Ao analisar o capítulo dos valores de mais um manual, dei-me
conta de algumas incoerências que vi pelo menos em cerca de 10 manuais.
Em primeiro lugar há neste manual muito discurso literalmente
para encher já que o mesmo não possui qualquer relevância filosófica, não
apresentando qualquer problema da filosofia. É o que vou tentar explicar de
seguida.
A escolha de um autor como Hessen não me parece adequada, já
que se trata de um autor sem qualquer peso na discussão actual dos problemas
que são sugeridos aos estudantes neste capítulo.
O manual começa com uma distinção entre acepção vulgar de
valor, acepção económica, acepção moral e acepção filosófica. Para além destas
distinções não revelarem qualquer problema da filosofia, ela está mal feita. E
está mal feita porque nem sequer faz qualquer sentido fazer este tipo de
distinções, inculcando nos alunos mais confusões que clarificações. Vamos por
partes. Quanto à acepção vulgar diz-se que:
“é sinónimo de preferência e selecção. Ao
nível do senso comum, o valor é entendido como a preferência de alguma coisa”
Mas mais uns parágrafos à frente afirma-se que:
“os valores são
referências para o agir, na medida em que o ser humano é orientado por valores
nas escolhas que faz. No entanto, o ser humano é o detentor do seu próprio
projecto de liberdade, porquanto tem a capacidade de reinventar valores ou de
lhes atribuir novos significados ao longo da história”
Questões minhas:
1)
Então
mas esta acepção que se dá de valores (a da citação acima) não era a acepção
vulgar ou do senso comum? Qual é exactamente a diferença entre esta acepção
dada de valores e a acepção do senso comum?
Antes, na acepção filosófica de valores, o manual refere que:
“a partir do seculo XIX
e inícios do seculo xx, alguns filósofos dedicam-se ao estudo sistemático dos
valores, criando mesmo escolas de pensamento dedicadas ao estudo dos valores. É
a chamada filosofia dos valores ou axiologia”
A questão a colocar é em que medida é esta uma acepção de
valores? Não é. Trata-se apenas de uma nota de rodapé, nada mais. E assim, o
estudante pura e simplesmente fica sem saber distinguir acepção vulgar de
valores de acepção filosófica. E fica porque o manual não a explica. Introduz
uma confusão claramente errada. O que existe em filosofia são problemas que se
relacionam com os valores, tais como:
- podem alguns valores ter valor de verdade tal como os
juízos de facto têm?
- como compreender o valor intrínseco de uma determinada
coisa?
Mais adiante o manual ensina ao aluno que:
“atribuir valor às
coisas, isto é, valorar, é constitutivo do ser humano: ao sentir, pensar e
relacionar-se com o mundo e com os outros posiciona-se face às situações.
Enquanto agente, faz escolhas que têm em conta valores: um grupo de amigos, uma
relação amorosa, uma profissão, uma associação, um projecto de vida”
Ou seja, afinal, a acepção do manual é sempre a do senso
comum.
Mas para quê que se gasta quase 4 páginas com este discurso?
Saber o que são valores é relativamente trivial para alunos de 15 anos. Em 2
minutos apenas, os adolescentes são capazes de enumerar imensos valores. Isto porque
saber alguns valores são de senso comum, fazem parte da vida dos seres humanos,
é uma questão relativamente trivial. Exactamente por isso é que até
didacticamente é muitíssimo mais acertado arrancar logo os estudantes para a
discussão dos problemas. Após esses 2 minutos de levantamento de alguns
valores, podemos desde logo iniciar a discussão dos problemas (como o da
objectividade – subjectividade). E essa discussão é que é menos trivial já que
as pessoas não estão de todo familiarizadas com a discussão, nem sabem a melhor
forma de a organizar intelectualmente, uma vez que não sabem também de que se
trata de um problema filosófico. E os problemas filosóficos discutem-se
“sistematicamente” como refere o manual. Reflectir sistematicamente é empregar
determinadas regras da discussão filosófica, que este manual ignora de todo.
Vou recuperar a definição do manual de valores para levantar
a questão 2). :
“os valores são
referências para o agir, na medida em que o ser humano é orientado por valores
nas escolhas que faz. No entanto, o ser humano é o detentor do seu próprio
projecto de liberdade, porquanto tem a capacidade de reinventar valores ou de
lhes atribuir novos significados ao longo da história”
Repare-se na definição de valores dada no manual e na
definição dada da tese objectivista de valores:
“O objectivismo dos
valores (ou objectivismo axiológico), que enfatiza o valor, independentemente
do sujeito avaliador – o valor reside no objecto e o sujeito tem apenas de
reconhecê-lo”
Isto é interessante pois se o objectivismo dos valores fosse
o que se refere na definição, não seria sequer um problema filosófico. Seria um
problema científico, pois teríamos de investigar empiricamente as propriedades
dos objectos que revelam os valores. Um aluno médio é perfeitamente capaz de
levantar este problema e ver por si mesmo que o manual está a inventar.
Mas a questão 2) é esta:
2)
Como
compatibilizar a definição objectivista dos valores com a acepção dada no
manual? É que se o objectivismo (tal como é definido) for uma tese verdadeira,
então por que razão se diz que o ser humano pode reinventar valores? Não
poderia, pois os valores são propriedades dos objectos e não produto do
raciocínio dos sujeitos, por exemplo.
As definições de subjectivismo e objectivismo estão erradas.
Já demonstrei no post anterior a distinção que deve ser feita. Note-se que
podem existir valores objectivos e muitas pessoas pura e simplesmente avaliarem
subjectivamente. Se tal acontecer isso significa somente que a avaliação das
pessoas está errada. E isso é igual para valores morais, estéticos, políticos
ou outros.
Ao contrário do que sugere o manual, quer se trate da tese
objectivista, quer da subjectivista, há sempre um sujeito que avalia, que
atribui valor às coisas e ao mundo.
A caracterização dada dos valores (polaridade, absolutividade
ou relatividade, hierarquia e historicidade) além de irrelevante para a
discussão dos problemas, nem sequer é correcta.
Vamos pegar na questão da polaridade. O manual aponta que:
“Os valores, por expressarem preferências, estão associados a
um contravalor ou desvalor, que representa o lado negativo….”
1º se a tese objectivista for verdadeira e tal como erradamente
está definida neste manual, então há pelo menos uma possibilidade em que os
valores não são expressão das preferências dos sujeitos, mas propriedades dos
objectos. E nesse caso pelo menos alguns valores (e não todos como sugere a
definição de objectivismo do manual) não possuem quaisquer pólos positivos e
negativos.
Em relação á “absolutividade / relatividade” (é assim que
aparece no manual) dos valores, não há qualquer necessidade de se expor este
ponto, pois se fosse dada uma explicação correcta da tese objectivista e
subjectivista, perceber-se-ia de modo muito simples que se a tese subjectivista
for verdadeira, todos os valores são subjectivos (e aí introduzir-se-ia o relativismo). Se a tese
subjectivista for falsa, então há pelo menos alguns valores que não são
relativos, nem subjectivos (atenção que pode haver valores subjectivos sem
serem relativos – eu posso atribuir valor a estimar as vacas, não as comendo,
numa comunidade que valoriza muito comer carne de vaca; eu posso valorizar dar
tratamento igual de género, numa comunidade que não o valoriza assim, etc…).
Quanto à hierarquia dos valores, não sei sinceramente para
que se aborda isto num manual de filosofia. Que problema filosófico levanta?
Que discussão propõe? Nem sequer é uma questão discutida entre filósofos? Que
pergunta de filosofia relevante se pode fazer sobre a hierarquia dos valores?
A historicidade é a mesma coisa. Além disso a explicação dada
é absolutamente vulgar. Os valores também têm uma história. Fixe. Ponto.
Uma outra correcção que é válida para este como para muitos
outros manuais. Tenho lido esta distinção:
Os juízos de valor são descritivos e os juízos de valor são
“avaliativos”
Ora, esta distinção também não é correcta. Se é certo que os
juízos de facto são descritivos, não é verdade que os de valor não o sejam. Segundo
os objectivistas, alguns juízos de valor além de “valorativos” (como aparece em
alguns manuais) podem ser ou não descritivos. Mas o mais curioso no manual que
aqui analiso é que segundo a sua definição de objectivismo, jamais poderia
ignorar que os juízos de valor sejam descritivos, pois se a beleza do Requiem
do Mozart fosse uma propriedade do objecto, então quando eu digo “O Requiem do
Mozart é belo”, nada mais estou a fazer que uma descrição.
Em conclusão. Este manual sofre do mesmo erro que muitos
outros manuais. Tem muito texto sem qualquer interesse cognitivo. O estudante
fica com uma ideia muito fraca do que é discutir filosofia, para além de ficar
agarrado a uma série de incoerências que em nada ajudam a edificar uma ideia
correcta do que seja a filosofia e o filosofar.
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