Com o Percursos estamos perante um manual que me parece levantar algumas limitações na prática lectiva. A composição do texto dos autores tem erros pontuais o que lhe confere alguma falta de rigor. É com alguma frequência que encontramos frases como esta: "o raciocínio científico, (que infere teorias gerais a partir de observações particulares) é frequentemente apresentado como paradigma de raciocínio indutivo"(p.12).trata-se de uma ideia enganadora. As teorias gerais não se inferem por indução de observações particulares. A observação de casos particulares é um dos elementos da elaboração das teorias científicas, mas não é o único. As teorias são também fortemente dedutivas. As coisas estão misturadas. Para explicar aos alunos o que é a indução, mais vale dar exemplos. Se queremos depois dizer que as ciências empíricas usam muito a indução, temos de o dizer assim e não do modo enganador acima.
O potencial didáctico do manual deixa muitas vezes a desejar. Fico com um ponto de interrogação de como funcionará a compreensão do aluno na leitura de passagens como esta que escolhi: “A questão está em saber não o que torna uma cadeira real por oposição a uma mesa real, mas em saber o que torna uma cadeira e uma mesa reais, por oposição a uma cadeira e a uma mesa não reais, imaginadas, por exemplo.” Isto para iniciar o ponto sobre a natureza e possibilidades do conhecimento. O texto arranca logo assim, de rompante, após um excerto vago e claro de Nigel Warburton, uma livro com mais de 10 anos de edição portuguesa, mas que somente em anos mais recentes aparece em abundância nos manuais, mas isto é motivo para outra discussão. Prossegue o texto, “desde já, o que distingue a cadeira ou a mesa reais da cadeira ou da mesa imaginadas não reais, é que estas existem apenas nas nossas mentes e as primeiras existem no mundo independentemente das nossas mentes”. Por acaso as coisas até podem nem se passar bem assim, uma vez que podemos ter uma existência virtual sem o sabermos. Isto são outras conversas. Arrisco a afirmar que se trata de uma opção pouco intuitiva, para além de que este tipo de conversa soa mal aos estudantes. Vamos seguir um pouco mais no exemplo que escolhi. Mais à frente diz-se: “quando olhamos para uma cadeira, a nossa experiência tem uma unidade e uma estabilidade. Não somente vemos e pensamos, vemos a cadeira como um todo independentemente das suas diversas partes que a constituem”. (p.148) Não sei qual a necessidade de todo este discurso para colocar ao estudante um problema filosófico como: Como conhecemos os objectos externos? Após um longo texto de Javier Sábada (mais bibliografia secundária), o cepticismo é exposto como uma teoria realista ingénua, ao mesmo tempo que, na mesmíssima página se inclui um capítulo pequeno no qual se compara o senso comum ao realismo ingénuo. Ou seja, o cepticismo é senso comum? È precisamente o contrário: o senso comum é, antes de tudo, dogmatismo. As parcas linhas (meia página) dedicadas ao cepticismo é a identificação do inimigo. Após ler este texto, duvido que algum aluno alguma vez sinta curiosidade pelos cépticos e é pena porque os cépticos desenvolveram argumentos fabulosos e que ainda hoje dão muito que pensar aos filósofos. Mas o Percursos precisa de identificar alguns inimigos para impor as suas teses. Um manual deve expor uma teoria ou tese sem fazer considerações de maior. Mas o manual insiste em confusões que algumas leituras poderiam ter desfeito. Ora vejamos: primeiro aquela conversa que citei acima, depois apresenta o cepticismo como realismo ingénuo para, logo a seguir apresentar duas teorias que fazem frente ao realismo ingénuo do cepticismo: o realismo ingénuo do senso comum e o idealismo. Mas depois não explica por que é que estas teorias procuram objectar o cepticismo. Confuso? Também eu! Fique o leitor com este exemplo e continue a folhear o manual que vai certamente ao encontro de outras incoerências.
O manual está cheio de exemplos desta natureza. Falta-lhe tempero na escrita e apuro em clareza. Na lógica proposicional os argumentos são apresentados quase como se fossem todos silogismos, com duas premissas e uma conclusão. Errado? Não me parece, mas podemos simplificar as coisas na base para exigir mais sofistificação mais adiante. Mas é verdade que as sínteses, por exemplo, são úteis para as aulas e estão globalmente correctas, como é o caso da que aparece na página 13. Este é um manual que precisará sempre de algumas notas complementares do professor como, por exemplo, que um argumento pode ter premissas e conclusão falsas e ser válido, que pode ter premissas falsas e conclusão verdadeira e ser válido ou ainda que pode ter premissas e conclusão verdadeiras e ser inválido. Creio também que é altura de muitos manuais abandonarem a ideia feita (por acaso muito devedora de Platão) que os Sofistas eram uns vendedores da verdade, relativistas e simplistas. Basta pensar que 1) os sofistas escreveram textos filosoficamente sofisticados e 2) que o próprio Sócrates foi muitas vezes acusado de Sofista.
Avanço que ainda há mais manuais em espera.
Em termos organizativos, o manual é ainda apoiado por uma bibliografia bastante limitada, além de ser bibliografia secundária. O autores em cada capítulo agarram-se a um ou dois livros e pouco saem dali. O manual contém muitos capítulos cuja desproporção entre o texto dos autores e os textos citados é demasiado evidente. Para o professor que pretende preconizar um ensino muito ligeirinho e, eventualmente, deparando-se com erros básicos, para além de explorar as aulas com poucos exercícios e interactividade, mesmo com muita confusão à mistura, o manual até pode ser operacional. Até tem pequenos pontos de interesse como algumas objecções às teses principais e existe no manual alguma preocupação em actualiza-lo filosoficamente, o que lhe dá uma pontuação acima de alguns congéneres, mas não lhe perdoa a ligeireza com que os problemas são apresentados.
Nos temas e problemas da cultura científica, o primeiro problema em análise é sobre as alterações climáticas. Das 14 páginas que são dedicadas ao problema, 5 páginas são textos de um único autor, 5 de uma cronologia climática , 1 de exercícios. Ou seja, mais as imagens, o qu sobra de texto do manual? Praticamente nada. E o que há para criticar? Nada. E este é o único tema problema proposto pelo manual. Todo o tema problema é passado sem citar um único filósofo.
Quanto à unidade final é uma pequena história de Galileu. Tudo fica por fazer neste capítulo. Exagera-se mais uma vez num único livro de consulta, neste caso, de Claude Allegre, um divulgador da ciência. O capítulo final, A filosofia na cidade, é a história da vida de Sócrates contada em algumas páginas.
Graficamente o manual tem uma capa elegante, mas o interior deixa a desejar, apesar de funcional. O manual acaba a perder por ainda seguir muito de perto o método de corta e cola, um método que funciona nas artes, mas não para conceber bons manuais escolares. É um manual que trata as matérias de um modo, por vezes, muito ligeiro e insuficiente.
O manual vem munido dos matérias complementares habituais, sem grande interesse. Uma palavra de destaque para o programador do cd rom que fez um trabalho acima da média do que tem aparecido em manuais de filosofia.
Carlos Amorim e Catarina Pires, Percursos, Areal Editores, 2008
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