quarta-feira, 28 de abril de 2010

Precisam os alunos de ciências de aprender a filosofar

Recentemente tive uma conversa on-line com o José Mascarenhas, um colega de profissão e docente da disciplina de história. Uma das questões que o Mascarenhas colocou foi a razão pela qual considero que a filosofia é relevante para os alunos dos cursos de ciências. Bom, em primeiro lugar é facto que todos os estudantes dos cursos gerais têm filosofia no currículo no 10º e 11º anos. Mas eu fui mais longe e defendi que devem também tê-la no 12º ano, em vez, por exemplo, de disciplinas mais vagas como Área de Projecto e afins. O Mascarenhas viu bem a questão e estendeu-a, com razão, até à sua disciplina, mas subsistem ainda muitas dúvidas para muitas pessoas sobre este assunto. Este post pretende portanto responder ao problema de para que serve afinal a filosofia para quem segue um curso de ciências, vá lá, exactas (como é comum, mas errado chamar). Creio que a confusão vem de uma ideia errada que temos da própria ciência. Raramente no nosso ensino encaramos a ciência como actividade crítica. Faz-me lembrar a velha história de que se não ensinarmos à criança que o leite vem da vaca, ela irá pensar sempre que o leite vem do super mercado. É por isso, pedagogicamente relevante levar de vez em quando a criança a ver com os seus olhos o mundo das vacas. O mesmo acontece com a ciência: como quase nunca vemos a ciência a fazer-se, pensamos que a ciência é o produto dela acabado, numa melhor expressão, que é o que com ela se consegue fazer. E o que é que se consegue fazer com a ciência? Desde os micro-ondas aos telemóveis e automóveis. Mas a ciência não é nem os micro-ondas nem os telemóveis. Muito antes dos telemóveis e dos micro-ondas temos discussão de ideias e hipóteses e temos de perguntar pelo melhor modelo para organizar toda esta discussão. Ora, o que distingue o trabalho da ciência do trabalho dos filósofos são os mecanismos empíricos de prova, que existem para os problemas da ciência, mas não existem para os problemas da filosofia. E é isto que faz pensar que a ciência é mais exacta que a filosofia, mesmo que na ciência se julgue durante séculos que uma hipótese está provada quando não o está.
É claro que interessa – e muito – ao estudante de ciência pensar e raciocinar criticamente e isso aprende-o a fazer melhor com um bom ensino da filosofia (um mau ensino torna qualquer disciplina dispensável).
Num relance deixo aqui alguns dos problemas trabalhados pela filosofia e que passam ao lado dos alunos do secundário que estudam ciências:
- O problema da objectividade na investigação científica.
- O problema da indução.
- O problema da dedução.
- O problema do dualismo mente corpo (como muitos avanços actuais permitidos pelas neurociências)
E estes são os que me lembro de relance. São problemas centrais que despertam qualquer jovem para a ciência. É muito mais difícil estimular jovens para a ciência sem estudar aturadamente nas aulas estes problemas. E estes problemas passam ao lado do ensino secundário, ainda que o programa de filosofia do 11º ano aborde com ligeireza alguns deles.
Este trabalho de background em termos curriculares para alunos de ciências está por fazer. Não tenho a certeza se chegará algum dia a ser feito. A nossa ignorância científica não nos permite compreender muitas das vezes como se estrutura um currículo de estudos e passamos ao lado do essencial optando pelo supostamente fácil e desinteressante. E isto, claro, tem consequências futuras na formação científica dos jovens.
Um dia, quando tivermos uma cultura forte do ponto de vista do sentido crítico, seremos muito mais inovadores e nesse dia, sim, podemos dar-nos ao luxo de não obrigar os estudantes a ter filosofia no 12º ano, já que o que a filosofia oferece estará mais enraizado na cultura social, económica, política e científica do país. Mas até lá, enquanto tivermos um défice gigante de inovação e capacidade de saber pensar em problemas que exigem um elevado risco, a filosofia é muito mais central para os estudantes do que andar a brincar aos projectos em disciplinas fabricadas para o efeito.
Creio ter demonstrado que pensar que ciência é aquele tubo de ensaio em cima deste texto é uma ideia errada do que é a ciência.
Este texto esclarece bem melhor o problema. 

2 comentários:

Pedro Ferreira disse...

Muito bom texto. Concordo plenamente com a ideia de que disciplinas como Área de Projecto são completamente dispensáveis quando há o (será que me atrevo?) dever de continuar a ter a disciplina de filosofia até ao fim do ensino secundário. Eu terminei este ano o 10º ano do curso de ciências e tecnologias e achei que a existência da disciplina de filosofia ajudou em muito. Para além dos livros recomendados pelo professor, a discussão feita em aula sobre problemas filosóficos contribui bastante, como é referido no texto, para o melhoramento da capacidade de criticar e da ambiguidade de muitas deduções que se fazem em disciplinas científicas.

Rolando Almeida disse...

Pedro,
Obrigado pelas suas palavras. É sempre importante saber que há pessoas que tem a dizer as coisas que o Pedro disse. Reforça as nossas posições.
Felicidades