Mostrar mensagens com a etiqueta Opinião. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Opinião. Mostrar todas as mensagens

domingo, 31 de agosto de 2025

Mensagem para o novo ano letivo: Neste tempo é que é!


Sócrates ficou na memória coletiva não apenas pelo seu pensamento, mas sobretudo pela coragem de preferir morrer pela verdade a viver na falsidade. Esse amor à verdade continua a inspirar, ainda hoje, todo o mundo do saber e das instituições escolares. Se não fosse a fama maior de Jesus, arrisco dizer que Sócrates seria o grande herói da nossa cultura ocidental.

Esse horizonte da verdade é também um imperativo ético para as escolas. Uma instituição de ensino só se mantém viva com a energia dos jovens, que ainda não se deixam aprisionar pelo peso das contas ou das rotinas, e que trazem consigo a vontade de mudar o mundo.

No ano passado defini como objetivo o “foco”. Em vez de me limitar a lamentar a falta dele, procurei perceber como se constrói, lendo e estudando sobre o tema. Valeu a pena. Descobri que muitas vezes não é apenas o foco dos alunos que muda: é também o olhar do professor, que envelhece enquanto os alunos têm sempre a mesma idade.

A experiência dos mais velhos é indispensável, mas a vitalidade dos mais novos é igualmente necessária. Infelizmente, temos poucas escolas com um corpo docente verdadeiramente rejuvenescido. Talvez não possamos mudar isso de imediato, mas um professor experiente pode sempre recorrer à memória: recordar a ingenuidade e a esperança do início de carreira. Esse exercício é antídoto contra frases feitas como “no meu tempo é que era” ou “hoje os jovens já não respeitam ninguém”.

As dificuldades existem e existirão sempre. Para alunos e professores, jovens ou veteranos. O que nos cabe é abraçar os desafios em vez de viver resignados à rotina. Foi exatamente para não perder o horizonte da verdade que Sócrates deu a vida.




terça-feira, 4 de março de 2025

Como uso o chat GPT nas minhas aulas


(imagem gerada pelo ChatGPT)

 

Em contexto profissional quando começo a falar de IA imediatamente surge a questão sobre as maldades da IA. Nada há no universo que não contenha aspetos negativos. E a IA não é diferente por isso. Não desvalorizo os perigos, de modo algum. Mas não consigo perceber porque não nos questionamos sobre todos os perigos de todos os aspetos de estar numa sala de aula. Temos seres humanos cada vez mais tempo sentados em salas de aula. Isso parece maravilhoso, o acesso universal ao conhecimento. Mas há um custo com os crescentes problemas mentais. Não passa pela cabeça de ninguém por essa razão acabar com as escolas, mas talvez seja necessário repensar o espaço e horário escolar e os fins a que se destina a escola. É assim que encaro a IA. E antes de a eliminar de todo, procuro compreender as suas potencialidades e usar como convém a um fim: promover aprendizagens e gosto pelo aprender. Já expus em outros artigos mais ou menos extensos como uso as tecnologias, como faço aulas mais diversificadas com elas, como comunico melhor com alunos. Este blogue, que tem cerca de 20 anos de existência, é disso exemplo. Recordo que este blogue, uma ferramenta muito usada e conhecida, que chegou a ser citado em publicações como o Jornal Público, que é provavelmente um dos dedicados ao ensino da filosofia que possui neste momento maior longevidade no espaço da internet (não estou a dizer que é o melhor), surgiu exatamente quando vou para uma escola, com um manual adotado que era sofrível e a escola limitava as fotocópias. Na altura falava-se em blogosfera e tive a ideia de divulgar os materiais no blogue para os alunos, mesmo com todas as dificuldades de então. Uma delas que me colocavam sempre e que era verdade é a de que nem todos os alunos tinham acesso à internet. Por isso promovi aulas de apoio na sala da escola com computadores ligados à internet. A IA é apenas a continuidade desse trabalho, o de usar o que disponho de melhor para promover o conhecimento.

Atualmente quando entro na minha sala de aula tenho, felizmente, disponível um quadro eletrónico, uma rede de internet excelente e todos os meus alunos tem um Chromebook. Trabalho na ilha da Madeira e a Secretaria Regional da Educação promoveu um extenso programa de digitalização do ensino que possibilita a que os alunos tenham acesso a um Chromebook. Um Chromebook é um computador portátil com o sistema operativo da Google, o que o torna mais eficiente em termos de computação necessária a uma sala de aula. Nele os alunos têm acesso a todos os manuais escolares bem como a todos os materiais que os professores disponibilizam. Há uma equipa tutelada pela SRE que coordena todo o projeto e limita os chromebooks a tarefas mais dirigidas às escolares para que os laptops sejam mais bem utilizados e rentabilizados em contexto de aprendizagem. Assim, consigo ter a minha pasta de materiais sempre pronta a ser usada e partilhada com os alunos. Um pequeno exemplo: proponho uma tarefa que pode consistir na leitura de um texto e responder a um questionário. Mas há alunos com dificuldade na interpretação e outros que interpretam bem. Dou 20 minutos. Enquanto circulo pela sala de aula vou vendo quem se adianta mais e quem se atrasa mais. Se notar que alguns alunos estão muito avançados, partilho de imediato outra tarefa. Se notar que um aluno até gosta mais de interpretar de outra maneira, visualizando um powerpoint, por exemplo, posso propor que algum outro o faça como resumo e o partilhe ou então eu próprio partilho com o aluno enquanto proponho outra tarefa aos mais adiantados. Com as tecnologias os meus alunos passam mais tempo a descobrir e eu a orientar. Sem ela as aulas eram muitíssimo mais expositivas, com mais problemas de falta de concentração, maior cansaço para mim, mais frustração. 

E com a IA? Já tenho partilhado aqui no blogue como faço algumas tarefas. Uma delas, que gosto particularmente, é pedir aos alunos para preparem o prompt para conhecerem os filósofos que vão estudar. Abrem o Chat GPT e começam por pedir que o chat faça de conta que é Descartes, Kant ou Mill e lhes responda a questões como se fosse um desses filósofos. Não dou muita orientação sobre exatamente que questões devem ser feitas, mas devem questionar aspetos relacionados com a época onde viveu, porque pensou aquelas teorias, o que o fascina na filosofia, que objeções sentiu às suas teorias, se foram bem aceites, etc.. A enorme vantagem disto é que os resultados obtidos são bastante diferentes pois cada aluno faz questões diferentes e não estão a usar a mesma fonte. Mas assim passamos a saber algo do contexto dos filósofos, algo que é relevante quando os estudamos para perceber algum do contexto das suas principais teorias. Mas há mais que se pode fazer. Por exemplo, pedir para que o chat elabore questões de escolha múltipla, etc. Muitos colegas dizem que o problema é que o Chat ainda se engana. Pois, isso é verdade. E quantas vezes não se enganam os professores? Recordo um dia ter conhecido um colega mais velho que me disse que nunca na vida cometeu um erro científico. Estávamos a falar de ensinar Descartes e eu referi que o Descartes cometeu muitos erros científicos e disparates. Mas o colega não quis saber disso para nada, só queria mesmo dizer-me que, ele, não erra. Tive pena do Descartes!!! Mas a verdade é que nos enganamos, umas vezes porque estamos mal preparados, outras por ingenuidade, outras porque o próprio conhecimento é altamente vulnerável a erros. Outra das objeções que me colocam quando falo que uso (e abuso) da IA nas aulas é que está quase tudo em português do Brasil. Bem, no que respeita ao ChatGPT já comunica bastante bem em português europeu. Mas talvez a melhor solução para já seja outra: ver menos novelas e fazer o que os brasileiros fazem com muito mais à vontade que a maioria dos portugueses: partilhar na internet. Por exemplo, conheço dezenas de canais de Youtube de professores americanos ou brasileiros que partilham em vídeo o que estou aqui a fazer escrevendo, como são as suas aulas, como trabalham, etc. Há médicos, professores, etc que fazem isso. Mas em português de Portugal são praticamente inexistentes. E para já a IA vai ao espaço virtual tentar apanhar o que lá anda. Se anda mais em português do brasil é natural que a IA aprenda melhor a falar português do brasil. 

Mas vamos a pequenos exemplos de como trabalhar na aula. Vamos partir do exemplo de um exercício de correspondências que aparece no manual. Os manuais estão adotados durante 6 anos e durante 6 anos esse exemplo não mudará. A ponto que quem trabalha com manuais físicos se depara com a dificuldade de alguns alunos terem já o exercício resolvido se o manual lhe foi emprestado por outro aluno do ano anterior. Podemos tirar uma foto a esse exercício, partilhar no ChatGPT e pedir que nos faça o exercício mas com correspondências diferentes. Mais, podemos até pegar no nosso powerpoint e partilhar no ChatGPT e pedir qualquer coisa como isto: “faz um exercício a partir deste powerpoint com 10 questões de verdadeiro e falso e faz também um com outras 10 com correspondências”. O trabalho do professor é rever tudo. E pode pedir também a correção. Até pode no final dizer que não gosta e que queria algo mais criativo. Quando dou estes exemplos surge sempre a objeção: mas isso limita a criatividade, é deixar nas mãos da máquina o que deve ser feito por humanos. Bem, isto soa-me algo estranho pois com o tempo, nós, professores, passamos a adotar manuais apenas que contenham exercícios para usarmos, testes, planificações. E tudo isso com um custo monetário para as famílias. Também numa boa parte das reuniões (lá haverá as devidas exceções) passamos a maior parte do tempo a resolver problemas burocráticos sem dedicar tempo a criar exercícios, testes, etc. que depois preparamos em casa. A melhor resposta que encontro a essa objeção é esta: aproveitem o tempo que vos sobra para fazerem outras coisas que gostam mais no âmbito da profissão e que se queixam de não terem tempo. Por exemplo, a mim vai-me sobrando mais tempo para escrever este texto. Há umas semanas tive a incumbência de escrever uma ata. Mas não a escrevi. Peguei no sumário que fiz da reunião e preparei um prompt e a IA escreveu-a por mim. Há quem goste de escrever atas de reuniões. Eu não! Fiquei com mais tempo livre para os meus alunos. E mais!!! No que respeita à produção de materiais até nem fiquei com mais tempo: produzo é muitíssimo mais e mais diversificados e criativos exercícios. 

Há certamente aspetos que me preocupam na IA, como o facto de coletar tudo o que lhe peço, que lhe digo e não sei os usos que poderá ter. O nosso trabalho, opiniões, etc.. sempre foram coletados, distorcidos, etc, mas com a IA isso passa a acontecer à escala universal. Eu prefiro pensar nas possibilidades que se nos abre. Há uns dias ouvia na rádio uma notícia hilariante: graças à IA vamos ter uma gigantesca poupança de água no futuro exatamente porque com a IA consegue-se calcular com precisão que água é necessária para a produção X e não se gasta nem mais 1 litro. É este o meu ponto para o ensino: venha ela e eu vou aproveitá-la enquanto isso ajudar os meus alunos. 

 

Nota: eu uso a versão paga do ChatGPT, mas a diferença mais substancial é que a versão grátis limita o número de questões que podemos fazer por dia. Se quisermos falar com o ChatGPT a versão grátis está limitada a uns 15m por mês. 

terça-feira, 4 de junho de 2024

O ministério da grelha, Citizen Kane e a Inteligência Artificial

Eu acredito que é melhor tentar compreender a vida do que fazer de conta que já a compreendemos porque temos uma grelha.

 

Parte I

Há muitos anos, nos primeiros da minha profissão vi, pela primeira vez um professor que levou um computador portátil para uma reunião de avaliação. Na altura um portátil era uma ferramenta rara e muito cara. Era uma altura que nem computadores pessoais os professores tinham em casa. Ao longo da reunião fui ficando fascinado com a competência e rigor que o professor parecia inculcar no seu trabalho. Ele já usava uma grelha que calculava todos os resultados e foi talvez a primeira vez na vida de professor que ouvi uma frase que viria a ouvir anos a fio até aos dias de hoje: “A grelha não deixa mentir”. Só que foi exatamente nessa reunião que percebi que a grelha pode mentir e muito. E percebi isso no final da reunião. Na verdade, eu apenas tinha um caderno de fichas com os dados dos alunos em que tirava notas ao longo do ano das suas avaliações e depois transformava aquilo tudo num número que seguia para a pauta final. A grelha do meu colega soou-me a algo bem mais profissional. Mas no final da reunião fiquei com uma sensação estranha de que o professor foi em muitas situações mais injusto que eu. Como podia tal aparência de rigor não passar apenas de uma jogada disso mesmo, aparência? Afinal, para que me serviria aquela grelha se no final eu não pudesse emitir um juízo para além do que lá estava? Recordo ter pensado isto segundo uma analogia que sempre me motivou, com o futebol. Muitas vezes o treinador escolhe um jogador pois é o que lhe inspira maior confiança para aquele jogo naquele lugar. E até falha a sua escolha. Ora, parece-me, ainda nos dias de hoje, que o professor também pode fazer parte da sua avaliação com um juízo semelhante. Não como uma aposta, pois o treinador se é bom também não escolhe como uma aposta de lotaria, mas como o resultado do seu bom senso, da sua intuição. Mas vamos tentar perceber como funciona a avaliação. Vejamos numa pirâmide:

 

 

 


 

 

 

 

Se observarmos no topo da pirâmide aparece o professor, que é também um critério para classificar e avaliar os alunos. A classificação resulta de escolha que o professor faz. Se o professor não fizer parte da pirâmide, então para que existem professores? Pode objetar-se que usar uma grelha também é resultado de uma escolha do professor e por isso nada há a contestar. Bem, mas o que quero aqui defender não é que não se use uma grelha, pois não concebo já uma avaliação sem o recurso a grelhas de registo. O problema reside numa questão anterior à grelha: afinal como aparecem aqueles valores na grelha? O aluno teve média 12 nos testes e a grelha não mente. Mas o que a grelha não diz – nem tem de dizer – é que por detrás daquelas notas estão escolhas, que são feitas pelos professores: os testes são mais difíceis ou fáceis? Seguem os modelos de exames ou não? São testes inclusivos ou não? Quantos testes foram feitos? O peso atribuído aos testes é adequado à realidade? Todas estas questões davam verdadeiras teses de doutoramento se levadas a sério. E é exatamente essa razão que me leva a pensar que os professores não trabalham para o Ministério da Grelha, mas antes para o Ministério da Educação. Vou repetir a palavra: Educação. (a palavra Educar vem do latim que significa “tirar para fora”, “direcionar para fora”) Classificar é apenas uma das maneiras de dar uma informação ao aluno, muitas vezes carregada de vieses e, no caso do secundário, que determina apenas o mercado de trabalho que se segue às escolhas dos cursos nas universidades. E isto obedece a coisas por vezes que parecem tão invisíveis como: sistema político, contexto social, etc. Nada disto impede que se usem critérios, grelhas, etc. só que temos de ter consciência da gigante grey area que existe nesta matéria. E se assim for, parece-me uma boa solução recorrer a Aristóteles. Aliás, Aristóteles deveria fazer parte da formação para se ser professor. Para quem não sabe, a ética de Aristóteles é baseada na virtude do carácter sendo que a virtude desagua sempre num lugar: o meio termo.

 

Parte II

Citizen Kane

Teria eu uns 17 anos quando vi pela primeira vez o brilhante filme de Orson Wells, Citizen Kane, ainda hoje considerado por alguns cinéfilos como o melhor filme de sempre (passe o exagero). O filme estarreceu-me. É um filme com uma dinâmica muito tipificada no cinema norte americano e narra a história de um menino, o Kane, proveniente de uma família muito pobre e que os pais se veem obrigados a entregar a uma instituição que pudesse educar a criança. Num dia de neve o Kane chora agarrado a um pequeno trenó de madeira enquanto os homens da instituição o forçam e o levam. A instituição faz de Kane o cidadão exemplar. E que cidadão é esse? É o do homem de sucesso. O homem que estudou e faz fortuna, o homem que se apaixona por uma mulher sem talento mas com pretensões a cantora lírica e manda construir uma ópera apenas para ela se mostrar ao público, enfim, o homem que tem o mundo a seus pés (este é mesmo o subtítulo do filme na versão portuguesa). Só que as cenas iniciais do filme exibem Kane, completamente só, no leito da morte, num hospital, agarrado a uma daquelas bolas de vidro com uma casinha e neve a cair se abanarmos a bola. E repete e enigmática palavra “Rosebud” umas quantas vezes. Imaginem, diabo seja surdo, o nosso Ronaldo no leito da morte e sussurrar uma palavra qualquer como “caracoleta” umas quantas vezes. É suposto que na hora da morte nos lembremos do que nos está mais próximo, que procuremos esse conforto para a nosso fim certo. E Ronaldo disse “caracoleta” e não “Giorgina” ou “Cristianinho”. Estão a imaginar a coisa? Todos entrariam numa corrida louca para tentar perceber quem é Caracoleta. Será uma mulher que amou secretamente? Seria o nome íntimo que daria a uma pessoa que ama? O mesmo aconteceu com Rosebud no filme de Wells. Quem era Rosebud? No final do filme aparece um dos criados do Kane, após a sua morte, a atirar para uma fogueira os pertences mais pessoais de Kane. E o filme termina quando atira o trenó dele de quando era criança. No meio do fogo que destruía o trenó consegue-se ler o que está escrito na madeira, “Rosebud”. Quando vi o filme, teria os meus 17 anos, percebi que a mensagem que ali poderia estar seria acerca do “significado”. Nós somos seres que atribuímos significado(s) às coisas e vivemos em função do que presumimos ou desejamos que as coisas signifiquem para nós. Quando, nós, professores, metemos uma nota numa pauta que é o resultado de uma conta numa grelha, qual é exatamente o significado que esperamos que os nossos alunos ali vejam? Que sonhos são criados e mortos numa grelha com números? Eu não tenho respostas a estas questões. Mas não interessa que as tenha. Interessa, isso sim, que se estas questões tiverem importância para nós, que pensemos nelas. Recentemente uma professora da Finlândia, que tem um sistema educativo famoso, falava-me da importância de sabermos conviver com a floresta. E eu fiquei a pensar nisso: como posso viver num ecossistema que desconheço quase por completo? Como poderia eu viver numa floresta apenas coberta de eucaliptos sem diversidade? E percebi que os meus alunos passam a sua vida escolar dentro de salas de aula fechados, sem ver a natureza, a trabalhar em função de resultados que aparecem nas grelhas. Será isto um exagero da minha parte? Vamos pensando.




 

Parte III

Gosto de fazer confissões públicas da minha vida pois a minha vida tem muitos aspetos que são e devem ser públicos. Vem isto a propósito que quem me conhece, até nas redes sociais, sabe bem que eu adoro tecnologia, mas não ligo nada a carros. Isto dá-me muito jeito, pois como até vivo numa ilha comprei o carro mais barato que encontrei novo, um Twingo bem engraçado de conduzir por sinal. E assim sobra-me algum dinheiro que invisto nos tablets, computadores, alexas da vida e outros brinquedos com os quais passo algum tempo. No seguimento disto percebe-se facilmente que eu adoro a inteligência artificial, ainda que considere que o seu estado de desenvolvimento está longe de ser aquilo que ela se poderá tornar um dia. No que ela se pode tornar é um assunto do reino da ficção científica e eu nem vou entrar muito por aí. Mas não deixo de imaginar contextos em que a IA faz as coisas por mim (já agora, engomar roupa dava-me jeito. Não que a engome, mas tenho de pagar a quem o faça). Gradualmente a IA pode começar a fazer tudo por mim. O ponto exagerado disto seria algo como a matrix em que estamos conectados à realidade ficcionada por chips eletrónicos (ainda que isto levante aqui questões filosóficas bem apetecíveis). A IA pode fazer muito por mim. Pode até substituir-me um dia como professor. Não é disto que a malta tem medo? Que percamos todos os nossos empregos? Para dizer a verdade não tenho medo da perda de empregos, pois acho que para isso arranjamos soluções que são boas e rápidas. O problema que para mim é aterrador é a perda de significado, é que todos passemos a viver a vida avaliada numa grelha, como o Kane e percamos o significado e a nossa capacidade de o tentar compreender. Se quiserem, o que mais temo é mesmo que percamos a capacidade de amar, pois não há amor que seja traduzível numa grelha. 


(imagem gerada por IA)


 

Este texto resultou na última aula que lecionei à minha turma 11º4, uma turma cheia de alunos talentosos, curiosos, bons estudantes, mas que eu senti muitas vezes que viram a sua vida atolada nas grelhas dos professores. E também senti a necessidade de numa última aula lhes falar de grelhas, do Orson Wells e IA. Foi talvez a aula mais livre do ano.  Eu acredito que é melhor tentar compreender a vida do que fazer de conta que já a compreendemos porque temos uma grelha. 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

2020 em revista

O colega António Gomes, amavelmente, convidou-me a escrever uns apontamentos sobre o que se passou em 2020. Aqui está o resultado e link para aceder app texto completo onde ele foi disponibilizado. Um agradecimento ao António que há décadas faz um trabalho muito decente na internet sendo uma das fontes de inspiração deste mesmo blogue que também já é um veterano. O Gomes já por cá andava. ACEDER AQUI





terça-feira, 1 de dezembro de 2020

"Ninguém vai chumbar a filosofia!" Por, Carlos Café

O professor de filosofia, Carlos Café, ensina na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, em Portimão. Tem um currículo preenchido de criatividade aplicada à filosofia. Assinou este texto que aqui apresento na sua página pessoal do Facebook. E pedi-lhe que, caridosamente, me deixasse fazer pública através do blogue FES, a mensagem do texto, tal e qual foi publicada. Isto porque sempre defendi que devemos aplicar criatividade ao ensino. Se o modelo falhar, mudamos, pois é da mudança que brota a inovação e a inventividade. Uma escola progressista é certamente aquela que respira liberdade, sem se agarrar a modelos fechados, controladores e limitadores. Ensino há 25 anos. Se há modelo que conheço muito bem é o dos chumbos. Já lhe conheço todas as vantagens e fragilidades. E o modelo tem imensas falhas. Porque não tentar outras vias? A verdade é que todos desejamos evitar os chumbos, mas não sabemos bem como fazê-lo e, então, ninguém arrisca. Enquanto isso, nada muda. Claro que o texto do Carlos é a opinião dele que, como espírito livre que demonstra ser, não se importa de partilhar. Há também quem pense que este género de posição pertence a discussões internas nos departamentos curriculares das escolas. Acho que têm uma certa razão. Mas ao mesmo tempo penso que a educação não é uma profissão como as outras. Ela é uma missão de todos, já que envolve toda a comunidade. É um bem público. E como bem público devemos também partilhar publicamente o que fazemos, como fazemos e como achamos que se deve fazer. Isso não se confunde com todos a mandar na sala de aula, de modo algum. Na sala de aula, o professor é ainda o maestro. Só que temos de fazer a banda tocar. E para isso precisamos da colaboração de todos. Dê lá as voltas que o assunto der, de uma coisa estou certo: a atitude do professor Carlos faz mais pela educação que quinhentas medidas políticas para inglês ver. Fica o texto e um agradecimento ao professor Carlos Café por ter autorizado a sua partilha. A foto também é dele. 




 

“Escrevi isto no quadro quando entreguei os testes na semana passada. Ao ver-me tirar a foto, um aluno, na sua ingenuidade, perguntou-me: "está a fotografar para não se esquecer?"

Respondi-lhe que não, que era para postar aqui. Mas, vendo bem, poderia muito bem ser, para não me esquecer do que me levou a fazer esta "profecia" algo temerária. Que passo a explicar.

Uma das coisas mais difíceis para um professor é manter os níveis de motivação dos seus alunos quando eles, apesar do seu esforço, obtêm resultados negativos. Quando entreguei os testes na semana passada, a cena repetiu-se com alguns deles e delas: tristes, desapontados, por vezes chorosos. Tinham recebido o 1.º teste de Filosofia, eles e elas que, há uns meses atrás, estavam ainda no 9.º ano numa outra escola com outro tipo de características e exigências. Foi então que decidi escrever isto no quadro.

Comecei por lhes dizer que, se fosse professor de Matemática, Português ou de Inglês, por exemplo, nunca escreveria tal coisa. Por quê? Porque, apesar dos esforços enormes que os colegas fazem, nem sempre é possível recuperar falhas de anos anteriores com o ritmo exigido no secundário (são turmas do 10.º ano). Mas a Filosofia é uma disciplina nova. "E eu não admito que algum aluno meu chumbe!" - acrescentei. - "Mesmo os que ´desligarem´ e quiserem chumbar vão ter de me 'enfrentar!´" - concluí um tanto provocatoriamente.

Também lhes disse que não ia passar ninguém por pena ou por favor, e que iriam passar todos, sim, mas porque isso era justo e o mereciam.

Para além de ser, como se percebe, uma estratégia de motivação (os alunos percebem que têm em mim alguém que se preocupa e que não vai desistir deles), há por detrás dela uma convicção profunda: não faz sentido algum que haja alunos e alunas a chumbar a Filosofia! Chumbar por quê? Perderam a curiosidade natural? Foram amputados da capacidade de raciocínio lógico? Desprezam a possibilidade de ter opiniões próprias?

Não, nada disso. Na maioria dos casos, os alunos chumbam porque os instrumentos que são utilizados para os avaliar são repetitivos, redutores e não abarcam todas as competências que é suposto serem avaliadas. A tirania do hábito, a tentação da inércia e a pressão social e institucional com os exames para entrar na universidade fizeram com que o secundário se tornasse numa "linha de montagem" de candidatos à universidade, em que os professores se transformaram, lentamente e sem disso se aperceberem, em zelosos e eficazes "explicadores". Já não ensinamos, limitamo-nos a explicar a matéria que pode sair nos exames. 

Bem vistas as coisas, temos andado a comportar-nos como aquela personagem de um curioso cartoon que circula por aí nas redes sociais, que reúne os diferentes animais da selva e lhes diz qualquer coisa como: "Hoje vão todos fazer um teste. Por uma questão de igualdade, a prova terá de ser a mesma para todos. E hoje o teste é o seguinte: todos vocês têm de subir a uma árvore!". 

Pois bem, é mais que tempo de deixar de exigir ao elefante ou ao hipopótamo que tentem subir árvores e dar-lhes a possibilidade de atingirem os mesmos objetivos de acordo com os seus interesses e natureza. 

Na minha escola, por exemplo, a avaliação é feita por competências e os testes valem cerca de 50% da nota dos alunos (fazemos apenas 3 por ano). Tudo é avaliado, mas nem tudo é avaliado por testes. Ao longo do ano, os alunos fazem um ensaio filosófico (uma avaliação mais "académica", portanto) sobre um problema filosófico escolhido por si. Fazem "tarefas coletivas de turma", em que cada aluno contribui para a realização de um trabalho global da turma (a título de exemplo, a clarificação e explicação do que são problemas filosóficos constitui a tarefa "objetos filosóficos", em que cada aluno trouxe para a aula um objeto por si escolhido e explicou aos colegas a razão da escolha e o que ele tem de filosófico). Houve quem levasse um relógio para perguntar "o que é o tempo?", rimmel ("o que é a Beleza?"), 1 euro ("o dinheiro é o mais importante na vida?") ou, ainda, quem não levasse objeto algum para poder perguntar: "o que é o nada?".

Mas o mais interessante é o projeto pessoal de Filosofia (PPF), um trabalho de projeto que é feito ao longo do ano e em que os alunos trabalham um problema/tema filosófico escolhido por si e o abordam da forma que entenderem: texto, banda desenhada, curta metragem, música, dança, jogo, diário gráfico, etc., etc.

Só para que se perceba a importância do PPF, ele tem um peso de 2 valores na nota final do aluno.

Bom, e para além de tudo isto, temos a atitude e o comprometimento nas aulas e o respeito que lhes é exigido pelos colegas e pelas suas opiniões.

Como se constata, os alunos trabalham provavelmente muito mais (e melhor, espero eu) do que se fossem avaliados essencialmente por testes que são o paraíso para quem escreve bem e o inferno para quem preferiria expressar-se também de outras formas.

Nas últimas 3 semanas de aulas, com a matéria já dada e o essencial das notas definidas, os alunos e as alunas apresentam à turma os seus PPF, em que andaram a trabalhar (autonomamente, mas com a minha supervisão) ao longo do ano.

É por tudo isto, cara amiga e caro amigo, que eu posso arriscar imenso e dizer: NINGUÉM VAI CHUMBAR A FILOSOFIA!

Lá para junho conto como foi 😉

Obrigado pela paciência.

 

Carlos Café”

domingo, 18 de outubro de 2020

Equações matemáticas são difíceis. Problemas filosóficos são uma treta.


Não penso que a generalidade das pessoas dê mais valor a determinados conteúdos do saber do que à filosofia. Como o psicólogo, prémio Nobel da economia, Daniel Kahneman, nos mostrou no seu extenso,
 Pensar depressa e devagar (edição portuguesa da Temas & Debates), filosofia ou física ou matemática exigem pensamento de 2ª ordem, o pensar devagar, o que implica esforço. Mas a imagem social, o que fica no senso comum, dos diferentes saberes influencia muitas vezes a maneira como nos relacionados de todo com o conhecimento. Por isso é que esperamos, por exemplo, maiores responsabilidades do que aquelas que seria de esperar, dos médicos, pois socialmente olhamos para eles como uma espécie de sábios. E não são. Ainda na sexta passada um médico fez um ar admirado quando lhe expliquei que havia investigação de topo, muito rigorosa, sobre o problema moral da eutanásia. E ele lá confessou que nem sabia que isso era matéria de estudo académico. Outro exemplo é a imagem social de disciplinas como a matemática (gosto de usar este exemplo por várias razões) e a filosofia. Assim, para o comum das pessoas, se não sabem resolver uma equação é porque se trata de uma matéria difícil. Mas se não compreendem um argumento filosófico é porque é conversa da treta. Ora, pode acontecer que o argumento seja uma treta. E pode acontecer que a resolução de uma equação também o seja. Mas ao mesmo tempo é verdade que os mecanismos intelectuais que geram consenso na matemática não são exatamente os mesmos que possam gerar algum consenso para os argumentos filosóficos. Isto acontece não por nenhuma pobreza da filosofia, mas antes pela natureza dos seus problemas, pois são problemas para os quais dificilmente teremos consenso. Daí não se segue que sejam resolvidos pelo subjetivismo. Acontece apenas que tentar resolvê-los é a própria razão de existência da filosofia. Ou pelo menos investir nessa demanda. Mas o sentido comum em que se diz muitas vezes que o argumento é uma treta parece errado, pois os argumentos são maneiras de tentar sistematizar uma realidade que muitas vezes é de tal modo complexa que parece escapar a qualquer investida intelectual, a qualquer enquadramento teórico. Tal não é razão para se cruzar os braços. E neste sentido, aquilo que sabemos ou podemos saber em filosofia não é muito diferente daquilo que sabemos ou podemos saber em muitas outras áreas. Acontece por vezes (creio que quase sempre, até) que a ideia comum que guardamos de consenso em física ou matemática pode estar errada. Os consensos nessas áreas são muitas vezes temporários e levam muito tempo até gerar novos consensos. Esta ideia foi explorada pelo filósofo de formação em física Thomas Kuhn, no seu influente livro, A estrutura das revoluções científicas. E obviamente este livro também não é, ele próprio, consensual entre os filósofos e tem sofrido muitos ataques exatamente porque o autor pretende encerrar um problema. E mais uma vez, não teve um final feliz. 

O lado social destas visões tem o desenlace menos feliz de afetar muito o desenvolvimento intelectual das diferentes áreas. Isto porque se socialmente continuarmos a supor que os argumentos filosóficos são uma treta ao mesmo tempo que achamos que as equações matemática são apenas difíceis, acabamos por sofrer um desinvestimento na massa crítica de áreas como a filosofia. E é por essa razão que existe um esforço de publicar alguns livros introdutórios, praticar um ensino da filosofia que seja rigoroso, etc... no sentido de dignificar socialmente a disciplina. Claro que também se pode cair facilmente na aldrabice, muitas vezes bem intencionada, por muito paradoxal que nos possa soar. Mas é verdade que o esforço de fazer chegar ao pensamento apressado de kahneman muitas das vezes torna a filosofia um exercício patético. Seria o mesmo que traduzir equações matemáticas complexas em operações aritméticas simples. Ou algo ainda pior. 

 

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Crise das humanidades e da filosofia. Vem de dentro ou de fora?

Imagine que se pede a um professor de física para estabelecer a relação entre a queda dos graves e deixar cair no lixo no chão e a consequência para o ambiente? O que esperar? Pois em filosofia tais absurdos são possíveis sem que provoque qualquer espanto até por muitos daqueles que a ensinam.
estudo de Sokal e Bricmont publicado em 1997 foi a machadada final que haveria de ser dada às ciências humanas. Estes dois físicos submeteram um artigo anónimo à revista prestigiada de ciências sociais, Social Text, com erros e absurdos deliberados. O espantoso é que o artigo foi aceite pela revista e publicado. O que os físicos fizeram foi usar jargão científico num contexto de humanidades, mas com relações causais inexistentes ou absurdas. O que pretenderam mostrar foi o abuso das ciências humanas em falar daquilo que não sabe, em estabelecer relações vagas, em fazer da vagueza a sua zona de bem-estar. Um ano após a aprovação do artigo, os físicos desvendaram a aldrabice. A verdade é que o livro estalou o ambiente nos departamentos de ciências humanas (em Portugal creio que nada se passou, apesar da Gradiva em tempo útil ter publicado o estudo entre nós). Mas a partir daí alguns departamentos de ciências humanas procuraram uma revolução enquanto a maioria permaneceu quieta no conforto do vazio pós-moderno. Assim, autores como Foucault ou Deleuze saíram da esfera da filosofia nos departamentos mais revolucionários, ao passo que nos outros passaram a constar dos estudos sociais e literários tais como estudos feministas, movimentos anti sistema, etc. com a clara influência do marxismo cultural. Obviamente a filosofia perdeu prestígio social nestes meios. Passou a ser tomada como uma disciplina de cultura geral, sem grande rigor, uma espécie de narrativa onde tudo cabe desde que tenha a toada da catequese mais elementar baseada, como qualquer catequese, em ideologia (e pouco ou nada em ciência e rigor). Este é o contexto em que se insere o ensino da filosofia em Portugal, ainda que com algumas investidas pelo meio de aprimorar o rigor que a disciplina merece. Mas socialmente passou a ser vista como uma disciplina apenas para aumentar um pouco a cultura geral dos alunos e como muitas vezes eles até chumbam, creio não estar muito distante da realidade se afirmar que muitos pais e alunos até batiam palmas se a disciplina acabasse de vez como formação geral. Os professores de filosofia aperceberam-se deste desprestígio e, em regra, acham que tudo não passa de uma orquestração do mundo moderno para liquidar a liberdade do pensamento. É aqui que eu não estou alinhado com a maioria, pois acho que não existe qualquer conspiração antifilosofia ou que da parte do poder existe uma tentativa de socializar os jovens alunos num ambiente de amorfismo intelectual. Pelo contrário estou convencido que o problema é interno à própria disciplina e ao que muitas vezes dela fazemos, ao alinhar nestas aldrabices de projetos e quejandos que tais com relações vagas com a disciplina. Tal como os dois físicos mostraram, as ciências ditas humanas e sociais perdem em rigor porque fazem abordagens vagas, porque fazem da Zizeckmania uma forma de estar no saber e no conhecimento (em Portugal tivemos um Agostinho da Silva e mais tarde um Eduardo Lourenço, erradamente tomados como filósofos, sem que tenham avançado grandes contributos para a filosofia).
No ensino secundário esta crise é notória quando se aceita pacificamente que existe uma relação estreita entre filosofia e cidadania. Acontece que essa relação não é mais estreita que a relação entre filosofia e conhecimento, filosofia e arte, filosofia e sentido da vida, filosofia e moralidade, etc. Isto é, existem teorias discutidas da cidadania em filosofia política, mas tais teorias estão a léguas daquilo que se quer fazer da cidadania nas escolas secundárias. A filosofia que prestigia a disciplina não se compadece com catecismos e cadernos de encargos políticos feministas, religiosos, da luta pelos direitos dos animais, direitos humanos, etc. E para fazer um ensino rigoroso da filosofia é igual se estamos a discutir o problema dos direitos morais dos animais não humanos ou a justificação epistémica do ponto de partida do conhecimento em geral, apenas pegando em dois exemplos. Esta ideia de que se parte da experiência dos alunos é tão válida na filosofia como na física ou na biologia e não deve ser mais explorada na filosofia do que nestas outras disciplinas.  É por isso que a esmagadora maioria dos projetos de cidadania alojados na disciplina de filosofia, por muito bem intencionados que possam ser, em rigor, não possuem qualquer relação com a filosofia e não passam de logros filosóficos. Ganhe-se então coragem e acabe-se de vez com a disciplina e em seu lugar coloque-se qualquer coisa como “Cidadania e participação”, sei lá...
A professora de filosofia do ensino secundário Maria Alcina Dias escreveu publicou recentemente um artigo no Jornal Público (ver AQUI) onde chama a atenção para a conceção do exame nacional e o retrocesso no ensino das humanidades. Mas outra coisa não será de esperar quando do lado de dentro as ciências sociais e humanas teimam em cavar cada mais fundo a sua cova. Nesta pequena entrevista que dei a um programa de entretenimento na RTP Madeira (ver AQUI), que fez a cobertura do Telensino, abordei esse problema do ensino da filosofia ao defender que o prestígio social da disciplina não é igual ao da matemática, e ao passo que nesta última um professor menos bom é apontado como o culpado do mau ensino, no caso da filosofia, é sempre a disciplina que fica em causa. 
Portanto, quando nós professores, aceitamos pacificamente que na nossa disciplina cabe tudo quanto é ideologia e catequese, quando não nos incomodamos que o Zizeck seja o mais famoso dos supostos filósofos, quando fazemos, mesmo que inadvertidamente, a apologia da vagueza, quando não sabemos distinguir a filosofia dos demais saberes, quando a nossa cultura filosófica parou no tempo, quando aceitamos sem reservas que sejam retiradas horas à nossa disciplina para projetos inócuos ( e a lei nem sequer impõe que tal seja assim, ver Art. 15, ponto 4, DR, 1ª série – Nº129 – 6 de julho de 2018), estamos sem dúvida a cavar a cova para enterrar de vez a disciplina. Não temos, pois, de ter medo nem do rigor nem da filosofia. Também nós, profissionais da filosofia, devemos arrancar a filosofia da social text e das suas imposturas intelectuais.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Começar o ano com sugestões

Chegamos aos anos 20. Saber se isso é ou não relevante é uma resposta que ainda vem longe. Mas nada melhor que construir os anos 20 com mais conhecimento e partilha. Para tal começo com uma referência de um blogue de ensino de colegas brasileiros e que tenho seguido desde há uns meses. A organização do espaço está entre um blogue e um site com aspeto bastante profissional. Chama-se Filosofia na Escola e além de discutir problemas filosóficos, são disponibilizados materiais de ensino e sugestões de aulas, assim como modelos e métodos de ensinar a pensar e ensinar filosofia. O site pode ser consultado AQUI
(Foto do site Filosofia na Escola)


Para arrancar o ano publiquei um texto no Pequenas Luzes sobre ciência, factos, conhecimento e pensamento mágico. Pode ser lido AQUI

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

Olha! Afinal já não somos todos filósofos!

Algumas vezes pode não ser simples estabelecer uma barreira que nos diga quando é que se começa a ser cientista ou quando é que se começa a fazer filosofia. Mas do mesmo modo que ninguém se pode considerar a si mesmo matemático porque quando vai às compras faz contas de cabeça, também ninguém se deve considerar filósofo apenas porque escreveu duas linhas desarticuladas sobre problemas fundamentais da vida humana, como a morte, o sentido da existência ou a justiça. Infelizmente não é de todo incomum entrar numa livraria e ver livros de autoajuda no lugar da psicologia ou livros de religião e espiritualidades no lugar da filosofia. Isto é apenas querer vender o que uma população incauta e desinformada compra. Já me deparei, a este propósito, com situações caricatas, como a de entrar em casa de alguém que não leu mais do que 2 livros na vida e encontrar O Sentido na vida de Susan Wolf (Bizâncio, 2011) numa prateleira. Claro que a pessoa que o comprou não sabia o que estava a comprar, pois o livro devia estar à venda entre livros de autoajuda ou espiritualidades. Com efeito trata-se de um denso ensaio de filosofia e quem não tem uma preparação base não irá avançar mais que duas ou três páginas. E este ainda que denso não é dos tecnicamente mais sofisticados. Ocasionalmente revistas e jornais lançam coleções de clássicos da filosofia, mas tenho muitas dúvidas do êxito comercial de livros de David Hume, Kant ou mesmo Platão. Talvez eu esteja enganado. Era bom era. Mas penso que estas coleções são material barato que se lança para o mercado. A ideia não é vender um livro de David Hume, mas com ele vender outras publicações. 
Mas regressando à ideia inicial, não basta pensar para ser filósofo. Já vi uma vez uma profissional da filosofia explicar a miúdos adolescentes que filosofar é pensar. Ora se pensar é uma condição necessária à filosofia, também é à matemática ou à química ou à própria vida. O meu avô foi mineiro e não consta que não pensasse, mas nunca foi tido como filósofo. Vem isto a propósito que a imagem que o senso comum guarda do filósofo é mais ou menos aquela que guarda do cientista, um tipo meio louco com umas ideias muito malucas e muito à frente, que não servem para nada e que somente ele e uns ilustres compreendem. E, pior ainda, até nas academias há quem se sirva bem desta imagem e a use sistematicamente. Mas isto acontece em regra como forma de disfarçar a ignorância. Não que um filósofo não possa ser meio louco. Mas não é por ser filósofo que é meio louco pois isso sempre o seria mesmo sem ser filósofo. Recordo que pelo menos por duas vezes na vida me disseram que eu era uma pessoa de filosofia normal. Ora, pessoalmente nem gostei muito do normal, pois sempre achei que o normal não é nada de especial. Mas penso ter percebido a associação da filosofia e da normalidade pois são duas categorias que no senso comum não costumam encaixar bem. Isso não é culpa das pessoas que não têm formação alguma em filosofia. Na verdade a ideia do intelectual de esquerda pós moderno que fala de modo tão sofisticado que ninguém o entende foi muito bem divulgada entre nós, provavelmente influência dos pós modernos franceses. Assim é, para muitas pessoas, incluindo muitas de formação filosófica, muito difícil aceitar que se seja lúcido, claro, sem recorrer ao terrorismo verbal e ao mesmo tempo rigoroso e, ei lá, filósofo. Essa é, penso, uma das razões que incita tanto ódio à filosofia de expressão anglo saxónica, vulgo filosofia analítica. Nesta o filósofo deixou de ser um malabarista da linguagem, uma espécie de rebelde intelectual que ninguém entende muito bem mas toda a gente gosta de ouvir sem perceber o que ouve. Deixa de ser um teórico da desconstrução e da teoria sistemática da suspeita, para ser alguém que raciocina com clareza, que desmonta com clareza os argumentos, que os analisa com rigor e que é capaz de espremer a suposta filosofia pós moderna mostrando que dali não vai surgir sumo algum. A filosofia analítica aproxima não só a filosofia do seu lugar mais tradicional, mas devolve-lhe vitalidade e coloca-a de novo a par e par com a ciência sem contudo se confundir com essa. 
Sempre gostei muito do trabalho dos Gato Fedorento. Souberam como poucos apanhar estes tiques culturais e expressá-los através da sua arte, o humor. Por isso vale a pena rever como os Gato Fedorento caricaturaram exatamente isto que aqui abordei neste texto de opinião. 


quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Professor, as aulas de filosofia são confusas!


Quem leciona filosofia certamente já foi confrontado com observações contraditórias por parte dos seus alunos. De uma mesma aula, alguns alunos dizem que “a filosofia entende-se bem”, “o professor é muito claro nas explicações das teorias” ou, ao invés, “esta aula é uma confusão”, “o professor é um confuso”. Do ponto de vista de quem ensina o caminho fácil é considerar os alunos que fazem o primeiro tipo de afirmações uns amores e os que fazem o segundo tipo, uns estupores. Mas ensina-nos a vida que o caminho mais fácil nunca é o melhor e talvez estas afirmações dos alunos mereçam alguma consideração com detalhe. Ao mesmo tempo sabemos que a referência generalizada nas dificuldades quanto às aprendizagens na matemática é a conhecida “falta de bases”. Pois, o que me parece acontecer na filosofia é exatamente o mesmo, falta de bases. Não é por acaso que a filosofia ocorre nos currículos somente no ensino secundário, ou pelo menos com especial incidência na adolescência (pese embora experiências paralelas meritórias na filosofia para crianças). E ocorre nesta etapa da vida dos estudantes precisamente porque se considera que neste nível o estudante é capaz de abstração. Para compreender o problema do livre arbítrio, a causalidade não é coisa que se veja com os olhos. Quando um aluno vê o professor empurrar uma garrafa de água é somente isso mesmo que vê, muitas das vezes sem compreender que existe ali um fenómeno físico e material de causalidade. A causalidade é uma medida que se capta com a mente e não com os olhos. Se este terreno de base não está preparado, será, assim, muito difícil ao aluno compreender a relação estabelecida entre causalidade natural e livre arbítrio e, daí, captar a essência do problema.
Existe uma tendência para estes alunos com dificuldade de apreensão abstrata em considerar que as aulas devem ser um despejar de definições que se decora acriticamente. Claro está que perante alunos com estas características a filosofia pode ser uma grande desvantagem. E para o professor sobra trabalho suplementar já que tem de trabalhar em função desta incapacidade, ou melhor, desta capacidade ainda não treinada. Além de ter de saber resistir aos comentários dos alunos em relação às matérias que tem para com eles trabalhar.
Há formas muito simples de compreender se esta base da abstração está ou não trabalhada. Por exemplo, com a exibição de uma reprodução da Guernica, uns alunos vão observar que estão a ver um boi, uma lâmpada, um homem aos berros, quando outros, perante o mesmo desafio, já observam que estão a ver sofrimento, confusão, caos e miséria. Roubando um pouco à teoria de Piaget, diria que os primeiros ainda militam na fase das operações intelectuais concretas, quando os segundos já estão na fase das operações abstratas.
Os testes diagnóstico podem dar uma primeira imagem ao professor do estado dos alunos e o que pode esperar das suas aprendizagens. No caso dos alunos com esta capacidade ainda não trabalhada, o melhor mesmo é avançar com a leitura de pequenos textos com algum grau de abstração (como qualquer bom texto de filosofia) e pedir comentário quase linha a linha. Mas no nosso sistema formal de ensino, não há tempo a perder, pelo que há que procurar o equilíbrio entre este trabalho e o avanço dos conteúdos. Mas parece claro que os alunos avançam a ritmos muito diferenciados em virtude da sua capacidade de compreender o mundo abstratamente. E qualquer professor do secundário está consciente das dificuldades encontradas nos alunos sem esta base: preguiça, reacionarismo em relação à disciplina e ao professor, etc. É uma luta dura.
Um trabalho interessante é ter algumas ideias minimamente sólidas das razões por que estas bases não são consolidadas. E existe muita literatura interessante sobre o assunto, desde a sociologia até à psicologia e as neurociências. Mas é difícil atirar com certezas perante esta dificuldade.
Entre as razões mais imediatamente compreensíveis estão as sociais e familiares. Um aluno médio de 15 anos pode saber perfeitamente o nome dos defesas centrais do atual plantel do Benfica (e não há mal algum nisso), mas dificilmente ouviu falar de Picasso. E que razão me leva a pensar que há aqui um qualquer hiato entre aquilo que a realidade é e aquilo que ela deveria ser? Porque o futebol, pese embora possa ser abstratamente analisado, lida diretamente com as emoções e é essa a relação mais comum que a esmagadora maioria dos adeptos de futebol têm com a modalidade. Mas olhar uma obra de Picasso exige alguma abstração, pelo que o exercício implica algum trabalho intelectual. E é exatamente este o trabalho que muitas das vezes as famílias, meios de comunicação e sociedade em geral poderiam fazer de modo mais consistente e que, na minha opinião, não fazem.

Este trabalho é comunitário no sentido em que não cabe exclusivamente aos professores, mas a todos. Quando confiamos apenas nos professores para realizar este trabalho não deveria pelo menos ser estranho que os alunos muitas das vezes considerem a filosofia confusa quando com ela se confrontam pela primeira vez. 

Link da imagem: (https://gartic.com.br/luchfe/desenho-jogo/confuso)

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Ano letivo 2017/18 - mudanças e filosofia


Em Portugal Setembro é o mês do regresso às aulas. Nos últimos anos tem sido marcado negativamente em várias frentes: os pais e o custo financeiro com os manuais e material escolar, os professores com a enorme instabilidade profissional, a rede escolar com problemas de equilíbrio, etc… de uma forma resumida o que mais marca o início de cada ano letivo são as alterações das “regras do jogo”. Mas ao mesmo tempo que alguns aspetos no ensino mudam de ano para ano (por vezes menos), outros há que não mudam há mais de uma década. O programa de filosofia vigente data de 2001 (ver aqui). Muitas mudanças no ensino acontecem porque cada ministro que sucede o anterior, assim como as novas equipas, têm ideias diferentes e querem assim imprimir a sua marca, não se dando conta que desse modo estão a estragar mais do que o que arranjam. Neste sentido, ainda bem que o programa de filosofia não tem sofrido alterações. Alterar apenas porque sim, não me parece uma boa ideia. E alterar apenas porque se discorda totalmente também não me parece razoável. Há um trabalho de base meritório que vale a pena retocar. Afinal de contas, nós, professores, andamos há tantos anos nisto, a trabalhar um programa que parece insensato querer alterar tudo de uma só vez. Felizmente as propostas que entretanto se vão falando não seguem esse sentido, o de tudo alterar. A proposta, oficial de revisão curricular para a disciplina no 10º ano já circula livremente (ver aqui). E ela inclui alguns aspetos muito interessantes, embora, claro, discutíveis. A inclusão da lógica elementar logo a abrir o 10º ano parece-me uma opção correta como método de trabalho. Mas é igualmente importante que os tempos letivos para cada unidade sejam pensados não de modo a explorar os conteúdos teóricos sem considerar o trabalho e tempo necessário em sala de aula para trabalhar textos, interpretação aplicando os métodos aprendidos, gerir comportamento adequado ao trabalho, etc. Claro que começar a disciplina pela apresentação do método não é, em muitos sentidos, uma opção feliz. Se o que anima a disciplina, por que não começar logo por debater os problemas? Haveria algum prejuízo em começar a ensinar astronomia olhando para as estrelas?
É sobretudo importante que as mudanças não impliquem transformações de fundo constantes, muitas vezes quase ao sabor do vento ideológico ou de preferências grupais sem atender os muitos e diversos contextos em que a disciplina se ensina. As mudanças permanentes atrapalham o trabalho nas escolas e em regra acabam sempre por desmotivar.
Por fim, uma palavra aos professores de filosofia. Segundo percebo são muitos os professores de filosofia que não ensinam filosofia. Isto acontece porque os horários têm vindo a diminuir e, entretanto, os disponíveis acabam todos ocupados por professores de quadro de escola e com mais tempo de serviço. Por isso mesmo em muitas escolas os professores de filosofia estão a ensinar disciplinas que não a filosofia. Não considero a filosofia mais essencial que muitas outras disciplinas que podem ser ensinadas. Afinal, poderíamos ter um currículo diferente e até melhor com ou sem a filosofia. O ponto aqui é outro. Os professores de filosofia estudaram filosofia e prepararam-se durante alguns anos para o domínio científico da filosofia. Por isso mesmo e enquanto cá andamos e é tempo, esta parece ser uma boa razão para assegurar a disciplina no ensino geral e obrigatório. Como disse, um bom sistema de ensino pode dispensar uma outra disciplina ou substituindo-a por outra igualmente importante. Daí não se segue que a disciplina de filosofia seja dispensável. Acontece que, uma vez existindo, isso é por si mesmo uma boa oportunidade para fazer um bom trabalho na sua apresentação.
E ainda antes de terminar. Costumo usar uma hipótese quando pessoas não ligadas ao ensino criticam de forma geral o trabalho dos professores: “- Vamos imaginar que é verdade que os professores são todos mesmo maus. Sendo isso verdade e sabendo disso mesmo, o que é que devemos fazer, substituir todos os professores por carpinteiros nas escolas?” Invariavelmente a resposta é não. Isto é, temos de trabalhar com o que somos e temos, saber contar apenas com o nosso trabalho. Tudo o que vier a mais de positivo será bom. Mas não podemos esperar que sejam os de fora, mesmo os das universidades, a fazer o nosso trabalho. Não podemos nem devemos esperar que nos preparem os programas, as aulas, os materiais que usamos. Dependemos apenas de nós mesmos.  

Um bom ano a todos

terça-feira, 28 de junho de 2016

Argumentos contra e a favor do chumbo


Este pequeno texto surge a propósito de discussões como a que vê AQUI e AQUI
A medida para avaliar a aprendizagem dos alunos é a classificação final. Supostamente o chumbo permite, em teoria, repetir as aprendizagens para que estas se revelem eficazes. Vou admitir que este princípio está correto. É assim que aprendemos as tarefas mais básicas desde pequenos. Mas a realidade nas escolas parece mostrar outros indicadores, a saber, que o chumbo muitas das vezes, senão mesmo na maioria, não resolve os problemas de aprendizagem e chega a agravá-los. Assim nasce a discussão entre os que defendem o chumbo e os que, na outra margem, defendem que o chumbo só em casos excecionais deve ser aplicado. Vou aqui analisar, não de forma exaustiva, apenas um argumento para cada lado da discussão.

Argumento a favor do chumbo – o argumento do laxismo
Este argumento baseia-se no premissa de que passar alunos sem saber produz uma atitude de laxismo da parte dos mesmos, pelo que é de concluir que os alunos devem chumbar. O argumento formalizado ficaria assim:

(p1) Se passarmos os alunos sem saber, eles vão achar que a escola não passa de um lugar de lazer
(p2) mas a escola não é somente um lugar de lazer
(c) Logo, não se deve passar alunos sem saber

Este parece ser o principal argumento contra o chumbo. Acontece que as premissas são muitíssimo discutíveis, o que faz com que o argumento, apesar de ser logicamente válido, daí não se segue que seja bom, isto se conseguirmos mostrar que pelo menos uma das premissas é falsa. Ao mesmo tempo as premissas parecem conter algum elemento de verdade. Resta, portanto, questionar se podemos instituir o chumbo como medida de aprendizagem, apenas com meias verdades? Mas como mostrar que as premissas são falsas? A (p1) é parcialmente falsa se considerarmos que a condição de aprendizagem de um aluno não depende apenas do seu esforço individual. Sou tentado a defender que o esforço será sempre o melhor meio para obter resultados e que sem ele, resultado algum será meritório se for positivo. No entanto, de que depende, afinal, o sucesso de um aluno? Depende, como sabemos hoje, de um conjunto de fatores sociais, económicos e eventualmente também biológicos. Acontece que alunos mais jovens parecem não ser de todo responsáveis pelo meio social em que vivem, pela sua própria biologia e também pela sua condição económica. Se isto for verdade, estamos a chumbar alunos, não em detrimento da sua responsabilidade ou do seu laxismo, mas por fatores que ele não domina de todo. Será isso justo? Neste caso, o que a escola indica ao aluno não é que ele não seja capaz por si mesmo, mas que aquilo que a escola lhe pede, não está em conformidade com o seu contexto. Mas como pode o aluno mudar o seu contexto? A verdade é que não pode e somente um número muito reduzido de alunos vão conseguir ultrapassar as dificuldades contextuais. Nesse caso a escola falha o seu objetivo, que é fazer com que aqueles que não possuem meios de aprendizagem venham a obtê-los na escola. E, por conseguinte, a escola acentua as assimetrias sociais e económicas. Parece que nesta condição os alunos apenas ingressam na escola para que esta lhes passe um certificado pela sua condição social e biológica da qual não são grandemente responsáveis.  
A (p2) parece ser menos problemática, ainda que o conceito de lazer possa ser discutível. Mas não me parece necessário entrar por aí. Creio ter mostrado as insuficiências do argumento apenas derrotando a (p1).


Argumento contra o chumbo – o argumento da ineficácia
O argumento principal contra o chumbo baseia-se na premissa de que chumbar não produz melhores efeitos, isto é, que a esmagadora maioria dos alunos que chumbam, não revelam futuramente melhores resultados por terem chumbado. Assim, poderíamos formalizar o argumento mais ou menos deste modo:

(p1) se chumbar alunos é eficaz então os alunos que chumbam produzem melhores resultados
(p2) mas os alunos que chumbam não produzem melhores resultados
(c) logo, chumbar alunos é ineficaz

Mais uma vez, formalmente o argumento é válido. Segue-se que, se as premissas forem verdadeiras, a conclusão também o será. Mas serão as premissas verdadeiras? Já mostramos na análise do argumento a favor do chumbo que os dados têm revelado que chumbar não produz melhores resultados. E se tal for verdadeiro (não possuo dados concretos para analisar com rigor científico o valor de verdade da premissa), isto é, se for verdade que chumbar alunos não produz melhores resultados, então, racionalmente, temos de procurar outras respostas como medidas de aprendizagem. E onde é que elas estão? Na minha opinião, estas respostas residem em dois fatores principais:
1.      Programas de ensino têm de ser reformados – os programas de ensino, em regra, têm uma página de atividades e estratégias de ensino para cada 10 de conteúdos. Ora, isto transforma a esmagadora maioria das aulas numa espécie de “debitadora de sabedoria”. O que é que isto quer dizer? Se o professor se vê a braços com um extenso programa de conteúdos, cheio de pormenores, a sua preocupação central será o cumprimento do programa, ensinando-o com a maior correção possível. Talvez por isso em 20 anos de ensino tenha ouvido muito na sala de professores coisas como “em que parte do programa vais?”. Mas raramente ou mesmo nunca ouvi qualquer coisa como “os teus alunos estão a aprender o que tens para lhes ensinar?”. Isto acontece precisamente na medida em que a confiança no ensino é depositada no que o professor tem de ensinar e não tanto no modo como o aluno aprende. O aluno passa a ser muito mais passivo na sua aprendizagem. As recentes reclamações de associações de professores de matemática em relação aos programas parece vir neste sentido. Ou seja, muitos conteúdos para ensinar, pouco tempo para aprender. A forma mais simples e economicamente mais favorável de resolver isto é inverter a tendência dos programas de ensino. Como? Invertendo a formula de “uma página de estratégias para a cada 10 de conteúdos”, para “uma página de conteúdos para cada 10 de estratégias”. Isto permitiria aos professores de mais tempo para que os alunos pratiquem o que aprendem. Ou seja, para que aprendam os conteúdos e aprendam a aprendê-los, que é coisa raramente vista pelo menos no sistema de ensino português. A matemática mais uma vez aparece como disciplina exemplar. Como há muitos conteúdos a desenvolver, os alunos não chegam a praticar o necessário nas aulas. Por isso pagam explicações privadas para que passem tempo a fazer o que não fazem nas aulas, a praticar.
2.      Por outro lado há também um outro fator que reforça esta minha ideia. Hoje em dia o professor já não o único meio de acesso ao conhecimento para os alunos. A internet mudou a forma como acedemos ao conhecimento. O que não falta são meios de aprendizagem através das novas tecnologias.  Os alunos têm acesso a livros, resumos, testes, exames, etc. sem ter de esperar pelo professor como única fonte de conhecimento. A autoaprendizagem é uma realidade claramente possível nos nossos dias. Isto porque o acesso ao conhecimento é muitíssimo mais universal. Ora, esta realidade muda o papel do professor que passa a ser mais um orientador no modo como se aprende e não como o transmissor em exclusividade do conhecimento. Resultado disto? Sobra mais tempo para praticar, para treinar.
3.      As escolas precisam de mais meios – assistimos a um discurso sobre economia que tem tanto de interessante como de paradoxal. Por todo o lado representantes políticos e económicos defendem o empreendedorismo, que o investimento é o fator mais determinante no sucesso de uma economia. As empresas que mais investem são as que mais sobrevivem às intempéries económicas. Então não se percebe a razão pela qual o discurso em ensino e educação é exatamente o contrário, ou seja, que “fazemos mais com menos”, que “quem ensina 10 alunos também ensina 30”, etc. Mas que investimentos precisamos mais em educação? Principalmente o investimento no tempo que os professores dispõem para acompanhar as aprendizagens. Os professores precisam de tempo para poderem ponderar avaliações para além dos testes. Um professor que tenha uma média de 100 alunos e que peça um trabalho escrito de 2 páginas (no secundário, por exemplo) fica com 200 páginas para corrigir (fora testes e todos os outros trabalhos burocráticos). Os testes e exames são instrumentos úteis às aprendizagens. Mas não têm de ser os mais importantes. Quando trabalhei durante quatro anos em exclusivo numa escola profissional privada foi isso que percebi. Os alunos não eram nem mais nem menos capazes que os outros. Mas tinham mais sucesso, apesar de uma boa maioria ter alguma história de insucesso no ensino regular. A diferença é que, sendo a avaliação modular, um módulo podia avaliar-se com uma exposição oral e um outro com um teste escrito e ainda um outro com um trabalho prático e de grupo. Por outro lado as avaliações tendiam a ser realizadas em espaços de tempo mais curtos.

A discussão que aqui proponho está longe de ter um fim. Inclino-me a pensar que chumbar não é a melhor resposta da escola. E isto porque de todas as estratégias possíveis, o chumbo é aquela que melhor conheço. No sistema de ensino português ( e provavelmente da maioria dos países) não são testadas outras respostas ao problema do insucesso. É obvio que se levantam inúmeros problemas quando se fala em experimentar soluções quando estamos a falar da vida das pessoas. Mas precisamente por isso valeria a pena arriscar um pouco mais. Isto porque acaso se descubra um dia que a figura do chumbo é inadequada, a verdade é que passamos séculos de história a recorrer ao chumbo sem sequer testar modelos alternativos. Quantas vidas se prejudicou? Em educação requer-se verdade e honestidade. Mas uma e outra não vivem pacificamente sem algum risco. Porque educar não é um lugar seguro.