sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Temos ou não o dever moral de ajudar os pobres?

Enquanto reflectimos sobre o problema, fiz um depósito para contribuir a minimizar os terríveis efeitos de uma das maiores catástrofes naturais de que temos memória. Fiz na AMI, mas existem outras instituições a receber ajudas.





7 comentários:

Carlos JC Silva disse...

Temos ou não o dever moral de ajudar os pobres?

Não sei se a questão estará bem colocada.
Os Haitianos, pobres e/ou não pobres, foram vítimas de um fenómeno da natureza. Resultado: os pobres ficaram ainda mais pobres e os ricos talvez tenham perdido parte da sua riqueza.
Trata-se, aqui, em meu entender, de uma questão de "solidariedade" para com um povo que sofre(u) as consequências de um violento sismo. Consequências materiais e não só. Como se não bastasse a escravatura a que estiveram sujeitos noutros tempos, em nome de uma suposta superioridade dos colonizadores, agora isto.
O que me espanta é a sua profunda religiosidade, que parece permanecer intacta, apesar da fúria (divina?) da natureza.

Saudações,
Carlos

Rolando Almeida disse...

Olá Carlos,
Claro que a questão está bem colocada. Os haitrianos são ou não pobres? E neste momento a sua pobreza afecta ou não as necessidades mais básicas? Mas tu e eu podemos beber um café todos os dias sem que tal afecte de modo significativo a nossa vida financeira. Imagina agora que eu digo o seguinte: Carlos, tens a obrigação moral de não beber cafés este mês e dar esse dinheiro que ajuda a salvar umas 10 crianças no Haiti durante uma semana. Podes ou não fazê-lo. Podes até achar que para isso o teu país tem um governo que pode pegar nos teus impostos e doar parte deles aos haitianos. Mas não existe qualquer lei que obrigue a tal. Nesse caso, só dás o dinheiro dos cafés se quiseres. Mas existe alguma obrigação moral em dar o dinheiro aos mais necessitados? è que a tua decisão será sempre uma decisão moral, nenhuma outra. Por essa razão não vejo qual o problema com a questão. Se quiseres aprofundar o sentido do problema podes ler o Um só Mundo, do Peter Singer (Gradiva) que, como sabes, é um dos mais influentes filósofos na área da ética aplicada.

Carlos JC Silva disse...

Caro Colega,

E se, porventura, os Haitianos fossem ricos não teríamos, também, o dever moral de os ajudar?
Essa ajuda não passa necessariamente, ou exclusivamente, por questões de natureza material. Refiro-me ao apoio psicológico, apoio a nível médico, etc.
A questão que coloca levanta uma outra questão, mais radical, que é:
"Como edificar uma sociedade mais justa e equitativa na distribuição da riqueza",
que para além de ser uma questão moral é, também, política (os dois conceitos estão, "geneticamente", interligados).
Aliás, se me permite, vislumbro um certo cinismo, muito peculiar na nossa sociedade, nos gestos de "caridade" característicos dos períodos festivos, como o Natal e o Ano Novo, algo comparável ao gesto de caridade para com os "pobres" do Haiti. Como quem acalma e consola, por um dia que seja, a consciência pesada de uma "práxis" política e social errada durante os restantes dias do ano, dando uma esmola esporádica.
Não que tal gesto esteja errado do ponto de vista moral. É claro que é preferível para um esfomeado receber umas moedas que poderão saciar a sua necessidade biológica da fome, momentaneamente, dadas por um qualquer ricaço (professor ou não), do que receber uma cuspidela ou o desdém da indiferença.
No entanto, caro colega Rolando, tal gesto não soluciona o problema de fundo.
Será uma utopia aspirar a uma sociedade mais justa. Mas o sonho comanda a vida, não?
Além do mais, mesmo que Peter Singer seja uma autoridade na matéria, incorreria numa "falácia de autoridade" se subscrevesse, acriticamente, os seus argumentos.
Já agora, James Rachels em "Elementos de Filosofia Moral", Gradiva, aborda algo análogo: "Teremos o dever de ajudar pessoas que morrem à fome"?

Saudações cordiais,
Carlos

Rolando Almeida disse...

Bem,
Eu não referi que Singer é uma autoridade. Isso estás tu a dizer. Além do mais Singer é um autor que aprofunda estas matérias e é uma boa referência, concordes ou não com ele. Ou passa-te pela cabeça que eu subscrevo o Singer como quem subscreve o catecismo?
Depois não me parece que objectes a hipótese de que temos uma obrigação moral para com os pobres. Não percebo é o teu exemplo com os Haitianos. Pá, se eles forem ricos é claro que não precisam de ser ajudados. Se são ricos não são pobres e o problema não se coloca. Depois, não objectas porque estás somente a dizer que o problema é mais profundo e complexo. Mas em que é que é mais profundo? Não entendo. O dinheiro ajuda ou não os Haitianos a sair da situação enrascada em que se encontram? Imagina-te lá sem casa, sem família, sem nada para comer, sem dinheiro. Se uma instituição credível, como a AMI fizesse uma boa recolha de dinheiro para te comprar alguns alimentos para ver se te safas até te organizares,o que é que isso tem de mais profundo ou mais complexo?
É que, Carlos, são dois problemas distintos que estás a colocar no mesmo patamar: um é o problema moral, da ética aplicada, se devemos ou não ajudar os pobres. Outro é o problema da filosofia política da distribuição da riqueza. Pá, para solucionar o primeiro é simples: eu acho que devo ajudar e faço donativos. Tu se não achas, vais à vidinha e ninguém se chateia, nem tem o direito de censurar. Agora, se quero discutir o problema da distribuição da riqueza, tenho de estudar um bocado pelo menos para conhecer as teses em disputa. E é isso que se faz na filosofia política e não na ética aplicada.
Ainda voltando ao Singer: eu sibscrevo algumas coisas que muitos filósofos dizem e talvez as subscreva acriticamente, somente porque me parecem bastante plausíveis e pacíficas. Uma delas é a obrigação moral de dar um contributo qualquer da minha riqueza pessoal para outras pessoas. E há uma coisa que referes, que é muito comum, mas que me soa a hipócrisia dos povos ricos: "ah e tal, o apoio não é só material". Pois, acontece que isso vindo de quem tem os bens materiais assegurados é muito bonito, só que as coisas não funcionam assim. Quem está à fome, quer comer, quem tem sede quer beber. Isso chama-se satisfação de necessidades básicas, sem as quais, outras não chegam sequer a ser necessárias. A psicologia explica isso muito bem. Senão coloca-te lá na pele de quem não come há dias e de repente alguém lhe diz ao ouvido de que o apoio que lhe pode ser dado não pode ser só material. Até parece que os bens materiais (precisamente aquele que mais satisfazemos na nossa sociedade, desde o emprego ao computador em que escrevemos) não são tão importantes ou mais que os outros. Não fosse o teu bem material e terias estudado filosofia na caverna. É por haver bem material que é possível produzir outros bens. Isso é básico e elementar e o discurso pseudo esquerdista nada mais tem a dizer sobre este assunto.

Carlos JC Silva disse...

Caro Rolando,

Continuo a pensar que o título não terá sido o mais adequado à situação concreta.
A condição social de pobreza dos haitianos não se deve exclusivamente à recente catástrofe natural. Antes deste fenómeno, já tinham, infelizmente, essa condição social. Agora viram-na agravada, com certeza.
De resto, não tenho nada a opor a quem contribuiu materialmente, como parece ter sido o caso do Rolando, mesmo antes de ter reflectido sobre o problema, como refere no post. Considero, inclusive, muito digno de registo o gesto de quem se disponibiliza fisicamente para ajudar, neste caso os haitianos, como as equipas de salvamento, dos enfermeiros, das forças de segurança, etc.
É claro que poderíamos sempre insinuar que tais actos visam o interesse próprio, como no caso de Madre Teresa de Calcutá, que, segundo alguns, ajudava os pobres para obter, em última análise, a sua própria salvação. Independentemente dessa insinuação, o acto de ajudar os outros é sempre louvável do ponto de vista moral, seja com ou sem interesse.
E, mesmo depois de ter ido dar uma volta ao quarteirão, continuo a achar que temos sobretudo o dever moral e político de acabar com a pobreza. Não acho, de resto, que os problemas que coloco não tenham relação. O Rolando, sim, parte do princípio, errado, a meu ver, de que Ética e Política constituem disciplinas estanques. Claro que constituem domínios específicos mas a fronteira que as separa é ténue. Aristóteles, a título de exemplo, afirma encontrar na linguagem humana o veículo de valores que servem de princípios para a organização de uma vida em comum (na polis) para defender a tese segundo a qual o "Homem é um animal político". Um dos problemas actuais da política, aliás, é o seu divórcio em relação aos valores e aos valores éticos em particular.
Claro que ajudar os haitianos me parece correcto e até um imperativo mas isso não me impede de achar que a raiz do problema não reside aí mas sim na construção de uma sociedade mais justa e equitativa, conceito aprofundado por J. Rawls, como deve saber.
Em relação à teoria das necessidades de Maslow, a que parece fazer alusão, é certo que na base da sua pirâmide coloca as necessidades fisiológicas. Mesmo assim, existem pessoas que fazem greve de fome em nome da liberdade, por exemplo, subvertendo a referida pirâmide. Não obstante, acho correctíssimo que se ajude materialmente os haitianos, como qualquer pessoa gostaria numa situação de catástrofe.
Por último, claro que sem valores materiais não teria estudado ou tê-lo-ia feito na caverna, como refere, mas, graças aos estudos posso ascender a valores mais "altos". No que diz respeito ao discurso, não sei se o posso catalogar como esquerdista ou pseudo esquerdista, mas mesmo que seja esquerdista não sei se tem mal ou se é um preconceito da sua parte.
Resumindo: temos o dever moral de ajudar os que sofrem as consequências de catástrofes naturais, ou outras; temos o dever moral (e político) de erradicar, ou pelo menos de lutar, contra a pobreza.

Saudações cordiais
CJ

Rolando Almeida disse...

Olá Carlos,

“Continuo a pensar que o título não terá sido o mais adequado à situação concreta.
A condição social de pobreza dos haitianos não se deve exclusivamente à recente catástrofe natural. Antes deste fenómeno, já tinham, infelizmente, essa condição social. Agora viram-na agravada, com certeza.”
Claro, mas a ajuda não é só necessária quando há catástrofes naturais, como parece claro.

“De resto, não tenho nada a opor a quem contribuiu materialmente, como parece ter sido o caso do Rolando, mesmo antes de ter reflectido sobre o problema, como refere no post. Considero, inclusive, muito digno de registo o gesto de quem se disponibiliza fisicamente para ajudar, neste caso os haitianos, como as equipas de salvamento, dos enfermeiros, das forças de segurança, etc.
É claro que poderíamos sempre insinuar que tais actos visam o interesse próprio, como no caso de Madre Teresa de Calcutá, que, segundo alguns, ajudava os pobres para obter, em última análise, a sua própria salvação.”
Poderíamos analisar aqui a questão do egoísmo ético 
(Continua)

Rolando Almeida disse...

“Independentemente dessa insinuação, o acto de ajudar os outros é sempre louvável do ponto de vista moral, seja com ou sem interesse.”
Também me parece pacífico, pelo menos em termos gerais.

“E, mesmo depois de ter ido dar uma volta ao quarteirão, continuo a achar que temos sobretudo o dever moral e político de acabar com a pobreza. Não acho, de resto, que os problemas que coloco não tenham relação. O Rolando, sim, parte do princípio, errado, a meu ver, de que Ética e Política constituem disciplinas estanques.”
Não, não considero, bem pelo contrário. O caso da ética aplicada é que ela é normativa, pelo que se estamos de acordo com o argumento de que devemos ajudar os pobres, fazemo-lo de imediato, ao passo que podemos não concordar, por exemplo, com uma distribuição equitativa da riqueza.
“Claro que constituem domínios específicos mas a fronteira que as separa é ténue. Aristóteles, a título de exemplo, afirma encontrar na linguagem humana o veículo de valores que servem de princípios para a organização de uma vida em comum (na polis) para defender a tese segundo a qual o "Homem é um animal político". Um dos problemas actuais da política, aliás, é o seu divórcio em relação aos valores e aos valores éticos em particular.”
De acordo.

“Claro que ajudar os haitianos me parece correcto e até um imperativo mas isso não me impede de achar que a raiz do problema não reside aí mas sim na construção de uma sociedade mais justa e equitativa, conceito aprofundado por J. Rawls, como deve saber.”

De acordo.

“Em relação à teoria das necessidades de Maslow, a que parece fazer alusão, é certo que na base da sua pirâmide coloca as necessidades fisiológicas. Mesmo assim, existem pessoas que fazem greve de fome em nome da liberdade, por exemplo, subvertendo a referida pirâmide.”
Claro que existem contra exemplos à pirâmide. Com efeito parece existir uma diferença significativa entre quem passa fome por opção política e quem passa fome por imposição do contexto, sem nada poder fazer em contrário. E são muitas mais as pessoas que no planeta passam fome porque não possuem qualquer meio de a combater do que aquelas que passam fome por greve de fome.
“Não obstante, acho correctíssimo que se ajude materialmente os haitianos, como qualquer pessoa gostaria numa situação de catástrofe.
Por último, claro que sem valores materiais não teria estudado ou tê-lo-ia feito na caverna, como refere, mas, graças aos estudos posso ascender a valores mais "altos".”
Eu não estou certo se concordo com esta parte, já que existem contra exemplos aos pontapés. Então e a classe política? É iletrada? No entanto parece ser uma classe mais desprovida de altos valores humanos do que o meu avô materno que foi mineiro toda a vida e tinha a quarta classe. É claro que também partilho da crença que um melhor conhecimento do mundo nos conduz a um nível civilizacional, mas às vezes parece acontecer o contrário, o que indica que estudar mais e conhecer mais é uma condição necessária, mas não suficiente para uma boa formação moral.
“No que diz respeito ao discurso, não sei se o posso catalogar como esquerdista ou pseudo esquerdista, mas mesmo que seja esquerdista não sei se tem mal ou se é um preconceito da sua parte. “
É bem possível, não sei.

“Resumindo: temos o dever moral de ajudar os que sofrem as consequências de catástrofes naturais, ou outras; temos o dever moral (e político) de erradicar, ou pelo menos de lutar, contra a pobreza.”
Completamente de acordo.

Saudações cordiais
CJ
Outras e abraço