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sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Como montar uma primeira aula de filosofia da arte? Uma sugestão

Bem, normalmente chama-se “planificar”. Mas eu gosto de sair dos formalismos para mostrar que podemos fazer melhor colocando de lado grande parte das formalidades, pelo que uso o termo “montar” em vez de “planificar”. E para o fazer temos de começar por saber muito bem o que esperamos que o aluno aprenda. E como vamos avaliá-lo. O primeiro passo é, pois, esclarecer os alunos disso mesmo. Mas neste momento não devemos abrir todo o jogo revelando o conteúdo. É necessário deixar no ar as perguntas e apenas temos de explicitar as regras: “Vamos estudar a unidade X. Nela vamos encontrar um problema e temos de o explorar estudando as diversas respostas dos filósofos”. Depois deste primeiro momento pedimos aos alunos que tragam para a aula um objeto que tenha significado artístico, o exibam aos colegas e expliquem porque o consideram arte. Não é preciso dar grandes dicas, talvez até seja melhor não fornecer qualquer pista. Apenas tem de ser um objeto que considerem arte e que expliquem porque o consideram como tal. Segue-se, pois, uma parte da aula em que os alunos fazem a sua exposição. O professor aqui pode ajudar a sintetizar numa teoria aquilo que cada aluno expõe. “Ah, o queres dizer é que para ti esse objeto é arte porque te ajuda a exprimir o teu sentimento.”, “Ah bem, consideras esse objeto um objeto de arte porque te conduz a um mundo completamente diferente do real”, “Esse objeto então é arte porque representa bem a realidade”, “esse é arte porque tem traços especiais, um design diferente”, etc.. Se repararem já temos aqui uma pequena coleção de algumas das teorias que vamos explorar. Advirtam os alunos para não esquecerem o que disseram sobre os seus objetos e que tentem ao longo do percurso de estudo encontrar alguma teoria que coincida com a sua. 

O exercício seguinte consiste num powerpoint com um conjunto de imagens de objetos, uns que são arte e outros não, uns que são controversos, objetos que podem ir desde uns chinelos de quarto às meninas de Velasquez, etc... e pede-se aos alunos que assim que visualizam cada imagem digam apenas “é” ou “não é”. No final percorre-se de novo cada imagem revelando se são ou não consideradas arte e até falando um pouco de algumas para que os alunos contatem com nomes do mundo da arte. Também se podem usar vídeos. Por exemplo, eu uso um vídeo de uma orquestra a interpretar os 4m33s de Cage. A perplexidade vale a pena. Mas também uso um pequeno vídeo com Kendrick Lamar. Nas minhas aulas de filosofia da arte que gravei para a RTPM (ver na secção Telensino deste blogue) mostrei um solo de Jimy Page (que foi cortado no Youtube por causa dos direitos de autor). E, na minha opinião, devemos usar exemplos da localidade onde vivemos. Por exemplo, a esmagadora maioria dos meus alunos do secundário não fazem ideia de que o Museu de Arte Contemporânea da Madeira fica na casa contígua à casa das Mudas, na Calheta que é obra de Paulo David, um arquiteto madeirense. Neste momento decorre a exposição nesse museu da artista madeirense Lourdes de Castro. Convém aproveitar o momento para explorar aquilo que é grátis e está apenas ao lado da nossa casa. 

Depois destas atividades e momentos iniciais começa a parte teórica. Explicamos o que é uma boa definição e expomos o esquema das famílias de teorias que procuram responder ao problema. Podemos também mostrar que além do problema da definição existem muitos outros problemas filosóficos sobre a arte. E, muito importante, mostrar porque é que o problema da definição é um problema da filosofia e não um problema dos pintores ou dançarinos ou escritores. Ocasionalmente, como fiz nas aulas do Telensino, podemos mostrar o interesse prático na definição da arte (afinal se os lugares não forem belos ninguém os quer visitar, por exemplo) e a partir daí explicar o interesse filosófico. Aqui o percurso é relativamente livre. 

Um exercício interessante é o trabalho de grupo. Dependendo da dimensão das turmas cada grupo pode trabalhar uma teoria. Determina-se o tempo para trabalhar essa teoria e apresentá-la aos colegas. Atenção que na maioria dos casos 70% ou mais da avaliação dos alunos decorre dos testes escritos (discordo disto, mas é a realidade). Temos então de ter em atenção que convém talvez no final o professor enquadrar muito bem todas as teorias e praticar pelo menos uma ficha antes do teste. 

As aulas de filosofia da arte são também um momento cultural que, infelizmente, para muitos alunos é uma das únicas oportunidades nas suas vidas de contactar com obras de Warhol, Picasso, Miró, Lichtenstein, Almada Negreiros. Há que aproveitar o melhor possível. 



John Cage, 4`33"


Kendrick Lamar Count Me Out


Marina Abramovic The artist is present








domingo, 29 de outubro de 2023

Como montar uma aula sobre Descartes com recursos digitais, ou a ficha tripla cartesiana?

Esta aula pode funcionar como uma ficha tripla, com 3 entradas que aqui vou chamar fases.

 

 

Fase 1: Podemos começar com o ChatGPT. Com este recurso pedimos aos alunos que perguntem a esta ferramenta de IA a importância de Descartes. A orientação deverá ser no sentido não de escreverem para o caderno tudo o que leram, mas que consigam retirar o essencial para depois explicarem numa síntese em diálogo. Não se deve orientar muito a questão para que ela possa ser colocada de diferentes maneiras obtendo respostas substancialmente diferentes. Até podem perguntar por que razão Descartes não é relevante e analisar a resposta. Cerca de 15 minutos para esta tarefa chegam, sendo que depois temos de dispensar mais uns 10 para a síntese final em diálogo. O objetivo é que os alunos percebam que mesmo num mundo em que a tecnologia muda muito, os pilares da ciência e do conhecimento são de mudança mais lenta. E um autor do sec xvii ainda nos tem muito a dizer no modo como compreendemos atualmente o conhecimento em geral e a ciência, em particular, já que alguns dos problemas levantados tem implicações na unidade seguinte do programa, a filosofia da ciência e tratam-se de problemas que exigem ampla discussão argumentativa.




 

Fase 2: Elaborei previamente um itinerário que segue dois podcasts explicativos. Distribuo numa plataforma online (posso fazê-lo enquanto os alunos completam a fase1), como a Classroom ou, no caso dos manuais digitais, na própria plataforma do manual, um conjunto de apontamentos que eu próprio fiz sobre toda a teoria epistemológica de Descartes. Pode-se ensinar Descartes com itinerários muito diferentes. Creio que aqui a inspiração deverá mesmo ser a das Meditações Sobre Filosofia Primeira. Como sabem, nesse livro, Descartes explica pacientemente todos os momentos do seu pensamento. Parece que faz com a filosofia algo semelhante ao que Eça de Queiroz faz com as descrições minuciosas (e que os alunos nem sempre gostam) para depurar a escrita. Temos de fazer esse percurso, mas de uma maneira muito mais abreviada e mesmo cometendo uma ou outra asneira deliberada para que os alunos não só compreendam a explicação, mas que também a apreciem e vislumbrem algumas subtilezas dos raciocínios e para que todas as peças encaixem bem (o génio maligno, a dúvida metódica, o argumento dos sonhos, o papel de Deus e cogito). Esses apontamentos podem ser feitos digitalmente para quem usar essas ferramentas. Dá um aspeto colorido o que torna as matérias mais interessantes, talvez. E os alunos adoram ter acesso aos apontamentos dos seus professores. Eu faço-os no meu ipad (ver fotos). Mas também podem ser feitos num caderno físico. É igual, com a vantagem que no digital distribuímos mais facilmente em PDF. Ou pode-se usar o quadro e ir escrevendo, com a desvantagem de os alunos perderem imenso tempo a passar e nós nos cansarmos mais a escrever. Bem, também podem fazer fotocópias e distribuir, com a desvantagem que não vão ser coloridas. A questão é a de ser criativo. Este exercício pode consumir quase toda o resto do tempo da aula, o que fará com que a fase 3 tenha de passar para a aula seguinte. Não há problema. Vamos ver como funciona uma aula de Educação Física. Vamos supor que o professor pede ao aluno que corra 3 voltas a um estádio (na minha escola existe um estádio dentro da escola, daqueles com bancada de um lado e do outro e tudo). No final o aluno, ofegante, pergunta ao professor o que faz agora? Seria estranho que o professor lhe respondesse que teria agora de fazer 20 flexões. Provavelmente (não sou professor de ed. Física) o que o professor dirá será algo como: agora bebe água e descansa para recuperares. Numa aula de filosofia deve-se fazer exatamente o mesmo: depois de uma maratona intelectual a tentar compreender conteúdos nem sempre fáceis, o professor deve dizer, agora descansem um pouco, pois a corrida do cérebro atento também é exigente. Bem, a diferença é que o professor de educação física vê o aluno a correr fisicamente e o de filosofia não o vê a correr intelectualmente. Não? Não é bem assim, pois o de filosofia pode colocar uma ou duas questões aos alunos para tentar perceber como foi a corrida, se foi bem ou mal feita. Mais uma vez, use-se a criatividade. Mas deixem-nos descansar uns 5 minutos. Os resultados são quase sempre melhores. 





 

Fase 3: os podcasts. Os alunos estão munidos do conhecimento teórico sobre a teoria de Descartes. Agora vão ouvir dois podcasts (para tal usam os computadores ou, em alternativa, para quem não trabalha com os manuais digitais, os smartphones). O professor deverá pedir previamente que tragam auriculares. Claro que se pode ler conjuntamente. Também tem as suas vantagens. Mas atribuir um tempo à tarefa e deixar que cada um faça o seu trabalho respeita melhor diferentes ritmos de aprendizagem. O professor deve explicar que podem andar para trás para tentarem compreender o que lá se está a dizer. E devem tirar algumas notas, usando, para tal, o pause. Esta tarefa pode consumir uma aula inteira de 90 minutos. E os podcasts? Podem fazer como eu que os gravo em casa para uso dos meus alunos. Ou podem usar os do professor Carlos Café que durante a pandemia gravou excelentes podcasts para os seus alunos. Ou se quiserem podem fazer esta tarefa com um vídeo (há muitos no Youtube). Ou podem nem sequer fazer esta tarefa!!! É apenas uma sugestão de um itinerário sobre Descartes. Devemos também ter o cuidado que este percurso acompanhe o percurso dos autores do manual que os alunos têm para estudar, para evitar dispersão entre aquilo que o professor está a fazer na aula e aquilo que o aluno tem para estudar em casa no livro. E é exatamente com o livro que eu termino esta aula, pois aproveito o manual para fazer alguns exercícios finais que serão muito semelhantes quer aos do exame nacional, quer aos dos testes da disciplina. No caso dos alunos com manuais digitais a vantagem é que todos tem acesso ao caderno de atividades e nele há muitos mais exercícios, coisa que nem sempre acontece com quem trabalha com manuais físicos dado que nem todos os alunos compram os cadernos de atividades e se forem professores como eu que gostam de poupar uns trocos aos pais, também não os vão exigir. 

 

Há uma garantia que temos: se os alunos gostarem de aprender, se tiverem gosto, vão certamente fazer melhores testes e exames. 





terça-feira, 12 de setembro de 2023

Epistemologia e Natação

Este ano vou ensinar 11º, filosofia, pois. E começo bem, com a minha área da filosofia preferida, mas provavelmente aquela que começa por soar como uma das mais áridas aos estudantes. Estou a falar, pois, da epistemologia. Mas será a epistemologia uma área tão distante da realidade? Bem pelo contrário. Talvez por isso seja a que mais me incomoda. Ou uma das que mais me incomoda. Tenho um filho nadador federado. Posso perguntar-lhe por que razão as partidas em provas tão rápidas que se medem à milésima de segundo, são dadas com um apito e não, por exemplo, com um semáforo? Afinal de contas um semáforo não seria melhor em pleno sec. xxi? Os menos curiosos respondem que é assim porque é assim. Mas os mais teimosos voltam a questionar, mas por que é assim? Será por tradição? Podia ser. Mas não é. Acontece algo tão simples e ao mesmo tempo enigmático como isto: o nosso cérebro é mais lento a percecionar à luz (cor) do que ao som. Percecionar, disse bem. Isso significa que aquela cor que eu vejo mudar, mesmo ali à minha frente, afinal, não está a mudar quando eu penso que muda, mas um pouco antes? Sim, isso mesmo. Sabemos hoje que o cérebro processa milhares de bits, terabytes de informação. E tem de a alinhar. Nesse alinhamento entram os preconceitos, os sentimentos e eventualmente aspetos fisiológicos que eu desconheço em grande medida. Ora pois, há uma questão milenar (como praticamente todas as que são filosóficas) que subjaz a estas coisitas que estou aqui para atirar: então se o meu conhecimento da realidade é o resultado deste alinhamento, de todos estes processos externos e internos, como posso saber que sei mesmo o que é a realidade? Afinal, pois, o que é a realidade? 

Esta questão é uma minúscula base para uma área de estudos fascinante que dá pano para mangas. Então, mas vale arregaçá-las e começar a estudar. É que se eu não tiver uma noção minimamente plausível do que seja a realidade, como posso saber que o que penso que ela é não passa apenas de um filme que eu gravei no meu cérebro? Enquanto isso se fores praticante de natação bem que podes fechar os olhos e estar muito atento ao que ouves. 

 

                                       (foto do João a nadar pelo seu clube, o Naval do Funchal)


terça-feira, 14 de março de 2017

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

O conhecimento como relação entre um sujeito e um objeto

A percepção é o modo como tomamos consciência dos objectos, em especial daquilo que nos é dado pelos sentidos. A pergunta que muitos filósofos colocam acerca da percepção é a seguinte: será que o facto de percepcionarmos objectos é suficiente para justificar a existência desses objectos fora da nossa consciência? A distinção entre aparência e realidade parece indicar que há diferença entre aquilo que as coisas são e a maneira como tomamos consciência delas, isto é, a maneira como as percepcionamos. O modo como funciona a percepção dá lugar a grandes disputas filosóficas e é um tema central nas discussões acerca da natureza do conhecimento. Há três grandes teorias da percepção, com diferentes implicações em termos epistemológicos: o realismo directo, o realismo representativo e o idealismoVer também realismo crítico e realismo ingénuo. (Aires Almeida)"

in. DEFnarede

sábado, 5 de dezembro de 2015

Consitência e Inconsistência



consistência/inconsistência
Duas ou mais proposições são consistentes se, e só se, podem ser simultaneamente verdadeiras; e são inconsistentes se, e só se, não podem ser simultaneamente verdadeiras. Por exemplo, as afirmações "Deus existe" e "Sócrates era um filósofo" são consistentes; e as afirmações "Deus existe" e "Deus não existe" são inconsistentes. Nem sempre é fácil saber quando duas proposições são consistentes ou inconsistentes. A mais leve complexidade lógica pode provocar enganos. Por exemplo, há razões para pensar que as afirmações "Todos os lobisomens são peludos" e "Nenhum lobisomem é peludo" não são inconsistentes; mas, intuitivamente, estas afirmações parecem inconsistentes. Note-se que aLÓGICA ARISTOTÉLICA não se aplica a proposições que contenham classes vazias, como "lobisomens"; se excluirmos as classes vazias, quaisquer duas proposições com a forma "Todo o A é B" e "Nenhum A é B" serão efectivamente inconsistentes (ver QUADRADO DE OPOSIÇÃO).
Outras vezes, é muito difícil saber se duas proposições são consistentes ou não. Por exemplo, em filosofia discute-se o chamado PROBLEMA DO MAL, que consiste em saber se as duas afirmações seguintes são consistentes: "Deus existe e é omnipotente, omnisciente e sumamente bom" e "Há mal no mundo".
Não se deve confundir inconsistência com CONTRADIÇÃO; todas as contradições são inconsistências, mas nem todas as inconsistências são contradições. Por exemplo, uma vez que há seres humanos, as afirmações "Todos os seres humanos são mortais" e "Nenhum ser humano é mortal" são inconsistentes, mas não são contraditórias entre si. Não se deve igualmente dizer que uma teoria ou proposição "é consistente com o mundo"; as teorias ou proposições só podem ser consistentes entre si e não com o mundo. Relativamente ao mundo, as teorias e proposições são verdadeiras ou falsas, consoante descrevem fielmente ou não o modo como as coisas são. DM


quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Argumentos cogentes

Algumas vezes surgem confusões ligadas a esta noção da argumentação filosófica. Um argumento é cogente quando, além de válido e com premissas verdadeiras, persuade racionalmente, ou seja, é convincente.

A objeção mais habitual é que não faz sentido falar em tal coisa, pois em filosofia não há argumentos cogentes.

Claro que há! Um argumento é filosoficamente cogente se as premissas forem mais plausíveis do que a conclusão, isto é, se nos levarem a aceitar uma conclusão que desconhecíamos.   

Diz-nos a noção de validade que um argumento é dedutivamente válido se em nenhuma das circunstâncias de verdade possíveis as premissas do argumento não possam ser verdadeiras e a conclusão falsa.                                          
                                                                                                        

Eis um exemplo de dedução válida:
A neve é branca e a relva verde
A relva é verde
Logo, a neve é branca
Este é um argumento válido e com premissas verdadeiras. Significa isto que é sólido. Mas facilmente percebemos que a solidez não parece ser uma noção suficiente, apesar de necessária, para persuadir alguém com um argumento. Isto porque em filosofia temos premissas muito discutíveis. E, apesar de serem muito discutíveis, tal não significa que não nos possam fazer aceitar uma conclusão que, à partida, não estaríamos dispostos a aceitar, não fossem aquelas premissas. Se as premissas forem mais plausíveis que a conclusão, acabamos por aceitar uma conclusão que à partida não defenderíamos. Isto é a cogência.

O exemplo dado não é um exemplo de cogência, pois na cogência o que queremos mostrar é que alguém não pode defender uma tese partindo de determinadas premissas, ou seja, que aquilo que já aceita  as premissas  implica necessariamente a conclusão que não quer aceitar e que nós defendemos.

Assim, a definição de cogência é operacional para nos permitir compreender que não desejamos somente argumentos sólidos, mas, além disso, que convençam.

Podemos ter argumentos sólidos, mas que não são persuasivamente fortes, necessitando de explicações adicionais para que se tornem convincentes. E daí a cogência.

A cogência é igualmente aplicável a argumentos quer dedutivos quer indutivos. Nestes últimos, um argumento cogente não aponta necessariamente para uma conclusão verdadeira, mas é muitíssimo provável que o seja.

A cogência vai mais além da mera sintaxe do argumento e é uma noção interessante precisamente quando não sabemos determinar a verdade das proposições. Claro que não precisamos de saber se as premissas de um argumento são verdadeiras ou falsas para saber se é válido. Precisamos apenas de saber que, se as premissas forem verdadeiras em alguma simulação de verdade, a conclusão não poderá ser falsa nessa mesma circunstância. Para saber isso, podemos aplicar um inspetor de circunstâncias.
Mas, ainda assim, temos muitos argumentos perfeitamente válidos que não são persuasivos. Daí a importância da solidez. O problema é que nem sempre é fácil determinar a solidez de um argumento, pois nem sempre sabemos da verdade das premissas. Assim, falamos de cogência do argumento, isto é, da plausibilidade das premissas para apoiar determinada conclusão. 

Publicado originalmente AQUI

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Como usar Inspetores de circunstâncias

Ao longo da história da filosofia, a lógica tem sido usada como ferramenta fundamental que nos auxilia a distinguir argumentos válidos de inválidos. 

Referem-me com frequência que reduzir a filosofia à lógica retira àquela parte essencial do seu papel.
Acontece que não se reduz em momento algum a filosofia à lógica, mas analisa-se logicamente os argumentos, o que deve ser natural em grande parte do trabalho filosófico.

Como já foi explicado em posts anteriores, a lógica não capta, por si só, todas as subtilezas da argumentação, mas é uma ferramenta preciosa quando bem aplicada à argumentação.

É o caso dos inspetores de circunstâncias. Como o nome sugere, um inspetor de circunstâncias vai inspecionar as condições de verdade de um dado argumento dedutivo. A regra da validade dedutiva indica que um argumento é válido se for impossível uma circunstância em que a ou as premissas seja(m) verdadeira(s) e a conclusão falsa.

Tomemos um exemplo prático de um argumento:

Exemplo 1
A relva é amarela e as nuvens cor-de-rosa
Logo, a relva é amarela

Este argumento tem uma premissa apenas e uma conclusão. Sabemos que a premissa é falsa, a conclusão também e o argumento é válido. Intuitivamente sem recurso a um inspetor compreendemos a validade do argumento.

Exemplo 2
Se Deus existe, a vida faz sentido
A vida faz sentido
Logo, Deus existe

Que dizer deste argumento? Em princípio um crente aceitará a primeira premissa, mesmo que não seja estritamente necessário que a aceite para justificar a sua crença. Será o argumento dedutivamente válido? Tudo o que há a fazer é inspecionar as circunstâncias em que ocorre verdade e falsidade nas premissas do argumento. Temos de testar pelo inspetor todas as circunstâncias possíveis.

Utilizando o dicionário, obtemos:
Deus existe – p
A vida faz sentido – q
(O dicionário consiste em traduzir cada uma das diferentes proposições que compõem o argumento em variáveis proposicionais, normalmente expressas em
p, q, r.)

De seguida, formalizamos o argumento:
Se p então q
q
Logo, p

O argumento na tabela, se usarmos corretamente simbologia lógica convencionada, deverá constar assim:
p → q, q ╞ p

(O símbolo   significa “logo”, é indicador de conclusão e designa-se martelo semântico.)

Para p e q existem quatro variações de verdade. Ou ambos são falsos, ou ambos são verdadeiros. Ou p é verdadeiro e qfalso, ou o contrário. Existem mais? Não.

Fazemos então uma tabela onde dispomos estas variações:
Verdade para p e verdade para q
1.ª premissa
2.ª premissa
Conclusão



p q
Se p então q
q
Logo, p
1.ª circunstância
2.ª circunstância
3.ª circunstância
4.ª circunstância
V V
V F
F V
F F
V
F
V
V
V
F
V
F
V
V
F
F

O que é que observamos no inspetor? Chama-se inspetor de circunstâncias, já que a tarefa é mesmo a de inspecionar no argumento o que acontece no caso de verdade ou no caso de falsidade. Assim, na primeira circunstância, em que p é verdadeiro e q é verdadeiro, a primeira premissa é verdadeira, a segunda também e a conclusão também. Ou seja, passa o teste da validade. Lemos então assim: se for verdade que Deus existe e se for verdade que a vida faz sentido, então também é verdade que Deus existe na conclusão e o argumento é dedutivamente válido.

Se olharmos para a 3.ª circunstância, o que é que acontece? Se for falso que Deus existe (p) mas verdadeiro que a vida tem sentido (q); e se afirmarmos na premissa a consequente (q) e na conclusão a antecedente (p), então, as premissas do argumento são ambas verdadeiras e a conclusão falsa.

Ora, se atendermos à regra da validade dedutiva, verificamos que esta é violada.

Falta ainda explicar um passo. Como é que sabemos os valores de verdade nas colunas das premissas e conclusão? Pelas regras simples da lógica proposicional. P e q isoladamente são proposições simples (melhor, são classes vazias que representam simbolicamente classes vazias de coisas ou estados do mundo). P e podem ser conectados logicamente. Há quatro modos principais de conectar proposições simples, tornando-as compostas: a condicional, a bicondicional, a conjunção e a disjunção. E também podemos negar as proposições (simples ou compostas), mas isso não irei adiantar para já, uma vez que o que pretendo mostrar é a utilidade dos inspetores.

Exemplos de proposições compostas:
Condicional
Bicondicional
Conjunção
Disjunção
Se Deus existe, a vida faz sentido
Deus existe se e somente se a vida faz sentido
Deus existe e a vida faz sentido
Deus existe ou a vida faz sentido

As frases apresentadas nesta grelha são modelos, pois depende muito de como falamos ou como escrevemos quando filosofamos. Tudo o que há a fazer é estudar pacientemente modelos mais típicos de apresentação das proposições na linguagem natural.

Conclusão: os inspetores são uma boa ferramenta para avaliar muitos argumentos. E se for ensinada de início, pode-se recorrer a esta ferramenta todo o ano. Isto se o manual que usamos a aplicar também.
Escreverei mais adiante um post a explicar modos eficazes de trabalhar com proposições. 



sábado, 17 de outubro de 2015

Validade, solidez e cogência



Argumentamos para resolver problemas insuscetíveis de serem resolvidos empiricamente. Por essa razão a argumentação é central quando estudamos filosofia. Os bons argumentos reúnem 3 condições principais:
São válidos: se um argumento é válido isso significa que numa circunstância de verdade em que as premissas são todas verdadeiras, é impossível a conclusão ser falsa. Pode-se também dizer que a verdade da conclusão num argumento válido, implica a verdade da ou das premissas (um argumento pode ter uma ou mais premissas, mas só uma conclusão).
São sólidos: não queremos saber de falsidades, mas de verdades. A validade diz respeito à estrutura lógica do argumento. Assim, para um argumento ser bom, obviamente além de válido, convém que efetivamente as premissas sejam verdadeiras (e, por consequência, dado que é válido, a conclusão também). Chama-se sólido a um argumento válido com premissas verdadeiras.
São cogentes: Não basta que um argumento para ser bom seja sólido. É necessário que as premissas sejam mais credíveis (também se diz aceitáveis) que a própria conclusão. Quem aceita as premissas de um argumento sólido (e, claro, válido) aceita a conclusão. É a este efeito que se chama persuasão racional ou também honestidade intelectual.
Nota final
Obviamente os argumentos cogentes são muito difíceis de encontrar. Um argumento não é na maioria das vezes por si só, isoladamente, cogente. Isto acontece porque nos argumentos filosóficos raramente sabemos se as premissas são efetivamente verdadeiras ou falsas. É por isso que filosofamos. Filosofar é, neste sentido, encadear outros argumentos que justifiquem premissas. Podemos escrever um livro inteiro a justificar a verdade de uma premissa com recurso a argumentos. E por isso é que a filosofia é para muitas pessoas difícil, pois temos de seguir atentamente esse encadeamento de argumentos como se seguíssemos a construção de um puzzle. No caso da filosofia o puzzle é mental, já que as peças são as partes de um todo que é um raciocínio encadeado com outros raciocínios. 
Um pequeno exemplo
Assistimos hoje em dia a inúmeras discussões sobre a moralidade das touradas. Ocorre ocasionalmente o seguinte argumento:
“Os animais não humanos não têm quaisquer direitos morais, pois também não têm deveres. E só tem direitos quem tem deveres. Como os animais não têm deveres, logo, não têm direitos
Podemos recorrer a um argumento válido, sólido e cogente para refutar este argumento:
(P1) Se só possuísse direitos morais quem tem deveres morais, então os bebés não teriam direitos, pois não têm quaisquer deveres.
(P2) Ora, os bebés possuem direitos, mas não têm deveres morais
(c) Logo, é falso que só possui direitos quem tem deveres.