Recentemente saiu uma notícia no
Jornal Público sobre uma eventual revisão curricular dos ensinos básico e
secundário. Segundo foi noticiado o principal objetivo é dar razão a uma velha
reivindicação dos professores encurtando os conteúdos a explorar nos currículos
das diversas disciplinas. O lado menos bom da notícia citada é que algumas
entidades oficiais com responsabilidade na matéria estariam a ser ignoradas
pelo Ministério. Ora discordo que o Ministério decida sobre um programa
ignorando quer as associações instituídas ao nível científico, quer
profissional. Por isso mesmo um programa elaborado ou reformulado por apenas
uma parte é, quanto a mim, uma péssima ideia. Mas mantenho a esperança que as
coisas não se passem a esse nível e espero também que o resultado de uma
revisão do programa de filosofia seja o resultado do diálogo entre quem melhor
representa os professores e quem representa a disciplina academicamente. Neste momento
as instituições melhor posicionadas para esse efeito na disciplina de filosofia
são a APF e a SPF.
Pressupondo que os professores
gostam e querem ser ouvidos nesta matéria, enquanto professor quero deixar a
minha proposta. Ela é apenas uma ideia, feita com o tempo de que disponho e vai
ser montada sobre a proposta que Aires Almeida fez
aqui. Portanto vou trabalhar a partir do programa e da proposta do Aires.
Algumas ideias para começar.
Reformular em vez de destruir o
trabalho feito
Não defendo que se deva fazer um
programa novo. O programa atual tem pontos positivos e outros que podem ser
melhorados. E esta vai ser a linha condutora para a minha breve apresentação.
Pontos a manter no programa:
O programa de filosofia é
elaborado em torno de problemas e não de filósofos ou filosofias. E assim deve
ser mantido. Por um lado dá alguma liberdade ao professor, o que é sempre de
esperar num programa de ensino, pelo menos de filosofia. Por outro lado, o que
interessa na filosofia são mais os problemas e não propriamente a exposição das
teorias dos autores, ainda que não se satisfaça a primeira condição com a
ausência da segunda.
Pontos a reformular no programa:
Em primeiro lugar parece-me
urgente depurar toda a terminologia do programa. E tenho uma razão para assim
pensar. É que a linguagem do programa é transportada para os manuais, já que os
mesmos seguem naturalmente o programa. Ora, o indice dos manuais, diz-me a
experiência, é ilegível para os alunos e perdemos imenso tempo a traduzir. Ou então
ignoramos. Não há qualquer vantagem em traduzir. Se podemos chamar as coisas
com outros nomes e com o mesmo rigor, porque não adotar essa segunda opção com
a preocupação de tornar a tábua das matérias mais legível para os alunos? Dou aqui
apenas alguns exemplos:
Como aparece
no programa
|
Proposta de
substituição
|
Abordagem introdutória à filosofia e ao filosofar
|
O que é a filosofia?
|
Dimensão discursiva do trabalho filosófico
|
Caixa de ferramentas da filosofia
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A ação humana – Análise e compreensão do agir
|
Filosofia da ação
|
Os valores – Análise e compreensão da experiência
valorativa
|
Os valores
|
Valores e valoração- A questão dos critérios
valorativos
|
O problema da objetividade de juízos de valor
|
A dimensão ética-política – Análise e compreensão
da experiência convivencial
|
Filosofia política
|
Temas/ problemas do mundo contemporâneo
|
Problemas da filosofia
|
O quadro que apresento é apenas
uma demonstração da depuração que pode ser feita. Estou convencido que tem amplas
vantagens didáticas sem com isso criar qualquer prejuízo científico. Bem pelo
contrário. E outra opção que me parece ser igualmente válida é apresentar os
conteúdos como problemas. Assim, em vez de filosofia da ação, poderia constar:
O que é uma ação? Ou, Será que todos os acontecimentos são ações? Bem mas ainda
assim, isto pode ser igualmente feito mesmo com a proposta que apresento no
quadro, já que um tema da filosofia pode ser apresentado com diferentes
problemas.
Em relação à proposta do Aires,
uma alteração de fundo. A lógica desaparece do 11º ano e desaparece grandemente
de todo o programa da disciplina. Só faz sentido ensinar lógica como o Aires propõe se depois ela for
aplicada ao longo de todo o programa. Mas a avaliar pelos manuais isso quase
nunca acontece. O que me leva a pensar que uma grande maioria dos professores
não tem optado por ensinar filosofia da ciência ou do conhecimento no 11º ano
com as bases da lógica. E aqui penso que não vale a pena apresentar um programa
que só num ponto varre a maré toda. Depois há outro ponto que me parece
crucial. Vamos considerar que o professor pode ajustar mais ou menos a lógica que
o aluno aprende ao restante programa. E penso que esse deve ser o efeito do
ensino da lógica, caso contrário, empobrece o seu próprio ensino. Mesmo que um
professor tenha essa opção, como faz no 10º ano? Ensina filosofia da arte,
religião, ação sem esses conhecimentos e aplicação da lógica e depois no 11º
ano passa a usar essa ferramenta? Ou seja, ou a lógica aparece logo na tal “dimensão
discursiva do trabalho filosófico” no 10º ano ou não aparece em lado algum quer
do 10º, quer do 11º ou então, em última análise e que me parece ser a pior das
possibilidades, aparece apenas como mera curiosidade e para fornecer ao
estudante algum conhecimento de como se faz filosofia. Posto isto, qual a minha
proposta?
A minha proposta é que a lógica
saia do programa de filosofia, para dar lugar no 10º ano, a uma pequena
introdução à metodologia filosófica que pode e deve incluir breves noções de
lógica. Nessas breves noções, o que deve ser incluído? Vou elencar aqui, sem
grandes preocupações de fundo, o que me parece mais universal e essencial:
·
O que é um argumento?
·
Identificar argumentos
·
Composição de um argumento
·
Premissas e conclusão
·
Lógica formal e informal – validade dedutiva e
indutiva
·
Validade e verdade
·
Validade
·
Solidez
·
Cogência
·
Refutações
·
Definição de conceitos e sua importância
(vagueza e precisão)
Esta alteração implica já uma
reformulação quer ao programa, quer à proposta do Aires. Talvez o requisito
mais rígido que proponho para esta reforma seja o de que todo o programa, quer
de 10º, quer de 11º tem de andar em torno desta ideia:
1. Apresentação
de problemas
2. Defesa
de teorias
3. Discussão
de argumentos
Um aspeto que a proposta do Aires
não refere é a capacidade de execução didática do programa. Nem o programa é
muito centrado nessa preocupação. Se por um lado é verdade que esse é o
trabalho que os professores desenvolvem nos grupos disciplinares, também é
verdade que o programa se pode centrar aí. Afinal o que se pretende de um
programa não é somente o que se quer ensinar, mas a forma como se aprende o que
se pretende ensinar. Vou tentar aqui esboçar um pequeno exemplo:
Unidade: Filosofia da Arte
Problema: Pode a arte ser definida?
|
Estratégias a seguir
|
Conteúdos a explorar:
·
Teoria da imitação e refutações
·
Teoria da expressão e refutações
·
Teoria formalista e refutações
|
1. Apresentação
do problema
2. Tentativa
de encontrar soluções para o problema com a discussão das teorias propostas
pelos alunos. Como podem os alunos propor teorias?
·
Trabalho de grupo (20m de discussão)
·
Discussão individual (45 m)
·
Cada aluno tenta individualmente e em 20 m
escrever uma resposta ao problema elencando sempre as razões que justificam a
sua posição.
3. Discussão
de cada teoria da filosofia. Por exemplo, uma aula para cada uma.
Aqui poderia continuar a apresentar sugestões de
trabalho. Desde como se apresentam refutações, etc. O aluno pode pesquisar
nos materiais de aula (manual, sites de internet, etc… ).
|
Mais uma vez não tenho aqui
preocupações de fundo no elenco que apresento de estratégias, mas espero com
este modelo, que se perceba a minha proposta. Para cada página de conteúdos, 10
de estratégias. E por que razão defendo isto? Por uma razão simples. Com 10
páginas de conteúdos o professor vai passar as aulas a expor matéria. Com 10
páginas de estratégias, o aluno vai passar as aulas com tarefas delimitadas e a
trabalhar. Por conseguinte, a progredir. E o professor consegue trabalhar melhor e
gestão não só do programa como das aulas e das aprendizagens.
Vou então detalhar um pouco
quanto aos conteúdos e usar o trabalho do Aires como base:
10º ano
Alterações:
Como já referi, alteraria o
primeiro módulo. Provavelmente teria de alterar também os tempos de lecionação.
Mas todo o primeiro módulo seria o da apresentação da lógica como referi acima.
E, claro, aumentaria os tempos letivos nesta unidade para poder trabalhar
textos pequenos para alunos de 15 anos, mas textos de filósofos nos quais se
tenha de trabalhar premissas, conclusão, defesa de teorias, etc… as outras
unidades que aparecem neste quadro, não as alteraria.
Acho aceitável a mudança da
Estética e Religião para o 11º ano. A vantagem que vejo é a da gestão do tempo
de lecionação do programa. Mas alteraria substancialmente a unidade VI. Ao contrário
do que sugere o Aires estas aulas deviam ser destinadas a:
1º aprender como se redige um
pequeno ensaio
2º Distribuir bibliografia
(pequenos textos de 20 pp a cada aluno)
3º Oficina de redação do ensaio
4º Apresentação oral individual
de todos os ensaios
A redação do ensaio é já proposta
no programa. A vantagem de aprenderem a redigir pequenos ensaios é enorme. Além
de aprenderem a defender ideias e teorias, dão os primeiros passos para
elaborarem trabalhos académicos como pequenos artigos. Em vez daqueles trabalhos
sem pés nem cabeça em que mais ou menos o aluno acaba a copiar qualquer coisa
do google e colocar uma capa, índice, bibliografia, etc…, coisa que já nem
sequer se usa em lado algum, estas últimas aulas (que tem de ser mais de 8)
destinavam-se a criar uma oficina na qual os alunos estão a elaborar os seus
próprios ensaios de 2 páginas no máximo. Como fazer isto num manual? Não se
faz. Mas os editores podem preparar bibliografias pequenas que ajudem os alunos
a decidir. Por exemplo, os alunos podem servir-se de livros como os de Nigel
Warburton e fazer um ensaio de filosofia da religião a partir do capítulo sobre
Deus. Tenho ideias concretas neste ponto, pois é assim que trabalho, mas não me
vou alongar mais, pois o que pretendo aqui é deixar algumas sugestões práticas
para a reforma de um programa de filosofia. Além disso este ensaio teria
ajudado imensos alunos a fazer a última questão do último grupo do mais recente
Exame Nacional de Filosofia. No final do ano é já desejável que os alunos
consigam defender as suas ideias sobre alguns problemas da filosofia.
11º ano
Como disse não tive a preocupação
do Aires em fazer a contagem das aulas, pelo que algumas coisas que aqui vou
apontando poderiam cair por terra (a verdade é que todas vão cair pois eu nada
decido sobre programas). Mas mesmo assim, seguindo a minha proposta, toda a
primeira unidade desaparecia do programa do 11º ano. Sempre defendi que a
filosofia da mente seria interessante, pelo que a introdução de alguns
problemas desta área de forma direta (e não indireta como o caso do problema do
livre-arbítrio que aparece na introdução aos valores e ação humana) talvez não
fosse de descartar. O que menos me agrada nesta proposta do Aires é a última
unidade. A ideia do tema livre deve ser substituída, uma vez mais, talvez, pela
minha ideia já aplicada no 10º ano. O aluno no final do ano deve mostrar que é
capaz de defender publicamente ideias. E isso pode fazer-se com a oficina de
filosofia e a elaboração dos ensaios. Não referi ainda, mas o ensaio deve ser
matéria de avaliação tal como qualquer outro teste e deve ter o mesmo peso na
avaliação final. Por isso o ensaio elaborado no 10º ano pode ser aqui retomado
e reelaborado sem qualquer prejuízo. Isto dá uma liberdade enorme aos alunos. E
aprendem enquanto fazem as coisas que é muito mais interessante que ouvir o
tempo todo e depois terem de passar horas a fio a ler tudo o que ouviram no
sentido de tentar não esquecer para o teste.
Uma palavra final
Sei que estes
apontamentos são ainda uma proposta em muitos aspetos vaga. E sei que o Aires
justificou muito melhor os conteúdos. Porque, nos seus aspetos mais gerais, até
concordo com as justificações do Aires, procurei aqui explorar mais como é que
se pode explorar um programa de filosofia e executá-lo.
Não acho que um
programa tenha de ser um documento muito complexo ou profundo. Profundos são os
conteúdos. Um programa é um guia e deve ser de fácil leitura e muito pragmático.
Afinal de contas os professores não passam o ano a olhar para o programa. Os professores
olham para os manuais e restante material de apoio às aulas. E o programa deve
ser um guia que permita que todos esses materiais possam ser elaborados com
rigor.
Espero que esta
proposta possa, sei lá como, contribuir pelo menos para alguma discussão pois,
como muito bem referiu o Aires, já que está em discussão eu devo também
discutir porque sou parte interessada.
6 comentários:
Ainda que não decida nada, acho muito pertinente que este assunto seja debatido e refletido entre aqueles que deverão ser os mais interessados: os que trabalham com o programa diariamente. Tenho tentado seguir as publicações feitas e concordo plenamente com a valorização que faz das estratégias em detrimento da quantidade de conteúdos, para que se evitem cada vez mais aulas expositivas. Este é um problema com que me deparo ano após ano e já cheguei à conclusão que não o consigo resolver como gostaria, tendo em conta a quantidade de conteúdos do programa atual.
Também concordo com a passagem do problema do livre-arbítrio para o 11.º ano, pelas razões expostas.
No entanto, considero que lógica não deva sair do programa, pois é uma ferramenta útil em vários momentos e facilita, por exemplo, a identificação de falácias durante a análise de vários conteúdos.
Por outro lado, continuo a preferir a abordagem do tema livre proposta por Aires Almeida porque nos dá mais liberdade para escolher a metodologia e o tema a trabalhar, o que julgo ser importante, tendo inclusivamente em conta as características dos grupos com que trabalhamos.
Por fim, considero que não só o ensaio filosófico deva ser valorizado, como também o debate. Tenho vindo a implementar o debate como instrumento de avaliação e privilegio esta estratégia porque implica que os alunos preparem os seus argumentos e avaliem os argumentos contrários, permite que os alunos que têm competências ao nível da oralidade mais desenvolvidas se sintam valorizados e é uma oportunidade para que possam defender as suas ideias em situações imprevistas. Esta é uma ferramenta que acho que deve ser mais valorizada porque além de trabalhar as competências filosóficas, alargar-se a outras as áreas.
Olá,
Partilhamos as mesmas dificuldades. Cada atividade que penso para 45m leva-me a aula inteira e muitas vezes fica incompleta. É impossível fazer correções de trabalhos, desenvolver trabalhos de grupo, apresentações, aulas de debate, etc.. e ainda cumprir minimamente bem com o programa.
Em relação ao ensino da lógica a minha ideia é simples: pouco e bem. E prefiro assim do que muito e mal. Isto porquê? Porque penso – talvez erradamente – que se o ensino da lógica implicar muitos cálculos, muito do seu ensino não vai passar disso mesmo, do mero calculo formal. Mas posso estar enganado e no caso de estar peço desculpa pela minha antecipação. Mas a ideia de a lecionar no 10º ano é consensual.
Concordo de todo com a valorização do debate. Na escola onde trabalho estou “agarrado” a 10% para a oralidade. E mesmo que fosse mais percentagem, seria sempre complicado avaliar este item uma vez mais por causa da extensão curricular do programa.
Gostei de ler as suas sugestões que me parecem bastante razoáveis e atentas.
Obrigado pela partilha
Rolando, acho que vou de ter de escrever outro texto para responder à tua proposta alternativa e às sugestões de outros colegas. É mais prático assim do que escrever aqui longos comentários.
Ok Aires.Boa ideia. Interessante seria daqui a umas semanas tentarmos juntar todas as sugestões e elaborar uma só. Se houver tempo, pelo menos faço depois uma síntese. E isto na esperança que mais colegas se manifestem, claro.
Está aqui, Rolando: http://questoesbasicas.blogspot.pt/2016/11/fundamentar-proposta.html
Já li Aires. Depois comento no teu face. Obrigado
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