Hoje mesmo, ia eu a passear numa cidade do continente português e a minha esposa parou perante uma imagem religiosa (já que vivemos a altura da Páscoa) e ficou a observar, com o meu filho de 2 anos e meio, uma figura de Cristo todo ensanguentado a carregar com uma cruz gigante com ar de sofrimento total. Eu disse à minha esposa que podia chegar a casa e deixar o meu filho ver um filme de terror, com mortes, que o efeito não seria muito diferente. Provavelmente vivemos cheios de símbolos moralmente dispensáveis e, com efeito, usámo-los para os fins que consideramos como bens morais numa comunidade. Será moralmente aceitável exibir publicamente imagens de um homem ensanguentado com expressão de sofrimento?
9 comentários:
Olá amigo, como estás?
"...usámo-los para os fins que consideramos como bens morais numa comunidade". Que queres dizer com isso? Os cristãos consideram isso um bem moral? Não estou a entender...
Sem atender ao valor moral, mas apenas simbólico, dentro da comunidade e tradição cristã tem todo o sentido a "paixão" de Cristo. No entanto, se tivermos noutra mundividência e tradição é óbvio que não faz o mínimo sentido (ao ponto de se poder comparar a "paixão" de cristo com um qualquer filme de terror).
O filósofo MacIntyre tem textos interessantes onde aborda esta questão da tradição. Já Ricoeur aborda de forma interessante a questão do símbolo, e algo que seja extremamente simbólico para mim pode ser totalmente indiferente para ti, e vice-versa.
Saudações filosóficas,
E será moralmente aceitável não o fazer?
Domingos,
Para que é que se exibe a figura de um homem todo ensanguentado? Para mostrar o mal que se fez a hum homem tido como bom, correcto?Sim, a paixao de cristo é simbólica na cultura cristã. Para os judeus também é, só que como dissidente :-)
Os filmes de terror também exibem homens todos ensanguentados.
Citaste dois filósofos crentes, mas não conheço o trabalho deles. Levei com Ricoeur aos baldes na faculdade, mas nunca o entendi muito bem.
abraço
Daniel,
Eu não sei se é moral fazer ou não fazer. Intuitivamente parece-me que só se faz porque é tradição, mas não tenho a certeza que a tradição constitua por si só uma boa razão para o fazer. A mim, pessoalmente, aborrece-me como o caraças andar na rua e ter de levar com a religião a cada esquina. As amendoas incomodam-me menos. Acho a cultura da igreja católica demasiado tétrica. Se ao menos fosse entendida como ficção como os filmes de terror, ainda vá que não vá, mas levar toda a cultura pintada a roxo da igreja católica é uma imagem demasiado carregada da vida e uma homenagem que pessoalmente não aprecio.E já agora: o cheiro a cera derretida das velas nas procissões também aborrece um bom bocado.
abraço
Claro que, no essencial concordo contigo. A religião, ainda mais o catolicismo, exagera nas aplicações mundanas das designadas ideias divinas e nos símbolos religiosos. Quanto à tradição, ela deve adaptar-se, caso contrário seria legítimo queimar pessoas. Contudo, há realidades que não devemos negar, sob pena de construirmos uma redoma sobre os nossos filhos. Obviamente que não subscrevo o «medo» revestido de pecado que muitas vezes é veiculado, mas é bom que tenhamos presente a realidade, pelo menos a que julgamos ser a verdadeira realidade.
Daniel,
Há muitas pessoas que adoram Cristo como símbolo e, com efeito, são más pessoas e outras que não o adoram e são na mesma más pessoas. Do mesmo modo há muitas pessoas que adoram Cristo como símbolo e são boas pessoas e outras que não adoram símbolos e são boas pessoas na mesma. Este dado mostra-nos que, afinal, os símbolos não servem para ponta de um caracol. A ideia de que sem bons símbolos nos tornamos umas bestas parece-me disparatada. Em alternativa o que temos? Temos uma cabeça que é capaz de pensar e, sem símbolos, ser capaz de reflectir sobre o bem e o mal.
Rolando,
Não creio que o problema seja assim tão linear e simples.
Quem disse (acertadamente, a meu ver), que o homem é um "Animal Simbólico"? - (Ernst Cassirer)-
A começar pela própria linguagem, mediadora entre o sujeito e a realidade. Com efeito, entre os "signos linguísticos" e os seus "significados" há uma relação que não é natural mas convencional.
Mais: na linguagem está "plasmada" ou materializada uma determinada concepção do mundo.
Poderiamos mesmo sublinhar/destacar as palavras de E. Cassirer: "O homem não vive apenas num puro universo físico mas sim num universo simbólico. A linguagem (já atrás mencionada), o mito, a arte e a religião constituem partes deste universo, formam os diversos fios que tecem a rede simbólica, a textura complexa da experiência humana". Na verdade, não nos "relacionamos" com a realidade de um modo imediato mas essa relação encontra-se "mediada" pelo omnipresença do símbolo (seja a linguagem, o mito, a arte - a música, religião, ...). Nesta perspectiva, não podemos ter a veleidade de querer conhecer as "coisas" tal como são em si mesmas. O conhecimento é sempre um conhecimento histórico, cultural. Nunca puro ou virgem.
Já agora, boa Páscoa (o que quer que "isso" signifique para o Rolando)
Carlos JC Silva
... "a começar pela própria linguagem, mediadora entre o sujeito e a realidade" ... há, até, quem considere que a linguagem (como símbolo) vai mais longe: ela cria fenoménicamente mundos, é o próprio lugar do "ser".
Carlos,
E daí? O problema continua. Nem todo o conhecimento é proposicional. Se eu estou a ver a torre Eiffel, preciso de linguagem para quê? Nem de linguagem, nem de filosofia. Preciso é dos olhos e de um cérebro a funcionar com as redes neuronais operacionais. Não percebo muito bem as palavras de Cassirer. A linguagem é simbólica, ok. E depois? Quer isso dizer que é pela linguagem que conhecemos um Cristo cheio de sangue? Por hipótese a linguagem reflecte uma imagem do mundo. E daí segue-se que é uma imagem certa, indubitável e rigorosa? A realidade é mediada por muitas mais coisas que a linguagem. É mediada pelo facto se dormimos bem ou mal, se o sangue corre bem ou mal no nosso corpo, se estamos sóbrios ou ébrios, pelo nosso sistema nervoso, pela cultura, educação, se comemos bem ou mal ao almoço, etc. Não percebo o que há de relevante no que disse o Cassirer.
A última frase é, então, completamente descabida. Se a linguagem cria fenomenicamente mundos, isso significa que os cria sempre verdadeiros? Ou que os cria sempre falsos? Na verdade o que Cassirer pode querer dizer é a afirmação do dualismo já presente em Platão na teoria das formas e mais tarde, por exemplo, em Descartes. Não sei bem como responder a este tipo de argumentos como o que apresentas: é como dizer que a realidade é sempre muito complexa e por conseguinte tudo o que podemos dizer sobre ela serão sempre conjecturas e balelas. Mas então fazer uma afirmação deste tipo também é uma balela, ou não?
abraço
Mais uma vez,
"Se eu estou a ver a torre Eiffel, preciso de linguagem para quê? Nem de linguagem, nem de filosofia. Preciso é dos olhos e de um cérebro a funcionar com as redes neuronais operacionais." Certo. Mas a própria Torre Eiffel é um "símbolo", como o é o "Arco do Triunfo". São "obras de arte". Simbolizam mais do que simples objectos (o que não acontecerá para os animais não humanos). E, por falar em Arte, é ou não verdade que a arte constrói realidades? Ainda que sejam realidades transfiguradas, "surrealistas", como no caso da corrente surrealista, ou outras. Tal como a Religião.
Mas o símbolo porventura mais poderoso, comum (e exclusivo) a todos os homens, é a linguagem, na medida em que é por ela que se revela a realidade. Na verdade, em certas culturas há "realidades" que não têm expressão linguística. E, como tal, não existem, não são realidades.
Citei E. Cassirer, como cito Wittgenstein, autor importante na orientação analítica: "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo".
Carlos JC Silva
Enviar um comentário