Apesar de existir muita bibliografia disponível, é inaceitável
como é que encontro nos novos manuais de filosofia incompreensões que são
básicas. Entre elas, a de saber com correcção o que é um argumento. Acabei de
ler num manual que um argumento “consiste
em sustentar racionalmente uma tese”. Como exemplos de argumentos o manual
sugere dois:
“O altruísmo promove o
progresso da humanidade”
“O altruísmo contribui
para o progresso da humanidade”
Estes são os dois exemplos de argumentos apresentados no
manual. Bastaria fazer umas questões aos alunos no próprio manual para perceber
que as mesmas não teriam qualquer resposta possível. Então vamos lá?
1.
Indique
a ou as premissas do primeiro argumento?
2.
Qual
a conclusão do primeiro argumento?
3.
Qual
a tese defendida no segundo argumento?
4.
Quais
a ou as razões apresentas no segundo argumento para a defesa da tese nele
enunciada?
Como se verifica, só entrando no reino da engenharia
fantasista é que daríamos respostas a estas questões. Isto porque as afirmações
apresentadas no manual não são argumentos.
Até aqui o manual indica que se deve saber distinguir um
texto jornalístico de um texto filosófico. Não percebi bem a relevância da
distinção feita, mas ela assenta no seguinte:
“Enquanto o texto
jornalístico tem por função informar, descrevendo o que aconteceu, o texto
filosófico pretende provocar o debate e a reflexão crítica”
Nem sei muito bem se o que está mais errado é não se perceber
o que é a filosofia ou o texto jornalístico, até porque no texto jornalístico
pode-se perfeitamente provocar o debate e reflexão crítica. Quando abrimos os
jornais nos dias de hoje, o que não falta são textos jornalísticos de reflexão
crítica e debate em torno da crise financeira e social. E não são textos
filosóficos pois não tratam de problemas da filosofia.
Depois refere o manual que na dimensão discursiva do texto
filosófico se devem distinguir dois pólos: o leitor e o texto. Queria evitar a
ironia nestas observações que tenho feito aos manuais, pois a minha intenção é
ajudar a corrigir para fazer melhor. Mas confesso que não sei como expressar a
vagueza deste tipo de explicação de outra forma: então e que tal acrescentar
outros pólos à dimensão discursiva, como o facto de necessitarmos de olhos, de
luz, etc… para a dimensão discursiva. Qual a relevância de indicar aos alunos
que para analisar um texto filosoficamente precisamos de dois pólos: o texto e
o leitor? Isso parece elementar e pouco filosófico, não? Os autores indicam que
a leitura do texto filosófico é dinâmica. Mas qualquer leitura é dinâmica. O que
creio que os autores querem dizer, mas não dizem (não sei por quê) é que em
filosofia fazemos uma leitura activa uma vez que estamos a investigar problemas
e não a ler romances, o que é uma coisa completamente diferente de afirmar que
na leitura do texto filosófico existem dois pólos, o leitor e o texto.
No caso deste manual cada linha escrita é um deslize gigante.
Diz logo a seguir que “um cientista tem
de garantir a adequação da sua tese e aquilo que pode ser cientificamente comprovado”.
Afirma-se isto mesmo sem ter qualquer consideração pela investigação em
filosofia da ciência que se vai ensinar no 11º ano. Se o critério da ciência
fosse a comprovação (penso que empírica, a que é referida) a esmagadora maioria
das teorias científicas não estariam comprovadas. Mas, já agora, não estariam,
é, ainda falsificadas.
Momentos antes o manual sugere uma distinção entre filosofia
espontânea e filosofia sistemática. Esta distinção não existe, sequer. O que
existe é filosofia. Do facto das pessoas fazerem as contas quando vão às
compras não se segue que estejam a fazer matemática. Do facto das pessoas
dizerem as tolices que quiserem acerca da moralidade do casamento homossexual,
não se segue que sejam filósofas ou estejam a fazer filosofia.
O manual refere que:
“Quando se inicia a
leitura de um texto filosófico, deve-se ser capaz de identificar alguns
aspectos:
O tema em questão
O problema abordado
A(s) tese(s) defendida(s) pelo autor
De seguida, deve-se
procurar identificar os argumentos utilizados pelo autor para sustentar a sua
tese”
Logo aqui parece surgir de novo a incompreensão do que é um
argumento. O argumento não é algo separado da tese do autor. A tese é uma parte
da argumentação. Noutras palavras que o manual procura sempre evitar: é a conclusão
do argumento.
Mas logo a seguir indica-se que:
“Referimos que não
existe um método único para a análise do
texto filosófico. Qualquer método de interpretação de textos filosóficos é sempre
limitado e incompleto, podendo ser válido para um determinado texto e não o ser
para o outro”
E a justificação dada é que na filosofia o texto “deve ser aberto á colaboração do autor”.
Remata-se isto com um texto de Konrad Lorenz que, como sabemos foi um zoólogo.
Ou seja, propõe-se ao aluno que analise um texto filosófico com um texto não
filosófico. O interessante é que o texto desmente tudo aquilo que se disse
anteriormente, pois apesar de não tratar qualquer problema filosófico, contém
nele um argumento. Trata-se de um texto sobre os problemas dos aglomerados
populacionais nas grandes cidades e das consequências sociais desse fenómeno.
Do primeiro capítulo, nenhum aluno fica sequer com a menor
ideia do que seja filosofar.
Vou escrevendo estas linhas à medida que avanço no manual. Saltei
umas páginas à sorte e fui parar a uma célebre distinção entre juízos de facto
e juízos de valor. Os juízos de valor são definidos como subjectivos, não tendo
valor de verdade e normativos e avaliativos. Nenhuma destas caracterizações é
correcta. Antes disso pensei de imediato: se
o manual indica os juízos de valor como subjectivos, então não deve abordar o
problema da subjectividade / objectividade dos valores, pois se a tese
objectivista for verdadeira e se for verdade que é errado matar seres humanos
inocentes, por exemplo, então um juízo de valor como “é errado matar seres
humanos inocentes” tem de ser verdadeiro e objectivo. Em todo o caso, o
manual aponta a distinção entre objectivismo dos valores e subjectivismo. Já lá
iremos.
A caracterização dos juízos de facto está errada porque:
1)
Se
alguns valores forem objectivos, é falso que os juízos de valor são subjectivos
2)
Se
alguns valores forem objectivos, alguns juízos de valor têm valor de verdade
3)
Nem
todos os juízos de valor são normativos. Um juízo sobre uma obra de arte é um
juízo de valor que não sugere qualquer normatividade.
No manual a caracterização de juízos
de facto também é errada. Diz-se que os juízos de facto são objectivos porque
existe uma correspondência directa entre o que é afirmado e a realidade. Não é
ser ou não objectivo que caracteriza um juízo de facto, mas sim a sua
possibilidade de ser verdadeiro ou falso.
Assim, uma caracterização correcta e
sem confusões será como:
Juízos
|
Tem
valor de verdade?
|
De facto
|
Sim
|
De valor
|
Sim ou
não
|
Isto até se compreende muito bem se pensarmos
num juízo de facto como: “Há vida em
marte”. É um juízo de facto porque podemos saber investigando se há ou não
vida em marte, isto é, podemos saber se é verdadeiro ou falso, ainda que não
saibamos se o é ou não. Enunciamos muitos juízos de facto que podem ser falsos.
Podemos afirmar “O João está presente na
aula” só porque nos enganamos e de facto ser falso o juízo, pois o facto é
que o João está a faltar.
Para o objectivismo axiológico, a
explicação apresentada é que os valores têm uma existência concreta, nos
objectos, independentes do sujeito. Ora isto está completamente errado. Primeiro
porque é trivial que há valores subjectivos. Por essa razão é que os
objectivistas defendem que alguns valores têm valor de verdade. Ter valor de
verdade não significa que são dependentes ou independentes do sujeito que
avalia. Significa antes que podem ser verdadeiros ou falsos. Mas não são
verdadeiros ou falsos em consequência de estarem presentes nos objectos da
avaliação. Podem ser verdadeiros ou falsos dependendo do raciocínio. No caso de
juízos morais é isso que acontece. Um valor é verdadeiro ou falso dependendo do
raciocínio moral, mas não porque, como diz no manual, os valores tenham uma
existência concreta. Além de confuso é muito complicado expor coisas como estas
aos alunos de 15 anos.
A definição da tese do objectivismo
dada no manual é incompatível com o que se diz logo a abrir este capítulo. No
início refere-se que é o ser humano que exprime valores. Mais adiante elenca-se
algumas objecções ao subjectivismo e expõe-se de modo abreviado o objectivismo,
sem elencar qualquer objecção. Mas define-se objectivismo como a posição
filosófica que defende que os valores dependem de propriedades concretas dos
objectos.
O manual rejeita liminarmente algumas
teorias (algumas delas nem são filosóficas) para apresentar outras como
verdadeiras (e algumas delas também não são sequer filosóficas), o que é
claramente incorrecto e traiçoeiro para um ensino da filosofia com o mínimo de
seriedade e qualidade.
E fiquei por aqui na leitura deste
manual.
4 comentários:
Mas cada vez há mais manuais com qualidade... felizmente.
Olá Rui, na verdade fiquei com essa impressão ao folhear os manuais assim que me foram chegando às mãos. mas mal os começo a ler, não mantenho, infelizmente, a mesma opinião. A esmagadora maioria são feitos apressadamente sem se pensar no que se está a fazer. Se fosse fácil fazer um manual, eu também já teria o meu
Rolando, lá está você a fazer confusão. Você esquece-se que existem jogos de linguagem diferentes.
No âmbito da Lógica, que é uma disciplina lecionada em Filosofia e que até já foi lecionada em Matemática, e que até pode ser ser considerada uma ciência autónoma, chamamos argumento ao conjunto das premissas e da conclusão.
No entanto repare que numa teoria da argumentação, como a de Perelman, que o Arte de Pensar e o Luís Rodrigues, sempre ignoraram, apesar de ser uma matéria presente nas orientações para a lecionação do programa para efeitos de avaliação externa, este autor refere que argumentar é apresentar razões (os argumentos) a favor ou contra uma determinada tese. Aliás o programa original, para o qual o Rolando parece-me que nunca olhou, refere isso mesmo. Consulte o programa, na página 27, e verá,na abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar, na dimensão discursiva do trabalho filosófico, o ponto 3 e verá a afirmação "Identificação das teses que os textos defendem e dos argumentos que apresentam". Portanto, pedir a um aluno que identifique a tese e os argumentos que a justificam é perfeitamente legítimo.
Frederico,
Se não sabe ou tem dúvidas sobre o que é um argumento tudo o que tem a fazer é consultar os manuais sobre essa matéria, os manuais universitários. Perelman não é, sequer, um autor central na retórica. É até muito lateral. Mas já agora, eu não fiz confusão alguma pois é falso que quer o programa (muito menos na página 27), quer as Orientações de 2011 (as únicas em vigor) remetem para Perelman ou para a ideia de que um argumento são apenas premissas. Apresenta-se argumentos contra uma tese? Claro que sim. Uma coisa é afirmar isso dessa maneira. Outra bem diferente é afirmar, erradamente, que um argumento é uma coisa diferente de uma tese. É um erro, nada mais. O que diz o programa é isto: “Identificação das teses que os textos defendem e dos argumentos que apresentam;”. Isto nem sequer é muito claro, mas vou ser caridoso e pressupor que o programa não tem erros e está muito bem feitinho. O Frederico pega nos textos e tem de ver as teses e os argumentos que eles apresentam. Daí não se segue que um argumento seja premissas e a tese uma coisa fora do argumento. Que tolice! Nem é preciso saber filosofia para saber isto. Outra coisa: o Luís Rodrigues tem manuais do 11º com textos de Perelman.
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