Quem leciona filosofia certamente já foi confrontado com
observações contraditórias por parte dos seus alunos. De uma mesma aula, alguns
alunos dizem que “a filosofia entende-se
bem”, “o professor é muito claro nas
explicações das teorias” ou, ao invés, “esta
aula é uma confusão”, “o professor é
um confuso”. Do ponto de vista de quem ensina o caminho fácil é considerar
os alunos que fazem o primeiro tipo de afirmações uns amores e os que fazem o
segundo tipo, uns estupores. Mas ensina-nos a vida que o caminho mais fácil
nunca é o melhor e talvez estas afirmações dos alunos mereçam alguma
consideração com detalhe. Ao mesmo tempo sabemos que a referência generalizada
nas dificuldades quanto às aprendizagens na matemática é a conhecida “falta de bases”. Pois, o que me parece
acontecer na filosofia é exatamente o mesmo, falta de bases. Não é por acaso que a filosofia ocorre nos
currículos somente no ensino secundário, ou pelo menos com especial incidência
na adolescência (pese embora experiências paralelas meritórias na filosofia
para crianças). E ocorre nesta etapa da vida dos estudantes precisamente porque
se considera que neste nível o estudante é capaz de abstração. Para compreender
o problema do livre arbítrio, a causalidade não é coisa que se veja com
os olhos. Quando um aluno vê o professor empurrar uma garrafa de água é somente
isso mesmo que vê, muitas das vezes sem compreender que existe ali um fenómeno
físico e material de causalidade. A causalidade
é uma medida que se capta com a mente e não com os olhos. Se este terreno de
base não está preparado, será, assim, muito difícil ao aluno compreender a
relação estabelecida entre causalidade
natural e livre arbítrio e, daí,
captar a essência do problema.
Existe uma tendência para estes alunos com dificuldade de
apreensão abstrata em considerar que as aulas devem ser um despejar de
definições que se decora acriticamente. Claro está que perante alunos com estas
características a filosofia pode ser uma grande desvantagem. E para o professor
sobra trabalho suplementar já que tem de trabalhar em função desta incapacidade,
ou melhor, desta capacidade ainda não treinada. Além de ter de saber resistir
aos comentários dos alunos em relação às matérias que tem para com eles
trabalhar.
Há formas muito simples de compreender se esta base da
abstração está ou não trabalhada. Por exemplo, com a exibição de uma reprodução
da Guernica, uns alunos vão observar
que estão a ver um boi, uma lâmpada, um homem aos berros, quando outros, perante
o mesmo desafio, já observam que estão a ver sofrimento, confusão, caos e
miséria. Roubando um pouco à teoria de Piaget, diria que os primeiros ainda
militam na fase das operações intelectuais concretas, quando os segundos já
estão na fase das operações abstratas.
Os testes diagnóstico podem dar uma primeira imagem ao
professor do estado dos alunos e o que pode esperar das suas aprendizagens. No caso
dos alunos com esta capacidade ainda não trabalhada, o melhor mesmo é avançar
com a leitura de pequenos textos com algum grau de abstração (como qualquer bom
texto de filosofia) e pedir comentário quase linha a linha. Mas no nosso
sistema formal de ensino, não há tempo a perder, pelo que há que procurar o equilíbrio
entre este trabalho e o avanço dos conteúdos. Mas parece claro que os alunos
avançam a ritmos muito diferenciados em virtude da sua capacidade de
compreender o mundo abstratamente. E qualquer professor do secundário está
consciente das dificuldades encontradas nos alunos sem esta base: preguiça,
reacionarismo em relação à disciplina e ao professor, etc. É uma luta dura.
Um trabalho interessante é ter algumas ideias minimamente
sólidas das razões por que estas bases não são consolidadas. E existe muita
literatura interessante sobre o assunto, desde a sociologia até à psicologia e
as neurociências. Mas é difícil atirar com certezas perante esta dificuldade.
Entre as razões mais imediatamente compreensíveis estão as
sociais e familiares. Um aluno médio de 15 anos pode saber perfeitamente o nome
dos defesas centrais do atual plantel do Benfica (e não há mal algum nisso),
mas dificilmente ouviu falar de Picasso. E que razão me leva a pensar que há aqui
um qualquer hiato entre aquilo que a realidade é e aquilo que ela deveria ser?
Porque o futebol, pese embora possa ser abstratamente analisado, lida diretamente
com as emoções e é essa a relação mais comum que a esmagadora maioria dos
adeptos de futebol têm com a modalidade. Mas olhar uma obra de Picasso exige
alguma abstração, pelo que o exercício implica algum trabalho intelectual. E é
exatamente este o trabalho que muitas das vezes as famílias, meios de
comunicação e sociedade em geral poderiam fazer de modo mais consistente e que,
na minha opinião, não fazem.
Este trabalho é comunitário no sentido em que não cabe
exclusivamente aos professores, mas a todos. Quando confiamos apenas nos
professores para realizar este trabalho não deveria pelo menos ser estranho que
os alunos muitas das vezes considerem a filosofia confusa quando com ela se
confrontam pela primeira vez.
Link da imagem: (https://gartic.com.br/luchfe/desenho-jogo/confuso)
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