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terça-feira, 3 de setembro de 2024

Filosofia: o despertador das paixões. Cadeiras que são cebolas e o novo ano letivo?


 

Dado que estamos prestes a iniciar um novo ano letivo nada melhor do que aproveitar o tempo e partilhar algumas dicas de ensino. Um destes dias via uma série na Netflix com um autor americano que tinha como tarefa convencer políticos a melhorar as condições das cidades de modo a garantir mais saúde e bem-estar e aumentar a longevidade das pessoas. A determinado momento o autor refere que nos EUA tem de se arranjar sempre um argumento pela economia. Se for economicamente viável, pode ser aceite. Caso contrário está condenado ao fracasso. Pouco depois quando questionado sobre como as pessoas vão aderir a novos programas que visem a sua longevidade, o autor responde de um modo curioso. “É preciso ser sexy”. Pois eu acredito que a apresentação de uma disciplina como a filosofia para novos alunos tem de ser do mesmo modo. É o primeiro passo. E não é nada fácil consegui-lo, principalmente quando tem de se repetir a dose entre várias turmas, com múltiplos níveis de ensino e disciplinas com que se desdobra um dia de trabalho de um professor. E eu próprio não tenho resposta a todas essas barreiras. Afinal de contas estou no mesmo barco. Acontece que o trabalho pode ser divertido e é nesse sentido que aqui escrevo estas linhas, pois o trabalho que faço, ensinar filosofia, ainda me diverte. Pensem que passamos muito tempo das nossas vidas dentro de uma escola. Porque não aproveitar? Estas sugestões são aplicáveis tanto no 10º como no 11º, embora estejam mais pensadas para o 10º ano. E é necessário pensar sempre que vamos estar pelo menos 9 meses com aqueles alunos, pelo que de nada vale se a surpresa inicial não for conduzida nos meses seguintes ao que pretendemos. Esperem!!! Eu escrevi “9 meses”? Pois... isto.... não vos lembra nada? A Maiêutica socrática? É isso colegas. Estamos em trabalho de parto após estes 9 meses e nós, os professores, somos os parteiros (as). E o trabalho de parto é exigente e não são todos iguais. Uns são mais fáceis e outros mais difíceis. 

Vamos à obra? Vou concentrar-me em 2 ou 3 ideias simples para uma primeira aula. E os exemplos que vou aqui dar foram todos usados por mim em anos anteriores, uns mais bem-sucedidos que outros. 

Primeiro que tudo: pensem no Plano B. Chego mesmo a pensar no Plano B antes do A. “E se isto não funciona?...”, “bem... avanço então por ali”. E não pensem que mesmo ao fim de quase 30 anos a ensinar filosofia não fico ocasionalmente “encravado” sem saber bem que direção tomar. Faz parte. A menos que optem pelo seguro que é chegar à sala e cumprir apenas com o plano, sem contarem que vocês são professores e professoras, sem contar sequer que amam aquilo que fazem, sem se emocionarem pelo facto de nós mesmos, que estamos na filosofia, por vezes nos aborrecermos com ela e sentimos o vazio que qualquer ser que se questione tem de sentir ocasionalmente. 

Então e o que fazer? E os exemplos? Está bem, está bem. Vamos a isso.

 

Exemplo 1: a gravidade é uma treta

Há uns anos entrei na sala de aula na primeira aula com um prato de plástico, a habitual garrafa de água e uma maça. Nunca tinha visto aqueles alunos na vida. Sem lhes dirigir a palavra, peguei no prato com uma mão e coloquei a maça bem no meio. Depois peguei com a outra mão na garrafa de água aberta e fui despejando água por cima da maçã, a ponto de a água transbordar a pequena beira do prato e cair ao chão. Os alunos pávidos a observar o que aquele doido estava a fazer. No final ouviram a minha voz pela primeira vez quando disse apenas uma frase: “Acho que acabei de provar que a terra é plana”. Foram vários os teens que irritados me contrariaram com os argumentos que conhecemos. “É a lei da gravidade?”E eu apenas fui colando questões: “O que é isso da lei da gravidade?”, “a lei da gravidade vê-se?”, “Mas como sabem que existe se nunca a viram?”, “como conseguem provar que existe tal lei?”, “porque acreditam nos cientistas e naquilo que vos disseram os professores?”, “porque não acreditam no que acabei de vos mostrar?”.




 

Exemplo 2: quando as cadeiras são cebolas

Estes exemplos não estão aqui expostos por ordem cronológica pois este da cadeira inventei-o logo a seguir ao estágio. Raramente repito os exemplos. A razão? Farto-me deles e deixo de lhes achar piada. Numa boa discussão eu próprio enquanto professor de filosofia devo, acho eu, manter uma boa dose de ingenuidade e uma ainda maior de ignorância. Afinal, quero expor problemas e não respostas a problemas. Quero, queremos, apenas mostrar que as coisas são um pouco mais difíceis do que pensamos. E o exemplo? Ah bom! Entro na sala e mais uma vez sem me apresentar e coloco uma cadeira vazia em cima da minha secretária e faço apenas uma questão: “O que é isto?”. Obviamente os alunos mais corajosos respondem que é uma cadeira. “Mas se lhe retirar as pernas continua a ser uma cadeira?”, “E se lhe retirar o encosto?”, “E se a deitar estragada ao lixo?”. Já estão a ver, não é? Já temos a pancadaria montada na sala de aula, pois neste momento já há divisões, aqueles que acham que a cadeira mesmo no lixo sem pernas e encosto continua a ser cadeira e aqueles que acham que a cadeira deixou de o ser para passar a ser lixo. Usei este exemplo durante uns bons anos e muitos eram os alunos que nunca esqueciam esta primeira aula. Mesmo aqueles que se entediaram com o programa que temos de seguir (eu próprio me entedio bastante), continuavam a manifestar respeito pela disciplina que transformava cadeiras em cebolas. Sim, pois, uma vez que a determinado momento eu convidava os alunos a chamarem cebolas às cadeiras e na aula seguinte a primeira coisa que lhes dizia era: “Vá, sentem-se nas cebolas que a aula já começou”.




 

Exemplo 3: o universo nunca existiu

Poderia aqui relatar muitos mais exemplos. Uns não me recordo, outros não são tão expressivos. Mas o professor é também um criador de conteúdos, um inventor de roupagens para os programas de ensino. Sem esta criatividade não sei como encarar o ensino senão como uma tarefa que se executa sem gosto. Na primeira aula levanto apenas uma questão “O que é que vos garante que o universo não começou a existir há 5 minutos?”. Espero que imaginem a perplexidade que se gera numa sala de aula com uma questão destas. 

 

O desafio principal

 

Todos os anos costumo pensar nos meus objetivos e quais os principais desafios. Embora compreenda costuma-me bastante chegar todo enérgico à escola e ter de enfrentar todo um lado menos positivo que se resume a burocracias enormes, reuniões fora de horas, problemas profissionais de toda a ordem, gente a queixar-se ao mesmo tempo que insiste que amam o que fazem, etc.. cada um é como cada qual. Da minha parte e com a experiência que já tenho sugiro que os professores façam este exercício que parece ingénuo, mas é de uma eficácia tremenda. Escrevem 2 ou 3 objetivos para o ano letivo. Devem ser coisas que não vos envolve apenas a vocês, mas ao mesmo tempo que possam contribuir para que algo mude. Por exemplo não adianta de nada pensar como objetivo “melhorar as políticas educativas”, pois isso não vai acontecer numa década que fará num ano. Mas pensem em objetivos como este “fazer com que o máximo de alunos do 10º ano goste da disciplina”. Não adianta de nada escreverem nos projetos docente coisas articuladas com o projeto educativo da escola se vocês não sentirem que é isso que desejam. E não há problema nisto, pois qualquer projeto educativo tem escrito aquilo que qualquer professor motivado deseja que é o sucesso dos alunos. 

Já trabalhei com os meus objetivos (sempre e apenas 2 ou 3) de várias maneiras. Já os escrevi e meti dentro de um envelope que abria no final do 1º e 2º período para pensar se os estava a cumprir ou não e no caso de não os cumprir o que podia mudar. Já os escrevi junto ao horário para os ler todos os dias. Já fiz muitos e variados testes e nem sempre funcionam. Por exemplo sinto que de alguma maneira o ano que passou ficou bastante aquém dos meus objetivos. Nunca revelei os objetivos publicamente, mas vou neste momento revelar um dos meus objetivos para este ano que serve aqui apenas como exemplo do que exponho: “Trabalhar o foco dos alunos”. Já li e reli dezenas de coisas, desde artigos a livros completos (quem me segue nas redes sociais sabe que o faço) sobre a desatenção, a falta de foco, etc. Isto ao mesmo tempo que sinto que as minhas palavras não conseguem atingir os coraçõezinhos dos adolescentes e lá habitarem mais que 2 ou 3 minutos. Até há uns anos eu sentia que ficava ali eco. Agora nem por isso. Este meu sentimento tem exigido de mim duas coisas principais: a primeira que me informe, lendo artigos da especialidade, procurando formação adequada. A segunda, uma autoanálise. Eu estou mais velho e naturalmente mais rotinado. Até que ponto eu mesmo estou num ponto de viragem e a minha rotina afeta a minha perceção da realidade? Não quero aqui fazer dissertações sobre o problema da falta de foco das novas gerações, mas é do que mais se fala. E honestamente eu já conheço o problema. Só me interessa, enquanto professor, ajudar a resolvê-lo. Não me sinto confortável com a ideia de chegar ao final do 1º período e nas reuniões atribuir classificações baixas com justificações como “eles não me ouvem”, “não conseguem estar atentos e quietos 5 minutos”. Isto é obviamente verdade. Só que tenho de ter a consciência que é com ele que vou ter de lidar. E claro que é também no seio da nossa comunidade de trabalho que devemos resolvê-lo pois ninguém o vai resolver isoladamente. Contudo, é um dos meus objetivos e o principal deste ano que agora se vai iniciar: trabalhar o foco. Até porque sendo que qualquer disciplina e aprendizagem exige foco, a filosofia neste aspeto tem uma característica especial: não sendo experimental só se faz com o cérebro. E um cérebro desfocado nada faz, muito menos pensar. E, sublinho, trabalharei com os meus colegas de escola, de grupo e conselhos de turma, para levar avante este meu objetivo. O caminho é longo e são 9 meses até ao parto. 

 

Espero que estas sugestões simples e exemplos possam ser sexy, que possam estimular para que o ano letivo seja especial, pois a vida tem mais sentido se ela tiver um propósito e ensinar é um propósito para quem gosta desta profissão. 

Bom ano a todos 


Nota: as imagens usadas foram geradas por IA

 

 

 

 

terça-feira, 4 de junho de 2024

O ministério da grelha, Citizen Kane e a Inteligência Artificial

Eu acredito que é melhor tentar compreender a vida do que fazer de conta que já a compreendemos porque temos uma grelha.

 

Parte I

Há muitos anos, nos primeiros da minha profissão vi, pela primeira vez um professor que levou um computador portátil para uma reunião de avaliação. Na altura um portátil era uma ferramenta rara e muito cara. Era uma altura que nem computadores pessoais os professores tinham em casa. Ao longo da reunião fui ficando fascinado com a competência e rigor que o professor parecia inculcar no seu trabalho. Ele já usava uma grelha que calculava todos os resultados e foi talvez a primeira vez na vida de professor que ouvi uma frase que viria a ouvir anos a fio até aos dias de hoje: “A grelha não deixa mentir”. Só que foi exatamente nessa reunião que percebi que a grelha pode mentir e muito. E percebi isso no final da reunião. Na verdade, eu apenas tinha um caderno de fichas com os dados dos alunos em que tirava notas ao longo do ano das suas avaliações e depois transformava aquilo tudo num número que seguia para a pauta final. A grelha do meu colega soou-me a algo bem mais profissional. Mas no final da reunião fiquei com uma sensação estranha de que o professor foi em muitas situações mais injusto que eu. Como podia tal aparência de rigor não passar apenas de uma jogada disso mesmo, aparência? Afinal, para que me serviria aquela grelha se no final eu não pudesse emitir um juízo para além do que lá estava? Recordo ter pensado isto segundo uma analogia que sempre me motivou, com o futebol. Muitas vezes o treinador escolhe um jogador pois é o que lhe inspira maior confiança para aquele jogo naquele lugar. E até falha a sua escolha. Ora, parece-me, ainda nos dias de hoje, que o professor também pode fazer parte da sua avaliação com um juízo semelhante. Não como uma aposta, pois o treinador se é bom também não escolhe como uma aposta de lotaria, mas como o resultado do seu bom senso, da sua intuição. Mas vamos tentar perceber como funciona a avaliação. Vejamos numa pirâmide:

 

 

 


 

 

 

 

Se observarmos no topo da pirâmide aparece o professor, que é também um critério para classificar e avaliar os alunos. A classificação resulta de escolha que o professor faz. Se o professor não fizer parte da pirâmide, então para que existem professores? Pode objetar-se que usar uma grelha também é resultado de uma escolha do professor e por isso nada há a contestar. Bem, mas o que quero aqui defender não é que não se use uma grelha, pois não concebo já uma avaliação sem o recurso a grelhas de registo. O problema reside numa questão anterior à grelha: afinal como aparecem aqueles valores na grelha? O aluno teve média 12 nos testes e a grelha não mente. Mas o que a grelha não diz – nem tem de dizer – é que por detrás daquelas notas estão escolhas, que são feitas pelos professores: os testes são mais difíceis ou fáceis? Seguem os modelos de exames ou não? São testes inclusivos ou não? Quantos testes foram feitos? O peso atribuído aos testes é adequado à realidade? Todas estas questões davam verdadeiras teses de doutoramento se levadas a sério. E é exatamente essa razão que me leva a pensar que os professores não trabalham para o Ministério da Grelha, mas antes para o Ministério da Educação. Vou repetir a palavra: Educação. (a palavra Educar vem do latim que significa “tirar para fora”, “direcionar para fora”) Classificar é apenas uma das maneiras de dar uma informação ao aluno, muitas vezes carregada de vieses e, no caso do secundário, que determina apenas o mercado de trabalho que se segue às escolhas dos cursos nas universidades. E isto obedece a coisas por vezes que parecem tão invisíveis como: sistema político, contexto social, etc. Nada disto impede que se usem critérios, grelhas, etc. só que temos de ter consciência da gigante grey area que existe nesta matéria. E se assim for, parece-me uma boa solução recorrer a Aristóteles. Aliás, Aristóteles deveria fazer parte da formação para se ser professor. Para quem não sabe, a ética de Aristóteles é baseada na virtude do carácter sendo que a virtude desagua sempre num lugar: o meio termo.

 

Parte II

Citizen Kane

Teria eu uns 17 anos quando vi pela primeira vez o brilhante filme de Orson Wells, Citizen Kane, ainda hoje considerado por alguns cinéfilos como o melhor filme de sempre (passe o exagero). O filme estarreceu-me. É um filme com uma dinâmica muito tipificada no cinema norte americano e narra a história de um menino, o Kane, proveniente de uma família muito pobre e que os pais se veem obrigados a entregar a uma instituição que pudesse educar a criança. Num dia de neve o Kane chora agarrado a um pequeno trenó de madeira enquanto os homens da instituição o forçam e o levam. A instituição faz de Kane o cidadão exemplar. E que cidadão é esse? É o do homem de sucesso. O homem que estudou e faz fortuna, o homem que se apaixona por uma mulher sem talento mas com pretensões a cantora lírica e manda construir uma ópera apenas para ela se mostrar ao público, enfim, o homem que tem o mundo a seus pés (este é mesmo o subtítulo do filme na versão portuguesa). Só que as cenas iniciais do filme exibem Kane, completamente só, no leito da morte, num hospital, agarrado a uma daquelas bolas de vidro com uma casinha e neve a cair se abanarmos a bola. E repete e enigmática palavra “Rosebud” umas quantas vezes. Imaginem, diabo seja surdo, o nosso Ronaldo no leito da morte e sussurrar uma palavra qualquer como “caracoleta” umas quantas vezes. É suposto que na hora da morte nos lembremos do que nos está mais próximo, que procuremos esse conforto para a nosso fim certo. E Ronaldo disse “caracoleta” e não “Giorgina” ou “Cristianinho”. Estão a imaginar a coisa? Todos entrariam numa corrida louca para tentar perceber quem é Caracoleta. Será uma mulher que amou secretamente? Seria o nome íntimo que daria a uma pessoa que ama? O mesmo aconteceu com Rosebud no filme de Wells. Quem era Rosebud? No final do filme aparece um dos criados do Kane, após a sua morte, a atirar para uma fogueira os pertences mais pessoais de Kane. E o filme termina quando atira o trenó dele de quando era criança. No meio do fogo que destruía o trenó consegue-se ler o que está escrito na madeira, “Rosebud”. Quando vi o filme, teria os meus 17 anos, percebi que a mensagem que ali poderia estar seria acerca do “significado”. Nós somos seres que atribuímos significado(s) às coisas e vivemos em função do que presumimos ou desejamos que as coisas signifiquem para nós. Quando, nós, professores, metemos uma nota numa pauta que é o resultado de uma conta numa grelha, qual é exatamente o significado que esperamos que os nossos alunos ali vejam? Que sonhos são criados e mortos numa grelha com números? Eu não tenho respostas a estas questões. Mas não interessa que as tenha. Interessa, isso sim, que se estas questões tiverem importância para nós, que pensemos nelas. Recentemente uma professora da Finlândia, que tem um sistema educativo famoso, falava-me da importância de sabermos conviver com a floresta. E eu fiquei a pensar nisso: como posso viver num ecossistema que desconheço quase por completo? Como poderia eu viver numa floresta apenas coberta de eucaliptos sem diversidade? E percebi que os meus alunos passam a sua vida escolar dentro de salas de aula fechados, sem ver a natureza, a trabalhar em função de resultados que aparecem nas grelhas. Será isto um exagero da minha parte? Vamos pensando.




 

Parte III

Gosto de fazer confissões públicas da minha vida pois a minha vida tem muitos aspetos que são e devem ser públicos. Vem isto a propósito que quem me conhece, até nas redes sociais, sabe bem que eu adoro tecnologia, mas não ligo nada a carros. Isto dá-me muito jeito, pois como até vivo numa ilha comprei o carro mais barato que encontrei novo, um Twingo bem engraçado de conduzir por sinal. E assim sobra-me algum dinheiro que invisto nos tablets, computadores, alexas da vida e outros brinquedos com os quais passo algum tempo. No seguimento disto percebe-se facilmente que eu adoro a inteligência artificial, ainda que considere que o seu estado de desenvolvimento está longe de ser aquilo que ela se poderá tornar um dia. No que ela se pode tornar é um assunto do reino da ficção científica e eu nem vou entrar muito por aí. Mas não deixo de imaginar contextos em que a IA faz as coisas por mim (já agora, engomar roupa dava-me jeito. Não que a engome, mas tenho de pagar a quem o faça). Gradualmente a IA pode começar a fazer tudo por mim. O ponto exagerado disto seria algo como a matrix em que estamos conectados à realidade ficcionada por chips eletrónicos (ainda que isto levante aqui questões filosóficas bem apetecíveis). A IA pode fazer muito por mim. Pode até substituir-me um dia como professor. Não é disto que a malta tem medo? Que percamos todos os nossos empregos? Para dizer a verdade não tenho medo da perda de empregos, pois acho que para isso arranjamos soluções que são boas e rápidas. O problema que para mim é aterrador é a perda de significado, é que todos passemos a viver a vida avaliada numa grelha, como o Kane e percamos o significado e a nossa capacidade de o tentar compreender. Se quiserem, o que mais temo é mesmo que percamos a capacidade de amar, pois não há amor que seja traduzível numa grelha. 


(imagem gerada por IA)


 

Este texto resultou na última aula que lecionei à minha turma 11º4, uma turma cheia de alunos talentosos, curiosos, bons estudantes, mas que eu senti muitas vezes que viram a sua vida atolada nas grelhas dos professores. E também senti a necessidade de numa última aula lhes falar de grelhas, do Orson Wells e IA. Foi talvez a aula mais livre do ano.  Eu acredito que é melhor tentar compreender a vida do que fazer de conta que já a compreendemos porque temos uma grelha. 

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Fazer pontes com raciocínios

Numa das minhas aulas recentes tinha como objetivo explicar aos alunos a diferença que Mill falou entre prazeres superiores e inferiores. Entre os superiores temos prazeres como os intelectuais, estéticos, morais ou espirituais. Ao passo que entre os inferiores temos os prazeres físicos ou sensoriais mais básicos, como comer ou dormir. Certo que muitos dos prazeres mais básicos se relacionam bem com prazeres de ordem superior. 


(Imagem do manual adotado)

Mas o objetivo aqui é o de mostrar a alunos de 15 anos que Mill não estava a inventar e que talvez tivesse feito uma divisão que merece a pena explorar quando relacionamos prazer com felicidade. Assim, comecei por exibir um pequeno vídeo da Sagrada Família de Gaudi, em Barcelona, a que se seguiu uma pequena conversa em que questionei se gostavam de ver a SF. Quando os alunos respondiam que sim, perguntei a razão. E as respostas andavam pelo esperado: porque é bonita. Estamos, pois, a falar de prazeres estéticos. 



Depois coloquei uma experiência de pensamento aos alunos: imaginem duas hipóteses: ou vocês são de tal maneira bonitos e bonitas que todos os rapazes ou raparigas da escola rastejam aos vocês pés. Mas tem um senão: são muito limitados em termos intelectuais, “burrinhos”. Ou então, segunda hipótese, são normais, vão ter alegrias e sofrimentos amorosos, a vida amorosa nem sempre vos será fácil, mas são inteligentes. E a pergunta é: quem prefere a primeira hipótese. Ninguém levantou a mão. “Estão a ver!!!, a vossa vida intelectual é algo que estimam mais que os vossos prazeres sensoriais mais imediatos. Depois mostrei o vídeo que está abaixo, do filme de Charles Chaplin, “O Homem dos tempos modernos”. A maioria dos alunos do 10º ano ou não fazem ideia quem foi Chaplin ou, os que já ouviram falar, associam a um comediante. Não faziam ideia que se podia ser bastante crítico a fazer comédia. A pergunta, no final, foi a de tentar saber se Chaplin, no retrato daquele filme, seria um homem feliz, ao que os alunos responderam que não pois tem tarefas apenas repetitivas e que tal não o faz feliz. Bem, aproveitei para dar o contexto. “Vão lá à Wikipédia pesquisar de onde é Chaplin e quando viveu”. Pois, inícios do sec xx. Ainda a a Inglaterra, país de Chaplin, vivia nas suas cinzentas cidades com o clima da revolução industrial. Foi assim que fomos até ao aborrecimento da vida e à necessidade de criar espaços criativos que nos façam felizes. Pois então!! Isto é ser humano. E foi assim que lhes dei o exemplo da múisca da cinzenta Manchester dos anos 80 e lhes falei e mostrei Joy Division, uma espécie de grito no meio da cinzenta Manchester de outrora. E foi assim também que compreendemos como a Inglaterra de hoje já não é apenas a da cinzenta industrialização que durou até à era da globalização e da transferência da indústria para países emergentes. Uma aula em que construímos pontes com o raciocínio analítico. E crescemos culturalmente. Tudo para compreender apenas um conceito explorado por um filósofo, o da felicidade em Mill. Já agora, esta aula não teria sido possível sem um computador, uma conexão à banda larga e um quadro eletrónico que me permitiu, a mim e aos alunos, em boas condições, visualizar os vídeos. Terminamos a aula com um pequeno quiz para    testar os conhecimentos adquiridos. É importante também salientar que à medida que exploramos os materiais compreendemos o que Mill nos queria dizer nesta passagem:


«É melhor ser um ser humano insatisfeito do que um porco satisfeito; é melhor ser Sócrates insatisfeito do que um tolo satisfeito. E se o tolo ou o porco têm uma opinião diferente é porque só conhecem o seu próprio lado da questão. A outra parte da comparação conhece ambos os lados.»

John Stuart MillUtilitarismo, Porto Editora, 2005, p. 78.



quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Escola inclusiva


Escola inclusiva. Situação hipotética 1: Aluno(a) de média excelente, um 18 por exemplo, no conjunto de todas as disciplinas. “É exemplar!!”. Não, não é! Na escola inclusiva ninguém é exemplo para outrem.   Situação hipotética 2: Aluno irrequieto e com personalidade agitada e algo distraída. “É muito distraído e deve estar mais concentrado”. Depende. Se um traço de personalidade for hereditário até que ponto num ensino até ao secundário devemos limitar um aluno por características pelas quais ele não pode ser moralmente responsável? Os documentos que regulam o ensino básico e secundário apontam para competências (vide AE, Aprendizagens Essenciais). Elas vão desde competências sociais até intelectuais e físicas. E o seu peso varia consoante a disciplina. Mas o professor não tem de avaliar que competências o aluno já carrega, mas antes se consegue atingir ou não determinadas competências. Acontece que um aluno pode ser bem sucedido nas competências cognitivas porque é um “marrão”, mas essas podem não ter peso superior a 40% ou 50% da sua avaliação final. A avaliação é altamente complexa, mas no secundário ainda se anda muito desligado das competências. Basicamente são 3 anos penosos a arrancar médias para entrar nos cursos universitários. E isso parece gerar um enorme desinteresse pelo estudo com prazer, pela aprendizagem diferenciada e, pior que tudo, pela inclusão. Só se ouve por todo o lado falar de testes porque o modelo ainda tem os maiores estímulos concentrados nos testes: notas de testes para entrar na universidade. O pior de tudo é que um modelo demasiado concentrado em testes, além de ser bastante redutor, termina sempre numa enorme injustiça, a começar pelo exemplo de que o aluno X pode conseguir média 19 com o professor Y mas não passaria de um 15 com o professor Z, ainda que o aluno que aprendeu com o professor Z até possa ter desenvolvido melhor as suas competências cognitivas, por exemplo. Depois porque uma avaliação que vai de 0 a 20 e que menos de 9 é negativa implica necessariamente exclusão. Todos os alunos com classificações negativas são em certo sentido excluídos. O Ensino secundário ainda está ao serviço do mercado de entrada na universidade. E isso acarreta custos elevados para a inclusão. Creio que é necessária uma revolução para a chamada grey area no ensino secundário, na qual os testes não perdem o seu papel, mas deixam de ser a baliza entre os bons e os maus alunos. É que, em rigor, um ensino só é inclusivo se considerar uma premissa como verdadeira: Não há alunos fracos.


terça-feira, 2 de novembro de 2021

A escola inclusiva inclui ou exclui?

A escolaridade foi alargada até aos 18 anos (por lei) e para tentar que os alunos consigam estudar até ao 12º ano. Uma maneira de fazer com que isto aconteça é reduzir os conteúdos ou minimizá-los por vezes ao absolutamente superficial e banal. Outra é a escola inclusiva que consiste basicamente em arranjar maneiras de fazer com que o aluno transite de ano. Ora tudo isto não se ajusta muito bem a um modelo de aprendizagem em que o aluno tem de estudar para fazer bons testes nos quais escreve bem e mostra que realmente conhece os conteúdos e até, os que vão mais longe, já conseguem pensar sobre as matérias que aprendem. E honestamente não estou a ver como se pensa nas matérias sem mergulhar nelas, não estou a ver como se pensa o problema do conhecimento sem pelo menos mergulhar um pouco nas teorias de Hume ou Descartes, por exemplo. Discordo dos argumentos de muitos colegas que acham que tal é possível. Esses colegas tiveram a oportunidade de mergulhar nessas teorias e honestamente não compreendo como acham que os seus alunos são capazes de realizar aprendizagens sem fazer esse mesmo mergulho. Pressupor que existe uma escola agora que é inclusiva é ao mesmo tempo presumir que até aqui ela foi exclusiva. E eu não sei o que é mais exclusivo, se uma escola que chumba os alunos quando eles não são capazes de dominar conteúdos ou se passa por cima dos conteúdos para fazer alunos passar de ano. Dizem-me também os mais entusiastas que a escola inclusiva consiste em avaliar de maneira diferente, de acordo com as necessidades de cada aluno, uma espécie de fato por medida. A questão que aqui se coloca é se o aluno que aprende Descartes fazendo um exercício diferente de um teste escrito, depois pode falhar redondamente no teste alegando que não se ajusta ao seu modelo de aprendizagem? 

Também não me parece que o modelo de avaliação demasiado centrado no teste sumativo seja o mais adequado e até concebo um sistema de ensino sem qualquer teste. A questão aqui é a de como formar se transforma em avaliar? O que é que vamos fazer? Afinal de contas o aluno que consegue um 15 a filosofia de média final de secundário tem ou não a obrigação de ter êxito no exame? Obviamente não possuo aqui quantificações para poder responder com dados a estas questões. Nem sei se tais dados existem. Mas posso pelo menos manter a suspeita como forma de alerta de que os alunos que apesar de não estarem num modelo de testes vão a exame final e conseguem boas classificações, se estudassem numa escola com o modelo dos testes seriam na mesma bons alunos. Significa isto que se a minha hipótese for aproximada à verdade, então e uma vez mais a escola inclusiva falha o alvo e não passa de propaganda política. 

A minha profissão é um quebra-cabeças e educar é um verdadeiro quebra-cabeças. Mas a experiência vai-me dizendo que cada vez mais, mais alunos apenas frequentam a escola. De facto, chumbar a falta de esforço e empenho ou o simples “não conseguir” pode não ser a melhor solução. Mas ainda tenho dificuldade em compreender como a melhor resposta tenha de ser a de “passar com falta de esforço e empenho ou o simples não conseguir”.

Os otimistas da escola inclusiva parecem estar a levar a melhor. Só não percebo ainda como é que convivem pacificamente com uma avaliação que vai de 0 a 20 e de 0 a 9 o aluno não transita de ano. Não faria sentido que o seu otimismo ao mesmo tempo constituísse o fim da escala até 9? 

(Foto minha)

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Dia Mundial da Educação

 O meu contributo para o projeto da minha escola, Escola Jaime Moniz, Escola UNESCO. Com um agradecimento pelo convite aos professores responsáveis, nomeadamente à Professora Ana Kauppila




terça-feira, 1 de dezembro de 2020

"Ninguém vai chumbar a filosofia!" Por, Carlos Café

O professor de filosofia, Carlos Café, ensina na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, em Portimão. Tem um currículo preenchido de criatividade aplicada à filosofia. Assinou este texto que aqui apresento na sua página pessoal do Facebook. E pedi-lhe que, caridosamente, me deixasse fazer pública através do blogue FES, a mensagem do texto, tal e qual foi publicada. Isto porque sempre defendi que devemos aplicar criatividade ao ensino. Se o modelo falhar, mudamos, pois é da mudança que brota a inovação e a inventividade. Uma escola progressista é certamente aquela que respira liberdade, sem se agarrar a modelos fechados, controladores e limitadores. Ensino há 25 anos. Se há modelo que conheço muito bem é o dos chumbos. Já lhe conheço todas as vantagens e fragilidades. E o modelo tem imensas falhas. Porque não tentar outras vias? A verdade é que todos desejamos evitar os chumbos, mas não sabemos bem como fazê-lo e, então, ninguém arrisca. Enquanto isso, nada muda. Claro que o texto do Carlos é a opinião dele que, como espírito livre que demonstra ser, não se importa de partilhar. Há também quem pense que este género de posição pertence a discussões internas nos departamentos curriculares das escolas. Acho que têm uma certa razão. Mas ao mesmo tempo penso que a educação não é uma profissão como as outras. Ela é uma missão de todos, já que envolve toda a comunidade. É um bem público. E como bem público devemos também partilhar publicamente o que fazemos, como fazemos e como achamos que se deve fazer. Isso não se confunde com todos a mandar na sala de aula, de modo algum. Na sala de aula, o professor é ainda o maestro. Só que temos de fazer a banda tocar. E para isso precisamos da colaboração de todos. Dê lá as voltas que o assunto der, de uma coisa estou certo: a atitude do professor Carlos faz mais pela educação que quinhentas medidas políticas para inglês ver. Fica o texto e um agradecimento ao professor Carlos Café por ter autorizado a sua partilha. A foto também é dele. 




 

“Escrevi isto no quadro quando entreguei os testes na semana passada. Ao ver-me tirar a foto, um aluno, na sua ingenuidade, perguntou-me: "está a fotografar para não se esquecer?"

Respondi-lhe que não, que era para postar aqui. Mas, vendo bem, poderia muito bem ser, para não me esquecer do que me levou a fazer esta "profecia" algo temerária. Que passo a explicar.

Uma das coisas mais difíceis para um professor é manter os níveis de motivação dos seus alunos quando eles, apesar do seu esforço, obtêm resultados negativos. Quando entreguei os testes na semana passada, a cena repetiu-se com alguns deles e delas: tristes, desapontados, por vezes chorosos. Tinham recebido o 1.º teste de Filosofia, eles e elas que, há uns meses atrás, estavam ainda no 9.º ano numa outra escola com outro tipo de características e exigências. Foi então que decidi escrever isto no quadro.

Comecei por lhes dizer que, se fosse professor de Matemática, Português ou de Inglês, por exemplo, nunca escreveria tal coisa. Por quê? Porque, apesar dos esforços enormes que os colegas fazem, nem sempre é possível recuperar falhas de anos anteriores com o ritmo exigido no secundário (são turmas do 10.º ano). Mas a Filosofia é uma disciplina nova. "E eu não admito que algum aluno meu chumbe!" - acrescentei. - "Mesmo os que ´desligarem´ e quiserem chumbar vão ter de me 'enfrentar!´" - concluí um tanto provocatoriamente.

Também lhes disse que não ia passar ninguém por pena ou por favor, e que iriam passar todos, sim, mas porque isso era justo e o mereciam.

Para além de ser, como se percebe, uma estratégia de motivação (os alunos percebem que têm em mim alguém que se preocupa e que não vai desistir deles), há por detrás dela uma convicção profunda: não faz sentido algum que haja alunos e alunas a chumbar a Filosofia! Chumbar por quê? Perderam a curiosidade natural? Foram amputados da capacidade de raciocínio lógico? Desprezam a possibilidade de ter opiniões próprias?

Não, nada disso. Na maioria dos casos, os alunos chumbam porque os instrumentos que são utilizados para os avaliar são repetitivos, redutores e não abarcam todas as competências que é suposto serem avaliadas. A tirania do hábito, a tentação da inércia e a pressão social e institucional com os exames para entrar na universidade fizeram com que o secundário se tornasse numa "linha de montagem" de candidatos à universidade, em que os professores se transformaram, lentamente e sem disso se aperceberem, em zelosos e eficazes "explicadores". Já não ensinamos, limitamo-nos a explicar a matéria que pode sair nos exames. 

Bem vistas as coisas, temos andado a comportar-nos como aquela personagem de um curioso cartoon que circula por aí nas redes sociais, que reúne os diferentes animais da selva e lhes diz qualquer coisa como: "Hoje vão todos fazer um teste. Por uma questão de igualdade, a prova terá de ser a mesma para todos. E hoje o teste é o seguinte: todos vocês têm de subir a uma árvore!". 

Pois bem, é mais que tempo de deixar de exigir ao elefante ou ao hipopótamo que tentem subir árvores e dar-lhes a possibilidade de atingirem os mesmos objetivos de acordo com os seus interesses e natureza. 

Na minha escola, por exemplo, a avaliação é feita por competências e os testes valem cerca de 50% da nota dos alunos (fazemos apenas 3 por ano). Tudo é avaliado, mas nem tudo é avaliado por testes. Ao longo do ano, os alunos fazem um ensaio filosófico (uma avaliação mais "académica", portanto) sobre um problema filosófico escolhido por si. Fazem "tarefas coletivas de turma", em que cada aluno contribui para a realização de um trabalho global da turma (a título de exemplo, a clarificação e explicação do que são problemas filosóficos constitui a tarefa "objetos filosóficos", em que cada aluno trouxe para a aula um objeto por si escolhido e explicou aos colegas a razão da escolha e o que ele tem de filosófico). Houve quem levasse um relógio para perguntar "o que é o tempo?", rimmel ("o que é a Beleza?"), 1 euro ("o dinheiro é o mais importante na vida?") ou, ainda, quem não levasse objeto algum para poder perguntar: "o que é o nada?".

Mas o mais interessante é o projeto pessoal de Filosofia (PPF), um trabalho de projeto que é feito ao longo do ano e em que os alunos trabalham um problema/tema filosófico escolhido por si e o abordam da forma que entenderem: texto, banda desenhada, curta metragem, música, dança, jogo, diário gráfico, etc., etc.

Só para que se perceba a importância do PPF, ele tem um peso de 2 valores na nota final do aluno.

Bom, e para além de tudo isto, temos a atitude e o comprometimento nas aulas e o respeito que lhes é exigido pelos colegas e pelas suas opiniões.

Como se constata, os alunos trabalham provavelmente muito mais (e melhor, espero eu) do que se fossem avaliados essencialmente por testes que são o paraíso para quem escreve bem e o inferno para quem preferiria expressar-se também de outras formas.

Nas últimas 3 semanas de aulas, com a matéria já dada e o essencial das notas definidas, os alunos e as alunas apresentam à turma os seus PPF, em que andaram a trabalhar (autonomamente, mas com a minha supervisão) ao longo do ano.

É por tudo isto, cara amiga e caro amigo, que eu posso arriscar imenso e dizer: NINGUÉM VAI CHUMBAR A FILOSOFIA!

Lá para junho conto como foi 😉

Obrigado pela paciência.

 

Carlos Café”

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Telensino. Quando a TV também ensina filosofia (artigo)

Foi publicado o meu artigo de reflexão, "Telensino. Quando a TV também ensina filosofia", na revista Diversidades, publicação da DRE (Direção Regional de Educação), da SRE (Secretaria Regional de Educação) no seu número 56, de Janeiro e Junho. Pode ser consultado neste link.






sexta-feira, 24 de julho de 2020

Crise das humanidades e da filosofia. Vem de dentro ou de fora?

Imagine que se pede a um professor de física para estabelecer a relação entre a queda dos graves e deixar cair no lixo no chão e a consequência para o ambiente? O que esperar? Pois em filosofia tais absurdos são possíveis sem que provoque qualquer espanto até por muitos daqueles que a ensinam.
estudo de Sokal e Bricmont publicado em 1997 foi a machadada final que haveria de ser dada às ciências humanas. Estes dois físicos submeteram um artigo anónimo à revista prestigiada de ciências sociais, Social Text, com erros e absurdos deliberados. O espantoso é que o artigo foi aceite pela revista e publicado. O que os físicos fizeram foi usar jargão científico num contexto de humanidades, mas com relações causais inexistentes ou absurdas. O que pretenderam mostrar foi o abuso das ciências humanas em falar daquilo que não sabe, em estabelecer relações vagas, em fazer da vagueza a sua zona de bem-estar. Um ano após a aprovação do artigo, os físicos desvendaram a aldrabice. A verdade é que o livro estalou o ambiente nos departamentos de ciências humanas (em Portugal creio que nada se passou, apesar da Gradiva em tempo útil ter publicado o estudo entre nós). Mas a partir daí alguns departamentos de ciências humanas procuraram uma revolução enquanto a maioria permaneceu quieta no conforto do vazio pós-moderno. Assim, autores como Foucault ou Deleuze saíram da esfera da filosofia nos departamentos mais revolucionários, ao passo que nos outros passaram a constar dos estudos sociais e literários tais como estudos feministas, movimentos anti sistema, etc. com a clara influência do marxismo cultural. Obviamente a filosofia perdeu prestígio social nestes meios. Passou a ser tomada como uma disciplina de cultura geral, sem grande rigor, uma espécie de narrativa onde tudo cabe desde que tenha a toada da catequese mais elementar baseada, como qualquer catequese, em ideologia (e pouco ou nada em ciência e rigor). Este é o contexto em que se insere o ensino da filosofia em Portugal, ainda que com algumas investidas pelo meio de aprimorar o rigor que a disciplina merece. Mas socialmente passou a ser vista como uma disciplina apenas para aumentar um pouco a cultura geral dos alunos e como muitas vezes eles até chumbam, creio não estar muito distante da realidade se afirmar que muitos pais e alunos até batiam palmas se a disciplina acabasse de vez como formação geral. Os professores de filosofia aperceberam-se deste desprestígio e, em regra, acham que tudo não passa de uma orquestração do mundo moderno para liquidar a liberdade do pensamento. É aqui que eu não estou alinhado com a maioria, pois acho que não existe qualquer conspiração antifilosofia ou que da parte do poder existe uma tentativa de socializar os jovens alunos num ambiente de amorfismo intelectual. Pelo contrário estou convencido que o problema é interno à própria disciplina e ao que muitas vezes dela fazemos, ao alinhar nestas aldrabices de projetos e quejandos que tais com relações vagas com a disciplina. Tal como os dois físicos mostraram, as ciências ditas humanas e sociais perdem em rigor porque fazem abordagens vagas, porque fazem da Zizeckmania uma forma de estar no saber e no conhecimento (em Portugal tivemos um Agostinho da Silva e mais tarde um Eduardo Lourenço, erradamente tomados como filósofos, sem que tenham avançado grandes contributos para a filosofia).
No ensino secundário esta crise é notória quando se aceita pacificamente que existe uma relação estreita entre filosofia e cidadania. Acontece que essa relação não é mais estreita que a relação entre filosofia e conhecimento, filosofia e arte, filosofia e sentido da vida, filosofia e moralidade, etc. Isto é, existem teorias discutidas da cidadania em filosofia política, mas tais teorias estão a léguas daquilo que se quer fazer da cidadania nas escolas secundárias. A filosofia que prestigia a disciplina não se compadece com catecismos e cadernos de encargos políticos feministas, religiosos, da luta pelos direitos dos animais, direitos humanos, etc. E para fazer um ensino rigoroso da filosofia é igual se estamos a discutir o problema dos direitos morais dos animais não humanos ou a justificação epistémica do ponto de partida do conhecimento em geral, apenas pegando em dois exemplos. Esta ideia de que se parte da experiência dos alunos é tão válida na filosofia como na física ou na biologia e não deve ser mais explorada na filosofia do que nestas outras disciplinas.  É por isso que a esmagadora maioria dos projetos de cidadania alojados na disciplina de filosofia, por muito bem intencionados que possam ser, em rigor, não possuem qualquer relação com a filosofia e não passam de logros filosóficos. Ganhe-se então coragem e acabe-se de vez com a disciplina e em seu lugar coloque-se qualquer coisa como “Cidadania e participação”, sei lá...
A professora de filosofia do ensino secundário Maria Alcina Dias escreveu publicou recentemente um artigo no Jornal Público (ver AQUI) onde chama a atenção para a conceção do exame nacional e o retrocesso no ensino das humanidades. Mas outra coisa não será de esperar quando do lado de dentro as ciências sociais e humanas teimam em cavar cada mais fundo a sua cova. Nesta pequena entrevista que dei a um programa de entretenimento na RTP Madeira (ver AQUI), que fez a cobertura do Telensino, abordei esse problema do ensino da filosofia ao defender que o prestígio social da disciplina não é igual ao da matemática, e ao passo que nesta última um professor menos bom é apontado como o culpado do mau ensino, no caso da filosofia, é sempre a disciplina que fica em causa. 
Portanto, quando nós professores, aceitamos pacificamente que na nossa disciplina cabe tudo quanto é ideologia e catequese, quando não nos incomodamos que o Zizeck seja o mais famoso dos supostos filósofos, quando fazemos, mesmo que inadvertidamente, a apologia da vagueza, quando não sabemos distinguir a filosofia dos demais saberes, quando a nossa cultura filosófica parou no tempo, quando aceitamos sem reservas que sejam retiradas horas à nossa disciplina para projetos inócuos ( e a lei nem sequer impõe que tal seja assim, ver Art. 15, ponto 4, DR, 1ª série – Nº129 – 6 de julho de 2018), estamos sem dúvida a cavar a cova para enterrar de vez a disciplina. Não temos, pois, de ter medo nem do rigor nem da filosofia. Também nós, profissionais da filosofia, devemos arrancar a filosofia da social text e das suas imposturas intelectuais.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Aprendizagens Essenciais em Filosofia

Como se lê na página oficial:

As Aprendizagens Essenciais (AE) são documentos de orientação curricular base na planificação, realização e avaliação do ensino e da aprendizagem, e visam promover o desenvolvimento das áreas de competências inscritas no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória.
Neste sentido, foram concebidos documentos orientadores para todos os níveis de educação e ensino: educação pré-escolar e ensino básico e secundário.
A componente do referencial curricular designada por Aprendizagens Essenciais expressa a tríade de elementos — conhecimentos, capacidades e atitudes — ao longo da progressão curricular, explicitando:
(a) o que os alunos devem saber (os conteúdos de conhecimento disciplinar estruturado, indispensáveis, articulados concetualmente, relevantes e significativos);
(b) os processos cognitivos que devem ativar para adquirir esse conhecimento (operações/ações necessárias para aprender);
(c) o saber fazer a ele associado (mostrar que aprendeu), numa dada disciplina — na sua especificidade e na articulação horizontal entre os conhecimentos de várias disciplinas —, num dado ano de escolaridade.”

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Professor, as aulas de filosofia são confusas!


Quem leciona filosofia certamente já foi confrontado com observações contraditórias por parte dos seus alunos. De uma mesma aula, alguns alunos dizem que “a filosofia entende-se bem”, “o professor é muito claro nas explicações das teorias” ou, ao invés, “esta aula é uma confusão”, “o professor é um confuso”. Do ponto de vista de quem ensina o caminho fácil é considerar os alunos que fazem o primeiro tipo de afirmações uns amores e os que fazem o segundo tipo, uns estupores. Mas ensina-nos a vida que o caminho mais fácil nunca é o melhor e talvez estas afirmações dos alunos mereçam alguma consideração com detalhe. Ao mesmo tempo sabemos que a referência generalizada nas dificuldades quanto às aprendizagens na matemática é a conhecida “falta de bases”. Pois, o que me parece acontecer na filosofia é exatamente o mesmo, falta de bases. Não é por acaso que a filosofia ocorre nos currículos somente no ensino secundário, ou pelo menos com especial incidência na adolescência (pese embora experiências paralelas meritórias na filosofia para crianças). E ocorre nesta etapa da vida dos estudantes precisamente porque se considera que neste nível o estudante é capaz de abstração. Para compreender o problema do livre arbítrio, a causalidade não é coisa que se veja com os olhos. Quando um aluno vê o professor empurrar uma garrafa de água é somente isso mesmo que vê, muitas das vezes sem compreender que existe ali um fenómeno físico e material de causalidade. A causalidade é uma medida que se capta com a mente e não com os olhos. Se este terreno de base não está preparado, será, assim, muito difícil ao aluno compreender a relação estabelecida entre causalidade natural e livre arbítrio e, daí, captar a essência do problema.
Existe uma tendência para estes alunos com dificuldade de apreensão abstrata em considerar que as aulas devem ser um despejar de definições que se decora acriticamente. Claro está que perante alunos com estas características a filosofia pode ser uma grande desvantagem. E para o professor sobra trabalho suplementar já que tem de trabalhar em função desta incapacidade, ou melhor, desta capacidade ainda não treinada. Além de ter de saber resistir aos comentários dos alunos em relação às matérias que tem para com eles trabalhar.
Há formas muito simples de compreender se esta base da abstração está ou não trabalhada. Por exemplo, com a exibição de uma reprodução da Guernica, uns alunos vão observar que estão a ver um boi, uma lâmpada, um homem aos berros, quando outros, perante o mesmo desafio, já observam que estão a ver sofrimento, confusão, caos e miséria. Roubando um pouco à teoria de Piaget, diria que os primeiros ainda militam na fase das operações intelectuais concretas, quando os segundos já estão na fase das operações abstratas.
Os testes diagnóstico podem dar uma primeira imagem ao professor do estado dos alunos e o que pode esperar das suas aprendizagens. No caso dos alunos com esta capacidade ainda não trabalhada, o melhor mesmo é avançar com a leitura de pequenos textos com algum grau de abstração (como qualquer bom texto de filosofia) e pedir comentário quase linha a linha. Mas no nosso sistema formal de ensino, não há tempo a perder, pelo que há que procurar o equilíbrio entre este trabalho e o avanço dos conteúdos. Mas parece claro que os alunos avançam a ritmos muito diferenciados em virtude da sua capacidade de compreender o mundo abstratamente. E qualquer professor do secundário está consciente das dificuldades encontradas nos alunos sem esta base: preguiça, reacionarismo em relação à disciplina e ao professor, etc. É uma luta dura.
Um trabalho interessante é ter algumas ideias minimamente sólidas das razões por que estas bases não são consolidadas. E existe muita literatura interessante sobre o assunto, desde a sociologia até à psicologia e as neurociências. Mas é difícil atirar com certezas perante esta dificuldade.
Entre as razões mais imediatamente compreensíveis estão as sociais e familiares. Um aluno médio de 15 anos pode saber perfeitamente o nome dos defesas centrais do atual plantel do Benfica (e não há mal algum nisso), mas dificilmente ouviu falar de Picasso. E que razão me leva a pensar que há aqui um qualquer hiato entre aquilo que a realidade é e aquilo que ela deveria ser? Porque o futebol, pese embora possa ser abstratamente analisado, lida diretamente com as emoções e é essa a relação mais comum que a esmagadora maioria dos adeptos de futebol têm com a modalidade. Mas olhar uma obra de Picasso exige alguma abstração, pelo que o exercício implica algum trabalho intelectual. E é exatamente este o trabalho que muitas das vezes as famílias, meios de comunicação e sociedade em geral poderiam fazer de modo mais consistente e que, na minha opinião, não fazem.

Este trabalho é comunitário no sentido em que não cabe exclusivamente aos professores, mas a todos. Quando confiamos apenas nos professores para realizar este trabalho não deveria pelo menos ser estranho que os alunos muitas das vezes considerem a filosofia confusa quando com ela se confrontam pela primeira vez. 

Link da imagem: (https://gartic.com.br/luchfe/desenho-jogo/confuso)

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Ano letivo 2017/18 - mudanças e filosofia


Em Portugal Setembro é o mês do regresso às aulas. Nos últimos anos tem sido marcado negativamente em várias frentes: os pais e o custo financeiro com os manuais e material escolar, os professores com a enorme instabilidade profissional, a rede escolar com problemas de equilíbrio, etc… de uma forma resumida o que mais marca o início de cada ano letivo são as alterações das “regras do jogo”. Mas ao mesmo tempo que alguns aspetos no ensino mudam de ano para ano (por vezes menos), outros há que não mudam há mais de uma década. O programa de filosofia vigente data de 2001 (ver aqui). Muitas mudanças no ensino acontecem porque cada ministro que sucede o anterior, assim como as novas equipas, têm ideias diferentes e querem assim imprimir a sua marca, não se dando conta que desse modo estão a estragar mais do que o que arranjam. Neste sentido, ainda bem que o programa de filosofia não tem sofrido alterações. Alterar apenas porque sim, não me parece uma boa ideia. E alterar apenas porque se discorda totalmente também não me parece razoável. Há um trabalho de base meritório que vale a pena retocar. Afinal de contas, nós, professores, andamos há tantos anos nisto, a trabalhar um programa que parece insensato querer alterar tudo de uma só vez. Felizmente as propostas que entretanto se vão falando não seguem esse sentido, o de tudo alterar. A proposta, oficial de revisão curricular para a disciplina no 10º ano já circula livremente (ver aqui). E ela inclui alguns aspetos muito interessantes, embora, claro, discutíveis. A inclusão da lógica elementar logo a abrir o 10º ano parece-me uma opção correta como método de trabalho. Mas é igualmente importante que os tempos letivos para cada unidade sejam pensados não de modo a explorar os conteúdos teóricos sem considerar o trabalho e tempo necessário em sala de aula para trabalhar textos, interpretação aplicando os métodos aprendidos, gerir comportamento adequado ao trabalho, etc. Claro que começar a disciplina pela apresentação do método não é, em muitos sentidos, uma opção feliz. Se o que anima a disciplina, por que não começar logo por debater os problemas? Haveria algum prejuízo em começar a ensinar astronomia olhando para as estrelas?
É sobretudo importante que as mudanças não impliquem transformações de fundo constantes, muitas vezes quase ao sabor do vento ideológico ou de preferências grupais sem atender os muitos e diversos contextos em que a disciplina se ensina. As mudanças permanentes atrapalham o trabalho nas escolas e em regra acabam sempre por desmotivar.
Por fim, uma palavra aos professores de filosofia. Segundo percebo são muitos os professores de filosofia que não ensinam filosofia. Isto acontece porque os horários têm vindo a diminuir e, entretanto, os disponíveis acabam todos ocupados por professores de quadro de escola e com mais tempo de serviço. Por isso mesmo em muitas escolas os professores de filosofia estão a ensinar disciplinas que não a filosofia. Não considero a filosofia mais essencial que muitas outras disciplinas que podem ser ensinadas. Afinal, poderíamos ter um currículo diferente e até melhor com ou sem a filosofia. O ponto aqui é outro. Os professores de filosofia estudaram filosofia e prepararam-se durante alguns anos para o domínio científico da filosofia. Por isso mesmo e enquanto cá andamos e é tempo, esta parece ser uma boa razão para assegurar a disciplina no ensino geral e obrigatório. Como disse, um bom sistema de ensino pode dispensar uma outra disciplina ou substituindo-a por outra igualmente importante. Daí não se segue que a disciplina de filosofia seja dispensável. Acontece que, uma vez existindo, isso é por si mesmo uma boa oportunidade para fazer um bom trabalho na sua apresentação.
E ainda antes de terminar. Costumo usar uma hipótese quando pessoas não ligadas ao ensino criticam de forma geral o trabalho dos professores: “- Vamos imaginar que é verdade que os professores são todos mesmo maus. Sendo isso verdade e sabendo disso mesmo, o que é que devemos fazer, substituir todos os professores por carpinteiros nas escolas?” Invariavelmente a resposta é não. Isto é, temos de trabalhar com o que somos e temos, saber contar apenas com o nosso trabalho. Tudo o que vier a mais de positivo será bom. Mas não podemos esperar que sejam os de fora, mesmo os das universidades, a fazer o nosso trabalho. Não podemos nem devemos esperar que nos preparem os programas, as aulas, os materiais que usamos. Dependemos apenas de nós mesmos.  

Um bom ano a todos

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Propostas de reformulação de programa de filosofia

Este post serve para criar links às propostas que entretanto vão chegando às redes e canais online. Entretanto por erro meu publiquei duas vezes a minha proposta e acabei a eliminar sem querer um comentário com uma proposta de um colega e não consegui recuperar o comentário. Peço desculpa por isso. Foi sem intenção, pois todos os comentários são preciosos. Sem isso não conseguimos maior clareza nas nossas próprias propostas, pois é impossível, na minha opinião, elaborar uma qualquer proposta sem o reconhecimento de quem executa os programas de ensino, os professores.

Proposta do Domingos Faria, AQUI
Proposta do Aires Almeida, AQUI
Proposta de Rolando Almeida, AQUI

Assim que chegarem, mais propostas serão adicionadas.

Participação pública informal na reforma do programa de Filosofia

Alguns professores de filosofia têm manifestado nas redes sociais ou nos fóruns ideias interessantes para a abordagem a uma eventual reformulação do programa de filosofia. Muitos desses colegas não disponibilizam canais para publicarem as suas ideias. Assim, disponibilizo este blogue para quem quiser publicar a sua proposta. Assim, promovemos o debate mais alargado enquanto continuamos as nossas vidas particulares. Peço apenas que me enviem para o meu email os vossos textos para publicar com o respetivo nome de autor. Não há qualquer requisito de formatação de texto.

Email: rolandotavaresalmeida@gmail.com

domingo, 20 de novembro de 2016

Uma proposta para reformulação do programa de filosofia

Recentemente saiu uma notícia no Jornal Público sobre uma eventual revisão curricular dos ensinos básico e secundário. Segundo foi noticiado o principal objetivo é dar razão a uma velha reivindicação dos professores encurtando os conteúdos a explorar nos currículos das diversas disciplinas. O lado menos bom da notícia citada é que algumas entidades oficiais com responsabilidade na matéria estariam a ser ignoradas pelo Ministério. Ora discordo que o Ministério decida sobre um programa ignorando quer as associações instituídas ao nível científico, quer profissional. Por isso mesmo um programa elaborado ou reformulado por apenas uma parte é, quanto a mim, uma péssima ideia. Mas mantenho a esperança que as coisas não se passem a esse nível e espero também que o resultado de uma revisão do programa de filosofia seja o resultado do diálogo entre quem melhor representa os professores e quem representa a disciplina academicamente. Neste momento as instituições melhor posicionadas para esse efeito na disciplina de filosofia são a APF e a SPF.
Pressupondo que os professores gostam e querem ser ouvidos nesta matéria, enquanto professor quero deixar a minha proposta. Ela é apenas uma ideia, feita com o tempo de que disponho e vai ser montada sobre a proposta que Aires Almeida fez aqui. Portanto vou trabalhar a partir do programa e da proposta do Aires.

Algumas ideias para começar.
Reformular em vez de destruir o trabalho feito
Não defendo que se deva fazer um programa novo. O programa atual tem pontos positivos e outros que podem ser melhorados. E esta vai ser a linha condutora para a minha breve apresentação.

Pontos a manter no programa:
O programa de filosofia é elaborado em torno de problemas e não de filósofos ou filosofias. E assim deve ser mantido. Por um lado dá alguma liberdade ao professor, o que é sempre de esperar num programa de ensino, pelo menos de filosofia. Por outro lado, o que interessa na filosofia são mais os problemas e não propriamente a exposição das teorias dos autores, ainda que não se satisfaça a primeira condição com a ausência da segunda.

Pontos a reformular no programa:
Em primeiro lugar parece-me urgente depurar toda a terminologia do programa. E tenho uma razão para assim pensar. É que a linguagem do programa é transportada para os manuais, já que os mesmos seguem naturalmente o programa. Ora, o indice dos manuais, diz-me a experiência, é ilegível para os alunos e perdemos imenso tempo a traduzir. Ou então ignoramos. Não há qualquer vantagem em traduzir. Se podemos chamar as coisas com outros nomes e com o mesmo rigor, porque não adotar essa segunda opção com a preocupação de tornar a tábua das matérias mais legível para os alunos? Dou aqui apenas alguns exemplos:

Como aparece no programa
Proposta de substituição
Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar
O que é a filosofia?
Dimensão discursiva do trabalho filosófico
Caixa de ferramentas da filosofia
A ação humana – Análise e compreensão do agir
Filosofia da ação
Os valores – Análise e compreensão da experiência valorativa
Os valores
Valores e valoração- A questão dos critérios valorativos
O problema da objetividade de juízos de valor
A dimensão ética-política – Análise e compreensão da experiência convivencial
Filosofia política
Temas/ problemas do mundo contemporâneo
Problemas da filosofia

O quadro que apresento é apenas uma demonstração da depuração que pode ser feita. Estou convencido que tem amplas vantagens didáticas sem com isso criar qualquer prejuízo científico. Bem pelo contrário. E outra opção que me parece ser igualmente válida é apresentar os conteúdos como problemas. Assim, em vez de filosofia da ação, poderia constar: O que é uma ação? Ou, Será que todos os acontecimentos são ações? Bem mas ainda assim, isto pode ser igualmente feito mesmo com a proposta que apresento no quadro, já que um tema da filosofia pode ser apresentado com diferentes problemas.
Em relação à proposta do Aires, uma alteração de fundo. A lógica desaparece do 11º ano e desaparece grandemente de todo o programa da disciplina. Só faz sentido ensinar lógica como o Aires propõe se depois ela for aplicada ao longo de todo o programa. Mas a avaliar pelos manuais isso quase nunca acontece. O que me leva a pensar que uma grande maioria dos professores não tem optado por ensinar filosofia da ciência ou do conhecimento no 11º ano com as bases da lógica. E aqui penso que não vale a pena apresentar um programa que só num ponto varre a maré toda. Depois há outro ponto que me parece crucial. Vamos considerar que o professor pode ajustar mais ou menos a lógica que o aluno aprende ao restante programa. E penso que esse deve ser o efeito do ensino da lógica, caso contrário, empobrece o seu próprio ensino. Mesmo que um professor tenha essa opção, como faz no 10º ano? Ensina filosofia da arte, religião, ação sem esses conhecimentos e aplicação da lógica e depois no 11º ano passa a usar essa ferramenta? Ou seja, ou a lógica aparece logo na tal “dimensão discursiva do trabalho filosófico” no 10º ano ou não aparece em lado algum quer do 10º, quer do 11º ou então, em última análise e que me parece ser a pior das possibilidades, aparece apenas como mera curiosidade e para fornecer ao estudante algum conhecimento de como se faz filosofia. Posto isto, qual a minha proposta?
A minha proposta é que a lógica saia do programa de filosofia, para dar lugar no 10º ano, a uma pequena introdução à metodologia filosófica que pode e deve incluir breves noções de lógica. Nessas breves noções, o que deve ser incluído? Vou elencar aqui, sem grandes preocupações de fundo, o que me parece mais universal e essencial:

·         O que é um argumento?
·         Identificar argumentos
·         Composição de um argumento
·         Premissas e conclusão
·         Lógica formal e informal – validade dedutiva e indutiva
·         Validade e verdade
·         Validade
·         Solidez
·         Cogência
·         Refutações
·         Definição de conceitos e sua importância (vagueza e precisão)

Esta alteração implica já uma reformulação quer ao programa, quer à proposta do Aires. Talvez o requisito mais rígido que proponho para esta reforma seja o de que todo o programa, quer de 10º, quer de 11º tem de andar em torno desta ideia:

1.       Apresentação de problemas
2.       Defesa de teorias
3.       Discussão de argumentos

Um aspeto que a proposta do Aires não refere é a capacidade de execução didática do programa. Nem o programa é muito centrado nessa preocupação. Se por um lado é verdade que esse é o trabalho que os professores desenvolvem nos grupos disciplinares, também é verdade que o programa se pode centrar aí. Afinal o que se pretende de um programa não é somente o que se quer ensinar, mas a forma como se aprende o que se pretende ensinar. Vou tentar aqui esboçar um pequeno exemplo:
Unidade: Filosofia da Arte
Problema: Pode a arte ser definida?
Estratégias a seguir
Conteúdos a explorar:
·         Teoria da imitação e refutações
·         Teoria da expressão e refutações
·         Teoria formalista e refutações
1.       Apresentação do problema
2.       Tentativa de encontrar soluções para o problema com a discussão das teorias propostas pelos alunos. Como podem os alunos propor teorias?
·         Trabalho de grupo (20m de discussão)
·         Discussão individual (45 m)
·         Cada aluno tenta individualmente e em 20 m escrever uma resposta ao problema elencando sempre as razões que justificam a sua posição.
3.       Discussão de cada teoria da filosofia. Por exemplo, uma aula para cada uma.
Aqui poderia continuar a apresentar sugestões de trabalho. Desde como se apresentam refutações, etc. O aluno pode pesquisar nos materiais de aula (manual, sites de internet, etc… ).

Mais uma vez não tenho aqui preocupações de fundo no elenco que apresento de estratégias, mas espero com este modelo, que se perceba a minha proposta. Para cada página de conteúdos, 10 de estratégias. E por que razão defendo isto? Por uma razão simples. Com 10 páginas de conteúdos o professor vai passar as aulas a expor matéria. Com 10 páginas de estratégias, o aluno vai passar as aulas com tarefas delimitadas e a trabalhar. Por conseguinte, a progredir. E o professor consegue trabalhar melhor e gestão não só do programa como das aulas e das aprendizagens.
Vou então detalhar um pouco quanto aos conteúdos e usar o trabalho do Aires como base:

10º ano



Alterações:
Como já referi, alteraria o primeiro módulo. Provavelmente teria de alterar também os tempos de lecionação. Mas todo o primeiro módulo seria o da apresentação da lógica como referi acima. E, claro, aumentaria os tempos letivos nesta unidade para poder trabalhar textos pequenos para alunos de 15 anos, mas textos de filósofos nos quais se tenha de trabalhar premissas, conclusão, defesa de teorias, etc… as outras unidades que aparecem neste quadro, não as alteraria.


Acho aceitável a mudança da Estética e Religião para o 11º ano. A vantagem que vejo é a da gestão do tempo de lecionação do programa. Mas alteraria substancialmente a unidade VI. Ao contrário do que sugere o Aires estas aulas deviam ser destinadas a:

1º aprender como se redige um pequeno ensaio
2º Distribuir bibliografia (pequenos textos de 20 pp a cada aluno)
3º Oficina de redação do ensaio
4º Apresentação oral individual de todos os ensaios

A redação do ensaio é já proposta no programa. A vantagem de aprenderem a redigir pequenos ensaios é enorme. Além de aprenderem a defender ideias e teorias, dão os primeiros passos para elaborarem trabalhos académicos como pequenos artigos. Em vez daqueles trabalhos sem pés nem cabeça em que mais ou menos o aluno acaba a copiar qualquer coisa do google e colocar uma capa, índice, bibliografia, etc…, coisa que já nem sequer se usa em lado algum, estas últimas aulas (que tem de ser mais de 8) destinavam-se a criar uma oficina na qual os alunos estão a elaborar os seus próprios ensaios de 2 páginas no máximo. Como fazer isto num manual? Não se faz. Mas os editores podem preparar bibliografias pequenas que ajudem os alunos a decidir. Por exemplo, os alunos podem servir-se de livros como os de Nigel Warburton e fazer um ensaio de filosofia da religião a partir do capítulo sobre Deus. Tenho ideias concretas neste ponto, pois é assim que trabalho, mas não me vou alongar mais, pois o que pretendo aqui é deixar algumas sugestões práticas para a reforma de um programa de filosofia. Além disso este ensaio teria ajudado imensos alunos a fazer a última questão do último grupo do mais recente Exame Nacional de Filosofia. No final do ano é já desejável que os alunos consigam defender as suas ideias sobre alguns problemas da filosofia.

11º ano









                         Como disse não tive a preocupação do Aires em fazer a contagem das aulas, pelo que algumas coisas que aqui vou apontando poderiam cair por terra (a verdade é que todas vão cair pois eu nada decido sobre programas). Mas mesmo assim, seguindo a minha proposta, toda a primeira unidade desaparecia do programa do 11º ano. Sempre defendi que a filosofia da mente seria interessante, pelo que a introdução de alguns problemas desta área de forma direta (e não indireta como o caso do problema do livre-arbítrio que aparece na introdução aos valores e ação humana) talvez não fosse de descartar. O que menos me agrada nesta proposta do Aires é a última unidade. A ideia do tema livre deve ser substituída, uma vez mais, talvez, pela minha ideia já aplicada no 10º ano. O aluno no final do ano deve mostrar que é capaz de defender publicamente ideias. E isso pode fazer-se com a oficina de filosofia e a elaboração dos ensaios. Não referi ainda, mas o ensaio deve ser matéria de avaliação tal como qualquer outro teste e deve ter o mesmo peso na avaliação final. Por isso o ensaio elaborado no 10º ano pode ser aqui retomado e reelaborado sem qualquer prejuízo. Isto dá uma liberdade enorme aos alunos. E aprendem enquanto fazem as coisas que é muito mais interessante que ouvir o tempo todo e depois terem de passar horas a fio a ler tudo o que ouviram no sentido de tentar não esquecer para o teste.

Uma palavra final
Sei que estes apontamentos são ainda uma proposta em muitos aspetos vaga. E sei que o Aires justificou muito melhor os conteúdos. Porque, nos seus aspetos mais gerais, até concordo com as justificações do Aires, procurei aqui explorar mais como é que se pode explorar um programa de filosofia e executá-lo.
Não acho que um programa tenha de ser um documento muito complexo ou profundo. Profundos são os conteúdos. Um programa é um guia e deve ser de fácil leitura e muito pragmático. Afinal de contas os professores não passam o ano a olhar para o programa. Os professores olham para os manuais e restante material de apoio às aulas. E o programa deve ser um guia que permita que todos esses materiais possam ser elaborados com rigor.

Espero que esta proposta possa, sei lá como, contribuir pelo menos para alguma discussão pois, como muito bem referiu o Aires, já que está em discussão eu devo também discutir porque sou parte interessada.