terça-feira, 27 de abril de 2010

Filosofia no 12º ano



Um troca de ideias com o colega António Daniel sobre o ensino da filosofia leva-me aqui a fazer algumas considerações. O Daniel acha que o problema do desaparecimento da filosofia no 12º ano se deve à concorrência das disciplinas com programas mais acessíveis como a sociologia, por exemplo. O Daniel acha também que somente bons alunos procuram estudar filosofia no 12º ano.
Eu acho que o Daniel está errado. O problema do desinteresse da filosofia no 12º ano deve-se ao seu mau ensino e à falta de upgrades. Ensina-se filosofia no 12º ano como se ensinava filosofia em meia dúzia de universidades francófonas do século passado. Para já um dos erros de palmatória consiste em pensar que a filosofia no 12º ano só pode interessar a alunos de humanidades. A filosofia quando bem ensinada tem uma capacidade formativa extraordinária já que funciona como auxiliar para raciocinar autonomamente. Ora se isto é verdade, tal aspecto não interessará a alunos dos cursos científico natural?
O programa de filosofia do 12º ano consiste na leitura, análise e comentário de 3 obras de uma imensa lista, desde que sejam de 3 épocas diferentes. Para já não sei qual a razão porque tem de ser de 3 épocas diferentes. Na filosofia a época pouco interessa. Um problema filosófico levantado por Platão é menos problema se for retomado dois séculos mais tarde?
Mas o problema é o mesmo que afecta outros níveis de ensino. É que não interessa à maioria das pessoas andar a repetir acriticamente o que Platão, Descartes ou Santo Agostinho disseram. Reflectir criticamente e argumentar e contra argumentar não foi o que a esmagadora maioria dos professores de filosofia aprenderam a fazer. Aprenderam a dizer que é o que fazem, mas não o fazem de facto. E toda a imensa sabedoria filosófica reside em citações e cultura livresca e idolatria infantilizada.
Já cheguei a um ponto:

Só com uma boa formação em filosofia se ensina filosofia no 12º ano
Não temos boa formação em filosofia
Logo, não devemos ensinar filosofia no 12º ano


A primeira premissa é algo discutível, já que se ela for verdadeira isso pode significar o desinteresse definitivo pela filosofia. Vamos aplicar o mesmo argumento ao ensino em geral:

Só com boa formação se pode ter e abrir escolas
Não temos boa formação
Logo não podemos ter e abrir escolas




Isto em tempos foi verdade. Já houve períodos de escassez de mão de obra para o ensino. E nem por isso deixamos de ter escolas abertas. Muitos professores começaram a ensinar com o 12º ano de escolaridade apenas. E isto ainda acontece. Conheço professores de algumas áreas novas em que não existem ainda profissionais licenciados. Na minha escola há pelo menos um exemplo desses.
Mas se for verdade que não temos boa formação, não podemos ter um programa que exija uma boa formação aos alunos de secundário. Parece-me que seria muito mais sensato que o programa discutisse problemas e não obras de autores. E porque não fazer um programa diferente consoante o curso de estudos? Por exemplo, certamente a alunos de ciências interessaria estudar problemas de epistemologia e filosofia da ciência ou filosofia da mente, ao passo que aos alunos de humanidades talvez interessasse mais problemas de metafísica ou filosofia moral e filosofia política.
Não sei o que pensa o leitor, mas o que defendo é que o desinteresse da filosofia está no seu mau ensino e não no seu grau de dificuldade, até porque não vejo qualquer razão para que um saber como a filosofia tenha de ser mais complicado que qualquer outro saber, como a sociologia ou a psicologia.

10 comentários:

Edward Soja disse...

Amigo Rolando, (desculpa não me deter no conteúdo e mais uma vez apenas na forma)

Escreveste: "Para já não sei qual a razão porque tem de ser de 3 épocas diferentes."

Devias ter escrito "Para já não sei qual a razão por que tem de ser de 3 épocas diferentes." em que aquele "por que" equivale a "pela qual".

Abraço.

Rolando Almeida disse...

Tens razão Eduardo. Eu próprio já tinha discutido isso aqui: http://dererummundi.blogspot.com/2008/02/por-que-no-conhecemos-dimenso-do.html

Edward Soja disse...

Eheh, e que engraçada discussão...
:)

Abraço.

António Daniel disse...

Bem, não perdeste tempo. Vamos por partes. Eu, e peço desculpa pela menção subjectiva, incluo-me naqueles que não tiveram a formação que o Rolando alude. De facto, a minha filosofia foi trabalhada a partir do marranço (no sentido positivo do termo: estudar para discernir os meandros do pensamento, averiguar acoerência do discurso...). Contudo, se houve altura em que realmente notei uma evolução, no que se refere à aquisição de linguagem, à determinação lógica do pensamento escrito e oral, foi no meu 12º ano. Todo aquele programa de Filosofia exigia esforço, dedicação. Isso faz-nos evoluir. Durante a faculdade não tive, de facto, momentos de interesse crítico, a não ser pesquisar as clivagens intelectuais de Popper, Kuhn, Lakatos e outros, mas também creio que este contacto com a filosofia escrita sugere momentos cognitivos únicos e só assim estamos preparados para outro patamar: a crítica. O processo argumentativo exige conhecimento. O problema está no que fazer com os conhecimentos adquiridos. A clarificação de posições, a refutabilidade, a conjecturação e coisas afins, exigem conhecimento, como exigem um domínio dos pressupostos lógicos. É nestes dois níveis que a docência da filosofia deve ser promovida. Neste sentido, alguns alunos adorariam a Filosofia no 12º ano, mas muitos mais não comungam dessa opinião. Obviamente que é um pouco aquele conhecimento empírico, mas parece-me não andar longe da verdade: os alunos não escolhem filosofia porque, à partida, promove mais trabalho do que as outras disciplinas que com ela rivalizam nas opções.
Finalmente, quanto ao upgrade, não é só na filosofia que acontece isso. Também há outras disciplinas em que a actualização do conhecimento não acontece com a frequência que exigiríamos, e os alunos optam por elas. Nos últimos anos tenho assistido a alguns desejos de frequência de filosofia no 12º ano e muitos desejos no sentido contrário. No primeiro caso, são os bons alunos, ou pelo menos, os mais intelectualmente interessados - espero não estar a ser reaccionário - que mostram esse interesse.
Quantos aos programas, depois digo alguma coisa.
Não sei se fui claro, mas como escrevi isto num ambiente de esplanada, tenho receio de não o ter sido.
Rolando, cumprimentos.

Rolando Almeida disse...

Viva Daniel,
Ok, mas seguindo o que dizes depois vais ter de justificar como é que nomes como Wittgenstein ou Kripke têm livros relevantes de filosofia sem terem lido muitos filósofos. Claro que ter conhecimento do que argumentaram os filósofos é importantíssimo, mas só o é porque queremos entrar nas discussões e não repeti-los para inglês ver como somos bué de cultos. Isso é o mesmo que eu me pôr aqui a debitar todo o meu conhecimento enciclopédico sobre bandas de rock dos anos 60 e 70 sem ter sequer ouvido com atenção os discos.
É mais ou menos pacífica a ideia que explica por que os alunos fogem de determinadas disciplinas: porque não as acham relevantes para a sua formação. Se são de opção e não as acham nem atractivas nem relevantes não as escolhem. E aqui há 10 anos era muito rara a escola que não tivesse pelo menos duas turmas de filosofia no 12º ano. Hoje em dia é rara a escola que tenha filosofia como opção no 12º ano. E por acaso também nem é verdade que a filosofia do 12º ano seja mais difícil que outras disciplinas.
É também verdade que o programa da disciplina não é o único responsável pela fraca adesão à disciplina. Para tal concorrem outras circunstâncias como a desvalorização crescente e promovida pelo ministério pelas disciplinas com conteúdos próprios. Pá, um estudante também é bem capaz de optar mais facilmente por sociologia do que por matemática ou física se puder. Isso deve-se à má preparação dos estudantes que foram já formatados num sistema de ensino baseado no facilitismo. Mas perante isto o que é que foi feito pela disciplina? Muito pouco.

António Daniel disse...

No caso específico de Wittegenstein não acredito que não tenha lido filosofia, apesar de ter dito o contrário, ou então são casos de extrema inteligência, o que também não é de desconsiderar. Era engenheiro, sim, mas leu filosofia.
Ainda relativamente às escolhas dos alunos, não podemos descurar que a Filosofia de 12º deixou de ser específica. Isso é que é um grande mistério.

Rolando Almeida disse...

Daniel,
Eu não sei se é necessário ser muito inteligente para fazer bem filosofia. O próprio Wittgenstein escreveu coisas que me parecem completamente idiotas. Bem, não posso jurar que ele andasse a ler filosofia escondido nos cantos da casa. O Ray Monk tem uma boa biografia dele, mas nunca a li apesar de conhecer muitas passagens. Fiz uma cadeira com o Pedro Paixão, que era considerado um grande especialista em Wittgenstein, mas que mais não fez do que ler nas aulas essa biografia, feita pelo Ray Monk.Mas a vida académica de wittgenstein, quase toda feita em inglaterra segui o modelo anglo saxonico que vem da tradição socrática e que consiste em passar mais tempo a discutir os argumentos do que a decorá-los.

António Daniel disse...

Sim, mas não te esqueças que Russell, seu padrinho em Inglaterra, era um grande conhecedor de Filsofia. Quanto a Pedro Paixão, bom... Há tempos ouvi uma entrevista dele... aquilo est´+a mau:
http://tsf.sapo.pt/podcast/files/pet_20060726.mp3

Rolando Almeida disse...

Não me parece que o Russell tivesse sido um grande conhecedor da filosofia. Não era um filósofo de citação. Mas foi, isso sim, um grande fazedor da filosofia.

Unknown disse...

Caros colegas, a vossa discussão é importante e eu estou a gostar dela. Aprendo com o vosso conhecimento e com as vossas ideias.
Brandão