Hoje dediquei algum tempo a mais um manual de filosofia para
o 10º ano. Trata-se, na minha opinião, de um manual confuso e fraco. Entre
outras coisas, sintetizo aqui algumas ideias que merecem correcção.
1.
Afirma
que “a filosofia e ciência se distinguem
pelo método seguido, pela linguagem utilizada e pela natureza das perguntas que
coloca.”
A primeira nota que faço é que o manual não apresenta
qualquer proposta de método da filosofia, indicando somente uns métodos
genéricos para estudar filosofia que também se pode aplicar a qualquer outra
disciplina. Ora, de que vale num manual de filosofia elaborar um guia de
estudo?
Mas o que há de errado na afirmação? Ora bem, um cientista
também argumenta, também problematiza e conceptualiza. Tal não é exclusivo da
filosofia. Se queremos apontar uma diferença entre ciência e filosofia é
didacticamente mais rigoroso explicar que ao passo que a ciência, em geral, tem
a possibilidade de apresentar resultados da sua investigação, tal não acontece
em filosofia para a qual os problemas estão continuamente em aberto. Dizer que
a filosofia se distingue da ciência por recorrer ao método racional e
argumentativo é vago, pois tais capacidades são igualmente exploradas na
biologia ou na física.
2. “São dedutivos os
argumentos válidos em que é impossível as premissas serem verdadeiras e a
conclusão falsa. Infere-se de duas ou mais premissas gerais uma conclusão menos
geral”
Há aqui pelo menos dois erros. Primeiro um argumento dedutivo
pode ter perfeitamente uma só premissa. Aliás, tem de ter no mínimo uma
premissa. Depois porque um argumento dedutivo não tem de partir de premissas
gerais para uma conclusão menos geral.
Exemplo de um argumento dedutivo, que é válido e não tem
premissa mais geral que a conclusão.
A Joana é do
Benfica e o Luís do Sporting
Logo, a Joana é do
Benfica
|
3. Afirma-se no manual, após se ter apresentado um silogismo,
que “O argumento é indutivo porque parte
de premissas particulares para inferir uma proposição universal”
Vejamos agora o seguinte exemplo de uma indução por previsão
bastante conhecida:
Todos os dias o
sol nasceu
Logo, amanhã o sol
vai nascer
|
Neste exemplo de indução vê-se bem que a premissa é universal
ao passo que a conclusão não o é.
O manual faz ainda uma distinção pouco certa entre senso
comum e filosofia, mas a certa altura refere: “problematizar é identificar e formular um problema filosófico contido
numa experiência”. Uma experiência de senso comum, acrescento eu. Mais
tarde, nas outras unidades, o manual sugere muitas vezes o recurso ao senso
comum para abordagem aos problemas.
No manual levanta-se uma questão: “o que distingue, então, a filosofia dos restantes saberes?”
E dá como resposta que “a
filosofia formula questões mais gerais e fundamentais acerca do pensamento, da
natureza e da sociedade.” Logo de seguida para exemplificar uma ciência
particular dá o exemplo da física. Acontece que a física faz questões muito
gerais e fundamentais, como a questão da origem do universo, da teoria de tudo,
teoria das cordas, etc.. e a física não se confunde, no entanto, com filosofia.
Isto acontece porque a filosofia não se distingue da física por fazer questões
mais gerais, mas porque por suposto os problemas da física terão uma resposta
testável empiricamente, ainda que tal resposta possa estar suspensa para muitas
das suas questões que são, ora mais ora menos gerais ou fundamentais que as da
filosofia. Também me parece vago afirmar que a filosofia faz questões fundamentais
sobre a sociedade. Certamente algumas áreas podem ter maior relação com alguns
aspectos da sociedade, como o caso dos problemas da filosofia política
abordados no 10º ano. Só que as questões não são mais fundamentais sobre a
sociedade do que muitas questões colocadas pelos sociólogos, por exemplo.
Finalmente, o manual refere como características da filosofia
a autonomia, a universalidade, a radicalidade e historicidade. Para o professor
que queira brincar um pouco aos manuais, pode sempre colocar esta questão: será
que a biologia não possui a sua autonomia, a sua universalidade, a sua
radicalidade e a sua historicidade? Facilmente se percebe que sim. Nesse caso
estas características não são específicas da filosofia.
Li muitas afirmações incoerentes. Ocorre-me uma em que se
afirma que o no senso comum prevalece a crença e a opinião. Que é acrítico e
subjectivo. Ora, tirando o “acrítico”, todas as outras características estão
presentes na filosofia. Primeiro porque a filosofia, tal como qualquer saber (e
não apenas o senso comum) se faz de crenças iniciais. Segundo porque qualquer
filosofia tem aspectos relacionados com a opinião dos filósofos. E também
porque a filosofia envolve muitas vezes mais subjectividade que objectividade. Basicamente
são distinções indistintas e que nada servem ao estudante para compreender o
que é a filosofia.
Como tenho insistido escrever bons manuais não é fácil. Não basta
escrever. É preciso também ser muito rigoroso. E a melhor forma de ser rigoroso
é ser claro. Para ser claro é preciso saber. Avaliar a qualidade da escrita de
um manual é importante por isto mesmo.
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