 de agosto de 2009

Manuais - Este amor pelo saber

este amor Eis o primeiro manual chegado às minhas mãos para as adopções de 2008. Sendo o primeiro merece uma consideração preliminar: a crítica de manuais pretende-se pedagógica e colaborativa. O interesse é chamar a atenção de aspectos que me parecem errados e que, continuamente, aparecem nos manuais. Por outro lado pretendo colaborar com os colegas professores de filosofia nas suas adopções. O blog está aberto à crítica, pelo que os colegas que discordarem das minhas opções podem enviar os seus textos que publicarei com gosto. Sabemos que existem muitas filosofias diferentes, mas defendo que existe um modo de filosofar. Por outro lado não compactuo com os manuais do «eduquês» pelas razões que frequentemente tenho apontado, mas que se podem resumir a:

1º Não estimulam o pensamento crítico do aluno.

2º Transformam o ensino da filosofia em algo que tem de tudo menos de filosofia desprestigiando a própria filosofia e degradando o seu ensino.

Creio que os leitores deste blog estão já familiarizados com estas ideias, pelo que me poupo ao trabalho de as argumentar outra vez. Com esta posição, penso que é defensável a ideia de que se pode ensinar filosofia a partir de referências extra filosóficas, desde que tal seja concebido com o método próprio da filosofia. Para se fazer um bom manual não é necessário cair-se no erro sistemático de que se tem de apresentar um teatro de fantoches. Um manual do «eduquês» dificilmente será um manual rigoroso, mas aceito também que o «eduquês» seja defensável em determinadas circunstâncias. Também é claro que não há um manual que seja o El Dourado do ensino da filosofia, mas há certamente manuais melhores que outros. Como me dei conta no ano passado para os manuais do 10º ano, existem manuais de filosofia excelentes (o que não me parece que existisse há uns anos atrás, razão pela qual nunca me interessava pelos manuais), manuais bons, manuais razoáveis e manuais medíocres. Pela minha vontade eliminaria de uma vez por todas os medíocres. E existem manuais medíocres que não o eram aqui há uns anos, mas hoje em dia existe bibliografia e informação suficiente para não repetir erros do passado. Se há uns anos esses manuais eram a realidade possível, hoje são a realidade impossível.

Por fim, claro que a história dos manuais é delicada porque ainda é um negócio rentável. E ainda bem, caso contrário não existiria qualquer estímulo para que um professor dispense muitas horas da sua vida a conceber um manual. Acontece que quando o negócio é bom é natural que atraia também os menos talentosos e interesseiros no êxito financeiro. Nas minhas críticas alheio-me sempre deste aspecto, que creio não ter interesse discutir nem estou à altura para tal, mas sei que ele existe. Nem sei se vou ter tempo para fazer a crítica de todos os manuais, pelo menos dos que me chegam às mãos. Pelo menos vou fazendo o possível. Passe as justificações preliminares, apresento o primeiro manual.

Amândio Fontoura, Mafalda Afonso e Maria de Fátima Gomes, Este amor pelo saber, A Folha Cultural, 2008

Ficha:

Qualidade do manual: muitos capítulos a rever e algumas opções didacticamente discutíveis

Cumpre com a finalidade? – Se o professor souber corrigir o manual cumpre.

Eficácia: satisfatória

Classificaria o manual Este Amor pelo Saber (A Folha Cultural) como um manual razoável. Poderia ser um manual muito melhor. Não o é por algumas opções pedagógicas que me parecem pouco consensuais e pela repetição de alguns erros infelizmente muito comuns.

Mas vamos aos erros e, depois, às opções menos consensuais.

Logo no primeiro capítulo os autores apresentam a conhecida distinção entre raciocínios analíticos e raciocínios dialécticos. Apresentam os raciocínios analíticos como fazendo parte do âmbito da lógica formal, ao passo que os raciocínios dialécticos “ganham sentido no contexto de uma teoria da argumentação”. Acontece que os autores estão a fazer uma confusão. Tanto os argumentos dialécticos como os demonstrativos, assim caracterizados por Aristóteles, buscam a verdade, sendo a diferença que nos dialécticos as premissas são discutíveis porque as pessoas discordam do que é verdade. Logo à frente (p.14) os autores definem argumentação como a “apresentação de considerações não demonstrativas, mas opinativas”. Isto é obviamente falso, pois pode-se argumentar demonstrativamente; quando argumentamos que a Maria não está na praia porque a vimos agora mesmo no cinema, estamos a argumentar demonstrativamente. Todo este capítulo contém imprecisões que, com efeito, não afectam de forma decisiva um bom ensino da filosofia. Mas não existe qualquer razão para definir dedução como o raciocínio que vai do geral para o particular, ao passo que a indução é o contrário. Isto é falso. Se eu disser “alguns lisboetas são benfiquistas, logo alguns benfiquistas são lisboetas”, trata-se de um argumento dedutivo e, com efeito, não parte do geral para o particular. Ele é dedutivo porque se a premissa for verdadeira é impossível que a conclusão seja falsa. Por outro lado, se eu disser “Todos os japoneses observados até hoje são simpáticos, logo o Akira que é japonês é simpático”, é um argumento não dedutivo no qual a premissa é geral e a conclusão particular. Não faz qualquer sentido continuar a cometer estes erros quando têm sido sistematicamente apontados desde há anos. E logo a seguir não se compreende o exemplo dado no manual:

Nenhuma lisboeta é sueca

Helena Roseta é Lisboeta

Logo, Helena Roseta não é sueca

Os autores referem - o que está certo - que a segunda premissa é particular. Mas, então e em que ficamos? Primeiro afirmam que deduzir é partir do geral para o particular e depois dão um exemplo de um argumento com uma premissa particular que chega a uma conclusão particular. Isto significa  que se está a partir do particular para o particular. Torna-se evidente que há aqui confusões a serem desfeitas. Os autores fazem ainda uma associação entre dedução e ciências exactas e indução e ciências experimentais. Ora bem: primeiro, algumas ciências experimentais são exactas, como a física, e, segundo, a dedução é muito usada em filosofia, que não é uma disciplina exacta.

Os autores definem correctamente que num argumento dedutivamente válido a verdade das premissas implica a verdade da conclusão. Esta definição não é a mais fácil para os estudantes porque podemos ter argumentos válidos com premissas falsas e conclusão falsa, ou até com premissas falsas e conclusão verdadeira. Por essa razão a definição mais adequada é que, num raciocínio dedutivamente válido, é impossível ter a conclusão falsa se as premissas forem verdadeiras, mas tudo o resto pode acontecer. Além do mais podemos ter um argumento com premissas verdadeiras e conclusão verdadeira e ser inválido. A única coisa que não pode acontecer e que perfaz a regra é mesmo isso, que é impossível que a conclusão seja falsa se as premissas forem verdadeiras. A definição de validade explica-se de um modo muito simples:

A neve é verde e as nuvens amarelas

Logo, a neve é verde

Tanto premissas como conclusão são falsas. Mas vamos lá imaginar um mundo possível no qual a neve fosse realmente verde e as nuvens amarelas. Nesse mundo a premissa seria verdadeira. Haveria alguma forma de, sendo a premissa verdadeira, a conclusão ser falsa? Não. E isto é o que explica a validade formal. O argumento é dedutivamente válido, mas não é sólido e muito menos cogente (estas noções não aparecem no manual). O manual dá uma ideia errada de que a lógica formal é muito rigorosa e virada para as ciências e a lógica informal muito subjectiva e virada para a argumentação, opinião e filosofia. Começa logo aqui a dar-se uma ideia espalhafatosa do que é a filosofia e, pior ainda, uma ideia falsa.

Creio que daqui já se retém uma ideia mínima das cenas dos próximos capítulos.

Em relação às opções pedagógicas 

Este manual tem opções pedagógicas e didácticas muito discutíveis. Ainda que resumida a uma página não vejo qualquer vantagem em ter incluído a fenomenologia, pelo menos do modo como foi incluída. Ou se clarifica o problema ou se ele não é claro mais vale nem abordá-lo. O manual é igualmente fraco nas propostas de actividades, mas neste ponto até entendo que nós é que estamos habituados a que os manuais venham carregadinhos de actividades, quando as podemos criar com facilidade se tivermos um bom manual.

Conclusão

Alguns erros cometidos neste manual são muito comuns e aparecem com frequência. Como assim é podemos criar alguma tendência a pensar que não se tratam de erros, mas a prova dos nove reside na consulta de alguma da bibliografia central. Basta comparar três bons livros e percebemos de imediato onde estão os erros, pelo menos os erros mais imediatos e básicos. Não tenho qualquer dúvida que existe um esforço por parte dos autores em apresentarem um manual simples e eficaz, mas os erros do primeiro capítulo, de que me dei aqui conta somente dos mais básicos, desmotivam para a leitura dos capítulos seguintes. O professor que ensinar por este livro, se quiser um ensino estimulante da disciplina, vai ter de emendar constantemente o manual.

Graficamente o manual é bonito embora eu continue a pensar que se exagera nos manuais de filosofia de fotografias que são mais condignas de um catecismo. Dá a sensação de se ter nas mãos um objecto de propaganda religiosa tal é a pimbalhada das imagens. E isso fica mal, dá uma ideia patusca e pouco séria da filosofia e não entusiasma nada os jovens. Aliás durante anos ensino com fotocópias e os alunos não é por aí que desmotivam.

De resto, os autores têm aqui uma boa base para fazerem uma edição posterior corrigida. Compreendo que não é fácil e adivinho que fizeram aqui um esforço genuíno, mas é necessário limar as arestas e, sobretudo, corrigir o que há a corrigir.

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

A insustentável leveza do Arte

arte de pensar Para falar outra vez neste manual tenho de fazer algumas considerações preliminares que possam justificar a minha posição. Hesitei muito em escrever sobre o Arte de Pensar do 11º ano e isto porquê? Porque já tenho falado muito nele (mesmo que na última fase tenha divulgado mais outros manuais – como por exemplo os excertos que divulguei do manual da Plátano de Luís Rodrigues) e, claro, é preciso evitar os exageros emotivos. Ao princípio pensei que os leitores deste blog já conhecem o que penso em relação ao Arte de Pensar, pelo que até pouparia algum tempo que poderia dispensar para outros manuais. Cheguei até a pensar que seria uma boa opção falar do Arte de Pensar depois do período das adopções, mostrando dessa forma que não possuo qualquer interesse comercial com o manual.

Com efeito, chegou-me hoje o manual às mãos e, assim que o comecei a folhear e ler algumas passagens, imediatamente percebi que, ainda assim, teria algumas coisas a dizer sobre esta nova edição. Mas o problema permanece: não encontro erros substânciais no manual. Como então fazer uma crítica que não seja exageradamente elogiosa sendo que não encontro erros no manual? Muito honestamente, não sei como o fazer. Daqui a 10 anos este manual estará, com certeza, desadequado ao panorama, como muitos outros manuais estão hoje em dia, uma vez que são feitos da mesma forma que o eram há 10 anos, mudando somente as qualidades gráficas. Se daqui a 10 anos o Arte de Pensar continuar igual – se existir – nessa altura descansarei os meus leitores. Por agora, estou realmente num dilema. Será que devo calar um manual para o qual praticamente só tenho elogios? Porquê? A solução que adoptei é esta que a seguir apresento: vou indicar meia dúzia de vantagens de estudar e ensinar com o Arte como guia para os colegas ao mesmo tempo que faço um convite aos leitores que possam enviar, ou para os comentários, ou para o meu e-mail, os erros do Arte de Pensar que, entretanto eu não sei ver. Por outro lado um manual até pode ter meia dúzia de erros (o que se deve evitar), mas ter potencial didáctico. Nesse sentido peço também aos leitores que enviem as suas críticas de falta de potencial didáctico do Arte de Pensar. Se os leitores quiserem escrever um texto para publicar no blog, ainda melhor. Creio que esta prática e partilha é importante e, a par disso, ajuda-me a ver aquilo que sozinho não consigo ver. Uma vez revelada a minha opção que corresponde exactamente ao que sinto (aproveitando a informalidade de um blog) resta-me apontar a tal meia dúzia de coisas boas do manual com a intenção de ajudar os colegas na árdua tarefa de optar por um manual.

Ficha:

Qualidade do manual: Muito boa

Cumpre com a finalidade? – Cumpre.

Eficácia: Muito Boa

Vamos por pontos:

1º Na lógica proposicional o manual oferece como opção as derivações. Uma parte significativa dos professores gostam de ensinar as derivações consoante o grupo de alunos que apanham pela frente e este manual oferece essa opção normalmente inexistente na maioria dos manuais . Ora bem a lição da argumentação só é completa com as derivações, senão fica a meio. Fazer derivações é aprender a retirar consequências, a raciocinar com consequência, pelo que é uma boa opção dar a liberdade ao professor de poder leccioná-las. Mas o manual não se limita a atirar exercícios de derivações sem explicar rigorosamente o que são e para que servem, o que me parece uma opção feliz.

2º Na lógica silogística as regras do silogismo são simplificadas em 5 regras. Na verdade o professor se estiver atento não precisa das 7 ou 8 regras que os manuais normalmente referem uma vez que se repetem e só confundem. Simplificar o processo com 5 regras é o que qualquer professor acaba por fazer. Esta é uma boa opção, mesmo que não seja das mais relevantes para fazer de um manual um bom manual.

3º É a primeira vez que observo a inclusão da Lógica Estóica, ainda que em opção do professor, num pequeno capítulo num manual de 11º ano. Porque é que isto me parece uma boa razão que melhor qualifica este manual? Por uma razão bastante simples: é que a lógica silogística só se aplica a proposições que usem 4 formas lógicas, o que a torna uma lógica muito limitada. A lógica estóica amplia mais algumas formas lógicas. E isto é significativo porque ensinamos a lógica aos nossos alunos para que eles aprendam a argumentar, mas depois a lógica silogística não lhes serve para quase nada. Se desejamos uma dimensão mais prática do ensino da filosofia, o melhor é ensinar as ferramentas básicas para saberem pensar e da forma mais ampla. Pelo menos isto é muito mais útil e prático para os alunos do que lhes ensinar a história da carochinha a partir do filme Z ou Y.

4º Há uma melhoria substancial no capítulo das possibilidades do conhecimento em relação à edição anterior, que é a inclusão de David Hume de uma forma mais explorada. David Hume ainda é o autor mais consensual como exemplo para o empirismo. Não resisto a observar que já notei que alguns autores de manuais resolvem incluir autores diferentes para dar um ar de inovação. Ora bem, não há que inovar muito nos manuais. Eles precisam de obedecer a um modelo de como a filosofia se faz hoje em dia, ainda que existam muitos filosofares. O que se pode é um pouco de rigor e bom senso.

5º O capítulo 4, «temas e problemas da cultura científico tecnológico» é todo ele explorado com problemas e textos da filosofia. Que há de novo nisto em relação a muitos outros manuais, a maior parte? É muito comum nesta unidade encontrar os problemas tratados com textos da sociologia, com o filme Z e Y, com actividades práticas como pintar muros com mensagens de paz e fraternidade, etc… Ora bem, que pensaríamos nós se olhássemos para um manual de física e víssemos que em vez das teorias da física são contemplados conteúdos de sociologia, literatura, poesia, etc… usados para explicar teorias da física? Estranho não? É isto que acontece na maior parte dos manuais de filosofia, não em todos é verdade, e que no Arte não acontece. E eu acho isso um ponto a favor do Arte de Pensar, da filosofia e do seu ensino. Não faz qualquer sentido evitar a filosofia num manual de filosofia.

6º O manual é sustentado por bibliografia primária e não secundária. O que isto quer dizer? Que se ensina a filosofia directamente pelos filósofos e não pelos filtros que são a bibliografia secundária. Claro que não há problema maior no uso da bibliografia secundária, desde que ela seja adequada. Acontece que há aqui um ponto interessante: a bibliografia secundária – livros de divulgação – é escrita para fazer precisamente o que um manual deve fazer – divulgar a filosofia (ainda que o manual tenha também a preocupação de a ensinar). Usar bibliografia secundária é exactamente o mesmo que eu agora fizesse um manual de filosofia e apresentasse no meu manual textos do Arte de Pensar. Isto não faz muito sentido pois não? Pois é isso mesmo. Além disso a bibliografia primária é fresca e coloca em diálogo autores clássicos com contemporâneos. Pelo menos não dá aquela ideia que os adolescentes acham idiota (e é mesmo) que a filosofia morreu no século xvii.

E… para além da meia dúzia de pontos a favor do Arte…….. ponto…..

7º Didacticamente os pontos fortes é que o manual é muito motivador para o aluno se confrontar directamente com os problemas e se questionar usando a sua cabeça. Em relação a este ponto tenho ouvido muitas vezes que os nossos alunos não estão preparados para isso, que são muito fracos… Bem, isso não me parece verdade e já vou explicar porquê, mas antes disso convém explicar uma outra coisa: imaginemos que somos professores de física ou de biologia. Será que neste momento acharíamos que os alunos estão muito preparados para aprender física e biologia? Por certo que aqueles que acham que os alunos são todos muito fracos não concordariam que os alunos só são fracos a filosofia. Os resultados são contra exemplo disso. No entanto se abrirmos um manual de física ou biologia, o que lá vemos não é o filme da Carochinha nem poesia sobre a física, nem poemas ou pinturas sobre o corpo humano e a origem da vida. O que lá observamos são teorias da física e teorias da biologia. Com efeito, temos muitos manuais de filosofia que passam capítulos inteiros sem problemas da filosofia. Faz isto sentido? Em relação ao primeiro aspecto, que os alunos que temos são muito fracos, o que é que não concordo? O que defendo é que o nosso sistema de ensino estimula pouco os alunos para a aprendizagem e eles chegam ao ensino secundário com conhecimentos muito elementares e reduzidos para o que seria de esperar. Mas se entendermos que por essa razão a filosofia não lhes é ensinável, mais vale assinarmos uma petição para o Ministério nos mandar para o desemprego de vez e acabar de vez com a nossa disciplina, uma vez que os nossos alunos não são capazes de a compreender. Mas existe aqui um aspecto muito mais subtil: é que temos a tendência para pensar que ensinar com um modelo da treta torna as coisas muito mais apetecíveis para os alunos. Ora, o que é um modelo da treta? É exibir a formiguinha z, pintar um muro com a pomba da paz, fazer um teatrinho, mandar os alunos escrever poesia e ouvir Mozart em vez de ensinar filosofia da arte, manuais com muitas fotografias bonitas e de ícones da cultura popular, etc… mas é falso que isto seja mais motivante para os adolescentes. A experiência – questionável, é certo – diz-me que isto só cria laxismo, desinteresse e pontual indisciplina. A primeira coisa a ocupar nos alunos é a sua inteligência e não os seus olhos e ouvidos de filmes cor de rosa. Disso estão eles fartos e não precisam da escola para lhes mostrar essas coisas. A experiência mostra-me que os alunos, mesmo os mais fracos, se entusiasmam muito mais quando são confrontados com os problemas e são envolvidos na sua discussão. Isto é fácil fazer? Claro que não. Mas imaginem lá - professores de filosofia - que conseguíamos começar a produzir este efeito nos nossos alunos, com esforço, dedicação e apoiados – alunos e professores – por um bom manual? Como é que a sociedade em geral começava a olhar para a filosofia? O que é que estaríamos a produzir de bom? È para isso que nos pagam. Nem todos os países se podem dar ao luxo de pagar a gente para ensinar filosofia.

8º Materiais de apoio:

Manual do professor – para além de planificações aula a aula, muito útil para as nossas avaliações – é acompanhado por 41 fichas devidamente organizadas. O manual do professor inclui um útil itinerário sinóptico sobre cada ponto a ensinar. Tem ainda as soluções de todos os exercícios do manual. Isto é muito útil, por exemplo, para um professor que se aventure a ensinar lógica proposicional pela primeira vez. Além disso pode sempre tirar dúvidas no fórum do manual, tal como eu próprio faço. O caderno do aluno tem muitas fichas que ora podem ser usadas para TPC, ora para realizar trabalhos e pequenos ensaios filosóficos e poupar o trabalho da pesquisa bibliográfica, não que ela não seja desejável, o problema é que nas bibliotecas das nossas escolas pura e simplesmente não temos livros adequados. Hoje em dia se não guiarmos os alunos em livros que são os obrigatórios de pesquisar, o mais certo é termos centenas de trabalhos que não passam de copy past sacados no Google. Este caderno do aluno poupa-nos esse trabalho: está munido de muitos textos que confrontam posições e podemos pedir aos alunos que estudem os textos, confrontem as teses e defendam as suas posições. Dar liberdade aos nossos alunos é dar-lhes conhecimento, orientá-los. Mandá-los à sorte para o Google não é orientação que se preze. O aluno jovem não tem de andar a pesquisar no planeta inteiro. Sente-se tão perdido que a primeira coisa que pensa e faz para resolver o problema é o famoso copy past. Para além disso o caderno do aluno ensina em duas ou três páginas a fazer pequenos ensaios filosóficos. E é nos ensaios que um aluno aprende a defender posições, o mesmo é dizer, a pensar por si próprio. Em filosofia que liberdade podemos dar mais? Para além destes materiais o manual ainda vem munido de um cd rom, com pouco material é certo, pelo menos a versão demo que é que tenho em mãos e a oferta da assinatura da revista profissional de filosofia, Crítica. Tem ainda um site com dezenas de textos traduzidos e ensaios dos alunos, para além de outros materiais e um fórum de discussão.

9º Uma palavra final para a qualidade gráfica do manual. Não gosto muito desta parte. A qualidade dos manuais de filosofia costuma ser tão baixa que me habituei a usar fotocópias ilegais de outros livros e os meus alunos estão habituados ao preto e branco dos textos e ao colorido das discussões (também tenho aulas más, jamais me candidataria àqueles prémios idiotas do melhor professor que o Ministério promove). Normalmente comparo os nossos manuais com os dos países ricos e os nossos são autênticos almanaques de celebridades. Isso desgosta-me muito, que gosto de ser professor e ensinar filosofia. O Arte de Pensar está muito bem nesse aspecto. Creio até que esta edição está uns pontos acima da edição para o 10º ano. Não é preciso montar um circo para ensinar filosofia. Os esquemas estão muito bem.

PONTOS NEGATIVOS (haha) – não tenho meia dúzia de pontos negativos.

1º O manual é muito pesado. Embora não possua dados concretos para responder a isto, creio que essa opção vem no seguimento do inquérito da editora aos professores. A maior parte os professores são apologistas do volume único. Por acaso eu não, precisamente porque já ando tão carregado que um manual da dimensão do Arte é de arrepiar. O argumento dos professores é plausível que é: podem precisar das matérias que estão lá mais para trás e os alunos depois não tem o volume 1 nas mãos. Mas a verdade é que um manual pesado é dissuasor – até para mim – para carregá-lo.

2º O manual não devia ser tão bom para não provocar muita onda.

Aires Almeida, Célia Teixeira, Desidério Murcho, Paula Mateus, Pedro Galvão, A Arte de Pensar, Didáctica, 2008

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Um brilho no Logos

logos Enquanto fui lendo o Logos, coloquei duas questões às quais devia responder. São as respostas a essas questões que a seguir apresento.

O que é que faz do Logos um bom manual?

O Logos é claramente um dos melhores manuais concebidos para o 11º ano. Mas há alguns pontos de organização que me fazem hesitar para a sua adopção. Começando pelas virtudes:

O manual está bem escrito com exemplos claros para os estudantes.

Só no todo nos apercebemos da clareza da linguagem usada, mas dou um pequeno exemplo: Para explicar a  mudança de conector na lógica proposicional, oferece-se um exemplo muito intuitivo como:

O António comprou um disco ou um livro, Logo, o António comprou um disco” e a seguir explica-se: “Agora a situação mudou radicalmente. A premissa diz-nos que o António fará uma coisa ou outra, mas não obrigatoriamente ambas. Neste caso, para a premissa ser verdadeira, basta que uma das proposições simples que nela ocorre seja verdadeira – por exemplo, o António compra um livro. Mas, neste caso, a premissa é verdadeira e a conclusão falsa. O argumento é inválido.” (Página 23). Mas dou outro exemplo, até muito engraçado, para a distinção entre validade e verdade: “a lógica não nos pode dizer se as proposições que constituem este argumento são verdadeiras ou falsas: não é a lógica que diz se vai chover, mas a Meteorologia; não é a Lógica que permite saber em que condições o feijão cresce, mas sim a Química ou a Biologia. Nem é esse o seu objectivo. O objectivo da Lógica é determinar se entre as premissas e a conclusão há uma relação de consequência lógica, de que depende essa relação” (página 15). O exemplo dado era: “Ou chove ou o feijão não cresce, Não chove, Logo, o feijão não cresce”.

As noções são expostas ao estudante de forma precisa e cuidada, sem atropelos pelo meio e confusões.

Particularmente interessante é uma página dedicada à intencionalidade no conhecimento (página 95), na qual se dá uma ideia simples, não havendo necessidade do discurso errado que é comum aparecer sobre a fenomenologia. Este tratamento no Logos é mais eficaz e directo.

Finalmente, como nota muito positiva está o facto do manual ser preenchido quase na totalidade com o texto dos autores evitando o erro de se ocupar páginas e páginas com fotografias e texto alheio.

Mas o que é que faz com não seja perfeito?

Vou indicar um ponto ou outro que merece revisão para uma futura reedição do manual. Mesmo assim considero que estes apontamentos não fazem do Logos um manual menos bom, mas podem torná-lo menos competitivo e apelativo.

Na lógica proposicional, para verdadeiro e falso são usados os zeros e uns e não os mais convencionais em filosofia “V” e “F”. Seria, na minha opinião, melhor usar o “V” e “F” que é mais corrente na filosofia e deixar os “0” e “1” para a matemática, ainda que nada aqui esteja errado.

Os exercícios não têm solução de respostas no caderno do professor. Pelo menos para a lógica é sempre muito útil conter as soluções de resposta.

É bom dar a ideia ao estudante que os argumentos visam convencer racionalmente – estudamos lógica para aprender a argumentar. A melhor forma de o fazer é expor a noção de “cogência” dos argumentos e relacioná-la com solidez e validade.

Na página 11, aparece o comum erro, “Às frases (declarativas) que podem ser verdadeiras ou falsas iremos chamar «proposições»”. Já expliquei neste blog porque é que se trata de um erro. Não podemos, obviamente, chamar às frases de proposições pela razão que as proposições não são frases.

Na página 143 apanhamos outra imprecisão quando se afirma que, «Deste modo, a Filosofia da Ciência é uma área da Epistemologia (ou Teoria do Conhecimento), que se debruça sobre o conhecimento científico». A filosofia da ciência não é uma área da epistemologia. A filosofia da ciência envolve problemas que não são problemas epistemológicos.

Nos temas e problemas só temos um tema em opção, mas muito completo, que é o do aborto. Considero preferível um só tema bem tratado que três mal tratados, mas também é certo que, em temas de opção no programa, o professor fica limitado (já agora aproveito para dizer que também nunca percebi qual a razão de ter temas em opção no programa). O caderno “livro do professor” oferece outros temas, mas a organização é completamente diferente daquela que é proposta no corpo do manual.

Mais grave que todos os apontamentos anteriores, são os que se seguem.

O manual não apresenta uma bibliografia. Ficamos sem saber quais as traduções usadas, se são dos autores ou de quem. E não se justifica que um manual não apresente uma bibliografia base.

Não se compreende muito bem porque é que o caderno do professor, o do aluno mais o cd rom tem autores diferentes dos que escreveram o manual. Certamente que se trata de uma opção do editor, mas é uma má opção pois o resultado é mau. O caderno do aluno (“caderno de actividades”), por exemplo, tem uma série de fichas com algumas imprecisões que baralham o estudante. O “livro do professor” é tão inútil que nem se justificava a sua publicação. Do CD pouco sei pois só ainda é distribuída a versão de demonstração.

O Logos é um manual competente, mas todos estes pontos que aqui apresento devem ser corrigidos para termos um manual que além de competente, seja excelente. Claro que está entre as 4 melhores opções, mas, entre esses, perde competitividade.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

10 falsas questões sobre a filosofia

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1. A filosofia é difícil.

É falso que se fale da filosofia como uma disciplina difícil. Ela é tão difícil quanto outra disciplina qualquer. Há ,certamente, disciplinas mais difíceis e outras mais fáceis. A dificuldade não ocupa um lugar de destaque mais na filosofia do que na física, biologia ou na matemática.


2. A filosofia não serve para nada - Bem, isto só seria verdade se nos mentissem acerca da filosofia. Questionar sobre a utilidade da filosofia possui exactamente o mesmo sentido do que questionar acerca da utilidade da matemática, da física, química ou biologia. A filosofia tem exactamente a mesma utilidade que qualquer outra disciplina, só que a natureza dos seus problemas é diferente e exige metodologias específicas. Perguntar pela utilidade da filosofia é perguntar pela utilidade do saber em geral e a resposta não deve ser colocada somente aos profissionais da filosofia, mas também aos dos outros saberes. Curiosamente o mundo não seria o que é se os saberes não possuíssem uma utilidade.


3. Em filosofia nunca se chega a conclusões - É falso pensar que em filosofia nunca se chega a conclusões. Se assim fosse também o poderíamos dizer em relação à ciência. O que nós conhecemos da ciência são os resultados desta, porque as grandes questões da ciência ainda andam em investigação, tal qual as grandes questões da filosofia. A diferença é que ao passo que a ciência pode recorrer à experimentação, a filosofia não pode dada a natureza dos seus problemas que não são resolvidos empiricamente.


4. A filosofia é um saber abstracto que não tem nada a ver com a vida. - Pelo contrário. A filosofia é talvez o saber que mais directamente se relaciona com a nossa vida prática e quotidiana, daí por vezes se fazer a confusão ao pensar-se que qualquer pessoa está a fazer filosofia ao se questionar sobre um ou outro problema. Os problemas da filosofia surgem porque a vida humana os levanta. Para isso existem muitos ramos do saber a fim de os estudar. A filosofia é um desses ramos.


5. Todos somos filósofos - É falso. Não é qualquer pessoa que é filósofa, apesar de qualquer pessoa ser perfeitamente capaz de levantar problemas filosóficos a um nível intuitivo. De igual modo, também as crianças fazem muitas questões científicas e isso não faz delas cientistas. De que é feita a lua? Porque é que nunca apanho o arco irís, etc…. Podemos igualmente perguntar se Deus existe ou não, se o livre arbítrio faz ou não sentido, sobre o sentido moral do aborto, sobre o que é o tempo e a sua relação com o espaço, etc…., mas daí não decorre que sejamos filósofos. A filosofia faz-se e investiga-se nas mais avançadas universidades do mundo e possui altos níveis de sofistificação. Ser um filósofo profissional, implica publicar ensaios nas revistas da especialidade e contribuir de modo decisivo para o progresso e avanço da filosofia. E isso não está ao alcance de todos e exige um trabalho disciplinado e árduo. Mas daí não decorre problema algum. Também na matemática, sabemos muita matemática a um nível intuitivo e nem por isso somos matemáticos. Depende do nível de sofistificação que queremos alcançar. E os grandes investigadores precisam muito dos bons divulgadores, como é o caso dos bons professores.


6. Em filosofia tudo é subjectivo. - Esta é uma outra ideia falsa que aparece muitas vezes em relação à filosofia. Pensa-se que a filosofia não é nada mais do que um grupo de gente tola, cada um a dar a sua opinião sobre um assunto qualquer. Mas a defesa da subjectividade é auto refutante em termos racionais. Se eu defender que a filosofia é subjectiva, o meu leitor pode defender que não, que é objectiva. Terei de aceitar a posição do meu leitor precisamente porque a posição do leitor é, para mim, subjectiva. E entramos num círculo racionalmente insustentável. Por outro lado, se a filosofia é subjectiva, então, qual a razão da discussão racional? Nada haveria a discutir dado que a verdade não passaria de algo muito subjectivo. Toda a discussão possível não passaria de uma mera e modesta troca de opiniões. Mas nesse caso não existiria qualquer progresso no saber e cultura humana. Não devemos esquecer que as grandes teorias matemáticas e científicas ainda estão por resolver, precisamente porque, tal como na filosofia, não existe progresso sem problemas e razões que apontem conclusões para esses problemas.


7. A filosofia é algo que se faz quando se tem muito dinheiro e nada para fazer - Muita gente famosa parodiou este lado da filosofia, associando-a ao ócio que é precisamente o contrário do negócio (negar o ócio). Apesar da filosofia não constituir para a maior parte das pessoas uma necessidade vital, como é dormir, comer e beber ou respirar, a verdade é que ela se faz por necessidade de compreensão do mundo. A maior parte dos grandes filósofos pensaram sem grandes condições para o fazer. A riqueza material não tem necessariamente de andar associada à filosofia. É natural que se faça e publique mais filosofia onde há mais dinheiro, mas isso somente porque alguém pode viver da filosofia, pode ser pago para investigar e pensar determinado problema filosófico. Mas, novamente, esta é uma realidade que também se aplica a qualquer ramo do saber ou a toda a ciência. Não são as culturas material e culturalmente pobres que produzem e têm acesso à investigação. De modo que supor que a filosofia se faz quando não se tem mais nada para fazer e se tem muito dinheiro, é falso.


8. Não é preciso ensinar filosofia nas escolas - Para mostrar o quanto esta afirmação é falsa, prefiro apresentar alguns exemplos. Uma boa parte dos países ocidentais até nem têm filosofia no ensino secundário como formação geral e obrigatória, como existe em Portugal. Mas têm o chamadocritical thinkink que é uma área muito próxima dos modelos mais específicos da filosofia. Por outro lado esses países vêm garantido o sucesso da filosofia no ensino superior uma vez que possuem uma cultura mais sólida que permite que as pessoas vão de encontro ao saber e à filosofia. Há um interesse e sucesso quase natural pela filosofia, especialmente após a segunda metade do Século XX e livros de filosofia ganham quase todos os anos importantes prémios. Só se consegue ter ideias tolas como esta e a de que a filosofia não serve para nada, numa sociedade ignorante que não reconhece o valor intrínseco da educação. Olhar para a filosofia e afirmar que ela não serve para nada, é de uma ignorância tão tola que faz lembrar aquela pergunta: o que faz um burro a olhar para um palácio? Mas os seres humanos, muito mais que os burros, podem ser educados a olhar para palácios. Esta ideia pode existir e existe em alguns países, inclusive em Portugal, com relativa disseminação pública. Lembro-me de quando estudava filosofia, o fulano do banco onde tinha a conta aberta para a mesada, me perguntar com frequência para que servia o que eu andava a estudar. Estou convencido que tal acontece porque, em larga medida, o ensino superior é de má qualidade e os alunos saem das universidades muito mal formados. Uma vez saídos da universidade sem nunca terem compreendido as ideias centrais de Platão, Descartes ou Kant, o que é a filosofia da mente ou a filosofia da arte, sem leituras feitas e organizadas, este é o caminho mais certo para termos uma má divulgação da filosofia, misturando-a muitas vezes com as nossas percepções mais subjectivas, como astrologia, magia, poesia, etc…. E esta é a ideia que passa aos mais jovens, que estes passam a outros e por aí adiante até um determinado sistema educativo fechar de vez as portas a uma disciplina que, afinal, não possui sequer coerência interna. Outra das causas para este tipo de falsas ideias em relação à filosofia, aplica-se também a todas as outras disciplinas. É a ideia de que o próprio ensino não serve para nada e a consequente desvalorização da escola e das disciplinas que lá se ensinam. Em Portugal, fruto das péssimas políticas educativas do «eduquês», é isto que se tem passado. A sociedade em geral desvaloriza o papel que a escola pode ter no desenvolvimento do indivíduo. Daí a desmotivação geral e a frequente acusação de que o que se aprende não serve para nada. Na verdade se o que se ensina é tão pouco e tão erradamente, a escola acaba por ser muitas vezes uma perda de tempo, pensarão alguns e com alguma razão.


9. Em filosofia tem de se ler muito e escrever muito. - É evidente que para se saber filosofia temos de saber os argumentos dos filósofos. Imagine que vai ter com os amigos ao café e começa uma conversa sobre a justiça na distribuição da riqueza. Imagine ainda o leitor que na mesma mesa estão sentadas mais 4 pessoas além de si. Imagine agora também que começaria a debater argumentos sobre o tema não querendo saber das posições das outras 4 pessoas e ainda por cima afirmava que X e Y defendem a posição A, mesmo sem ter perguntado a X e Y que posições defendem. Uma das consequências mais prováveis é que o leitor poderia partir do princípio que:


a) As suas posições são a verdade absoluta sobre o problema da justiça na distribuição da riqueza.


b) Poderia o leitor estar a pensar que estava a ser muito original, quando X defende a mesma posição mas até com melhores argumentos.

Seria esta uma situação desejável? Mas vamos mais longe. Imagine que a conversa era sobre o cosmos e que o leitor estava a defender o geocentrismo por pura ignorância. Sem querer saber do que X e Y pensam e conhecem acerca do assunto, o leitor nunca descobriria uma verdade elementar: que está completamente errado, uma vez que o geocentrismo já foi refutado há muitos séculos atrás. A mesma coisa sucede na filosofia, como sucede em qualquer outro saber ou ciência. Para discutir os problemas filosóficos de um modo profissional, temos de entrar em discussão com os argumentos dos filósofos e é por essa razão que precisamos de ler o que Platão ou Descartes pensaram acerca do problema, quais os argumentos apresentados. A prova de fogo pela qual o aprendiz de filósofo tem de passar é exactamente a mesma que qualquer cientista tem de passar. Tem de sujeitar os seus «insights» à crítica dos seus pares. Um charlatão não passa esta prova de fogo e está condenado a escrever os seus argumentos sem pés nem cabeça no jornal da terra. Neste contexto, o texto escrito e lido é obviamente um dos recursos fundamentais dos filósofos, apesar de não o único. Alguns filósofos conseguiram apresentar argumentos revolucionários e nem por isso escreveram muito. Wittgenstein é só um entre centenas de exemplos. Outros escreveram muito e nem por essa razão conseguiram ser autores centrais para a filosofia.


10. Em filosofia tem de se ser muito profundo. - Em filosofia não tem de se ser mais profundo do que em matemática ou química. Em primeiro lugar deve-se privilegiar a clareza que nem sempre coincide com facilidade, dependendo do estudo que se realize. Obviamente se estamos a falar de filosofia como eu estou a falar neste texto, não se exige profundidade alguma. Exige-se clareza e rigor. A ideia da profundidade em ciência e filosofia, diz respeito à sofisticação dos problemas em análise. Se estamos numa área como a Lógica Modal, envolvendo a discussão de conceitos como possibilidade e necessidade, o mais provável é que a discussão não seja muito acessível a quem não possui qualquer preparação em filosofia. A mesma questão é atribuível a uma qualquer investigação em física ou química. Mas, regra geral, estas teorias mais profundas podem ser expostas a um nível mais intuitivo. E porque é que existe esta necessidade de explicar aos mais leigos os problemas mais sofisticados? Por uma razão muito simples. Somos seres limitados no tempo e um dia alguém vai ter de continuar os nossos estudos, desenvolvendo-os e possibilitando novas descobertas, por isso temos de ensinar aquilo que sabemos ou condenamos o saber à sua morte. Depois porque um filósofo só descobre as fragilidades das razões que oferece em favor das suas teses se um outro o puder estudar e refutar.


(Foto da minha autoria)