sábado, 4 de maio de 2013

Manuais 3


Haverá livros de filosofia ou de ciência sem erros? Haverá livros de história sem erros? Creio que a esmagadora maioria dos livros contêm erros. Os erros fazem parte da construção de uma obra. O que talvez possa ser apontado como defeito não é propriamente o erro que se comete, mas o facto de não se ter pensado muito bem no que se está a escrever e a tentar explicar. É a mesma coisa com a construção das casas em que habitamos: todas têm os seus defeitos, mas numas notamos que as coisas foram feitas sem grande precisão ou cuidado e rigor.

Estava a ler um pouco de um manual para o 10º ano e reparei que o mesmo afirma que o método das ciências naturais é a verificação. Não é. Basta pensar no que ensinamos de Popper para compreender que não é. Assim, de repente, ocorre-me citar parte da introdução do livro de divulgação científica (o próprio autor assim o classifica) do matemático português Jorge Buescu, O mistério do Bilhete de Identidade e Outras Histórias, Crónicas das fronteiras da ciência (Gradiva,3003):

Assim, nunca se pode provar nem afirmar que uma teoria científica é verdadeira. Quando muito, pode provar-se que é falsa – se se realizar um teste cujos resultados sejam contrários às suas previsões. P. 13

O que isto quer dizer é que a verificação empírica não é critério algum de cientificidade de uma teoria. Penso que os autores o que têm em mente é dizer que o método das ciências naturais é a experimentação e não a verificação, que são coisas diferentes pois quando o cientista experimenta não está a verificar nada, está só na tentativa de detectar erros na teoria para ver até que ponto ela resiste ou não aos testes que está a submeter a teoria. Seria praticamente impossível verificar totalmente uma teoria científica. Pelo menos desde David Hume que este problema começou a ser resolvido. Trata-se de um aspecto que deveria ser corrigido. E certamente desde Popper que a ciência não opera por verificação. O método científico é hipotético dedutivo e não verificacionista. Para ser mais rigoroso, o método científico é falsificacionista. E mesmo que seja discutível que seja falsificacionista (afinal, Popper pode estar errado), não é certamente verificacionista.

Mais adiante encontrei uma afirmação que me parece estar envolvida em confusão:

“já vimos que os argumentos são constituídos por proposições e estas por termos. Os termos, enquanto expressam conceitos, não devem em si reunir elementos contraditórios. É essa a regra que lhes preside. Devem sempre referir-se ao campo do possível. Uma vez que não afirmam nem negam, os termos não podem ser considerados verdadeiros nem falsos”.

Parece que os autores estão a pensar que só existe lógica proposicional e que as proposições são constituídas apenas por termos. Ora ambas as ideias são falsas. Por um lado é verdade que na lógica aristotélica as proposições incluem termos (maior, menor e médio), mas não são constituídas apenas por termos, como parece sugerir a passagem. Na lógica aristotélica as proposições incluem a cópula que tem um papel fundamental. A estrutura de uma proposição na lógica aristotélica é “S é P” em que S é sujeito, P o predicado e são unidos pela cópula “é”. Mas ainda assim não podemos afirmar de todo que a estrutura de uma proposição na lógica aristotélica se esgota aqui, pois pode ainda incluir uma negação.

Também não se vê com clareza a razão pela qual não pode incluir termos contraditórios. Só as proposições podem ser contraditórias. Tentemos ver melhor com um exemplo:

Nenhum mortal é imortal
Todas as divindades são imortais
Logo, nenhum mortal é uma divindade

Considerando que este silogismo é válido, acontece que tem 2 termos contraditórios, “mortal” e “imortal”. A passagem não me é de todo clara, mas atenção pois se é isto que se tem mente, então não pode estar certa.
Quando se diz na passagem que os termos se devem referir sempre ao possível, também não é claro ao que se refere. Talvez seja impossível que existam seres imortais.

Um outro aspecto que me parece de corrigir é que se aborda muitas vezes conteúdos da lógica proposicional, mas os exemplos dados remetem imediatamente para a lógica aristotélica. É muito mais simples para os alunos do 10º iniciar com proposições simples:

P – a neve é branca
Q – o céu azul

A neve é branca e o céu azul
Logo, a neve é branca

Facilmente se compreende que se a premissa for verdadeira, a conclusão também o é. E se a premissa for falsa, a conclusão também o é. E não se dá o caso da premissa ser verdadeira e ser possível a falsidade da conclusão. Didacticamente é muitíssimo mais fácil para o aluno compreender a noção de validade com exemplos destes do que a apresentar com silogismos, ainda que não seja de modo algum errado apresentar a noção de validade com um silogismo. Acontece que muito raramente o aluno vai analisar os textos silogisticamente, pela simples razão que raramente pensamos silogisticamente. No 10º ano, a minha sugestão é que se usem proposições aristotélicas, apenas para ensinar a negar proposições quantificadas, o que ocorre nos textos mais vezes. Claro, não esquecendo a negação das condicionais, que também ocorrem com bastante frequência nos argumentos, já que a maioria dos argumentos lida com hipóteses. Didacticamente as proposições simples e compostas traduzíveis na lógica proposicional torna mais simples a aplicação das noções iniciais nas unidades seguintes.

Que seja claro: inventou-se a lógica proposicional precisamente para ter maior ampliação da sua aplicação. Se ela é muitíssimo mais ampla que a sua mãe, a lógica aristotélica, então não temos grandes razões para fazer da lógica aristotélica o padrão de análise de argumentos. e se não tencionamos usar mais a lógica nas unidades seguintes, então não vale a pena gastar tempo a ensiná-la, pois os alunos vão ficar exactamente com a mesma ideia que muitos professores ainda tem da lógica: que ela aplicada à filosofia é estéril. E essa ideia não me parece possuir qualquer vantagem para o ensino da filosofia.

Finalmente uma sugestão: é didacticamente desajustado quando estamos a falar de juízo e proposição indiferenciadamente. Claro que para nós, professores, não há grandes problemas. Mas há problemas de compreensão para um aluno de 15 anos já que é imediatamente conduzido a pensar que se está a falar de coisas diferentes. E depois porque os alunos mais jovens tem muita dificuldade em perceber por que se está constantemente a usar palavras diferentes para nos referirmos ao mesmo. É uma questão didáctica e é por isso que não é fácil escrever para jovens, mas este aspecto deve ser corrigido:

1)      Ou estamos a falar de coisas diferentes e esclarecemos cada uma delas com clareza

2)      Se estamos a falar do mesmo referente não há qualquer necessidade de uma vez aparecer como proposição, outra como juízo

Outro aspecto que observo em alguns manuais, não só neste que aqui me refiro. Não me parece de todo obrigatório expor as objecções às teorias apresentadas. Mas se entendermos que o manual é o livro que o aluno vai usar para entrar na filosofia, questiono-me se não é relevante didacticamente fazer a sua exposição? Na minha opinião, é. E as objecções são tão relevantes quanto as teorias expostas. Se é um método recorrer á exposição das objecções, deveria ocorrer ao longo de todo o manual, oferecendo-lhe maior consistência. Ora, em alguns manuais, elas só ocasionalmente aparecem. Em algumas unidades aparecem umas pequenas objecções, noutras o método é meramente expositivo. A aprendizagem requer a interiorização de método e de persistência no método. Não faz sentido que o manual desoriente o aluno no seu estudo particular. 

E já agora, por que razão escolhi a foto que acompanha este post?

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