Há uns dias atrás, o Carlos Silva deixou na caixa de comentários um problema interessante. Voltei a ele agora.
Este é o argumento do Carlos:
Aproveito para levantar uma questão relacionada com o tema da "Necessidade da fundamentação da moral", nomeadamente o fundamento utilitarista dos actos. Em termos gerais, o utilitarismo faz residir nas consequências dos actos o seu valor e fundamento, defendendo que é boa a acção que maximize a felicidade. Ora, o manual do 10.º ano, "A Arte de Pensar" de Desidério Murcho, Aires de Almeida e outros faz alusão, na página 166, à seguinte situação imaginária: "A Sara é uma cirurgiã especializada na realização de transplantes. No hospital em que trabalha enfrenta uma terrível escassez de órgãos - cinco dos seus pacientes estão prestes a morrer devido a essa escassez. Onde poderá ela encontrar os órgãos necessários para salvá-los? O Jorge está no hospital a recuperar de uma operação. A Sara sabe que o Jorge é uma pessoa solitária - ninguém vai sentir a sua falta. Tem então a ideia de matar o Jorge e usar os seus órgãos para realizar os transplantes, sem os quais os seus pacientes morrerão." Mais adiante, o referido manual sustenta que um utilitarista "tem de pensar que nada há de errado em matar o Jorge" e que " a opção de matá-lo permitirá salvar cinco pessoas que de outro modo morrerão" para concluir que "se o utilitarismo fosse verdadeiro seria permissível (e até obrigatório) a Sara matar o Jorge (...) mas fazer tal coisa não é permissível. Logo, o utilitarismo é falso." Pergunto: será que o utilitarismo defende mesmo tal posição (que a Sara deve matar o Jorge para salvar 5 pacientes)? Se o fundamento dos actos para um utilitarista reside nas suas consequências (maior felicidade global), podemos encontrar uma falha no argumento da Sara (ver CAVE, Peter, Duas Vidas Valem Mais que Uma?, páginas 26 e 27): os indivíduos saudáveis sentir-se-iam extremamente inseguros se existisse um procedimento de os raptar e matar para lhes tirar os órgãos. Dado que os que beneficiam do tratamento também podem tornar-se vítimas e, devido a esta insegurança, a felicidade total pode muito bem diminuir numa sociedade que abarque tais cirurgiões, desde que as pessoas saibam desse procedimento. Assim, conclui-se que matar o Jorge pode não maximizar a felicidade, antes pelo contrário, logo, um utilitarista opor-se-ia à morte do referido Jorge. Este contra-argumento estará certo?!” |
Na altura ensaiei algumas respostas ao contra argumento do Carlos, mas quando hoje voltei a pensar nele, penso se o contra argumento do Carlos não mostra realmente algumas insuficiências do utilitarismo. A verdade é que a objecção do Carlos parece mostrar que o utilitarismo legitima acções imorais, como a de tirar a vida a um inocente para salvar outros. Mas podemos sempre colocar a concorrer a tese do utilitarismo negativo. Segundo este o que está em causa não é somente a maior felicidade para a maioria das pessoas, mas minimizar o sofrimento das pessoas. O utilitarista negativo continua a defender uma ética das consequências, mas já com algumas reservas em relação ao princípio geral, que parece não funcionar em casos como os que o Carlos falou.
Finalmente deixo a sugestão da leitura do texto “uma crítica ao utilitarismo” de Bernard Williams, incluído na antologia de textos, Textos e problemas da filosofia, Plátano, 2006 (Org. Aires Almeida e Desidério Murcho)
Gostaria que se algum leitor tiver alguma coisa a acrescentar à discussão, o fizesse.
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