Tenho ouvido e lido várias vezes argumentos que procuram mostrar, sem justificação suficiente no entanto, que existiu uma grande culpa da intervenção humana e da falta de planeamento urbanístico na ilha da Madeira. Resido há quase 10 anos na ilha e recordo que desde sempre as ribeiras são uma questão política e social na Madeira. Embora me pareça que os argumentos carecem de muita apreciação mais técnica há com efeito um dado que presenciei empiricamente que me faz acreditar que a intervenção humana nada teve a ver com o que aconteceu na ilha. A água vem das altas montanhas da ilha. A ilha não está habitada no cume das montanhas e a grande totalidade da montanha da ilha da Madeira não tem sequer intervenção humana. É natureza pura e pertence ao parque natural da ilha onde não é possível sequer qualquer intervenção. Eu próprio já fiz alguns percursos na montanha sem que tenha visto qualquer vestígio de intervenção humana a não ser as veredas, que são estreitíssimos caminhos de terra feitos à mão há alguns séculos já e que hoje em dia são alvo de caminhadas turísticas sempre com guias especializados.
O mais impressionante é que a água não chegou ao litoral da ilha somente seguindo os cursos das ribeiras, senão vejamos o caso que mais me impressionou. Na zona da Pena morreram várias pessoas, provavelmente, além da Ribeira Brava, a localidade onde mais pessoas perderam a vida. Faço essa estrada duas vezes por semana, pelo menos. Ora, não conheço qualquer ribeira junto dessa estrada. Ou seja, a água pura e simplesmente veio da serra por onde calhou e não procurando somente os cursos naturais das ribeiras.
Mas há mais dados. Por exemplo, segundo sei, o leito da ribeira na Ribeira Brava, praticamente não foi alterado e a Ribeira Brava é uma localidade relativamente pequena. A Ribeira Brava é ladeada por montanhas ficando num belo vale. Aliás, uma das paisagens mais belas que conheço da ilha da Madeira é a deste vale. Na Ribeira Brava não se coloca o problema do desordenamento urbanístico. Com efeito foi uma zona muito afectada. E isto para não falar do Curral das Freiras, uma aldeia com cerca de 4 mim habitantes. Mesmo sem qualquer efeito de desordenamento urbanístico, o Curral foi muito afectado.
Por outro lado, a ilha da Madeira praticamente não tem zonas planas. Já vivi em duas casas diferentes na ilha e recordo que tive alguma dificuldade em encontrar a casa que mais queria precisamente porque gosto de zonas planas e as poucas que existem são encostadas ao litoral e muito caras. Por outro lado, mesmo sem conhecimentos técnicos ou científicos, é de notar que nenhum prédio ruiu no Funchal, mesmo contra o argumento dos ambientalistas que juram que os prédios estão construídos sobre as ribeiras.
Creio que as imagens da TV não conseguem mostrar o que tenho presenciado aqui na ilha. Por todo o lado, com ou sem ribeiras, encontro rastro de destruição e ainda não me desloquei muito pela ilha. A zona antiga da cidade do Funchal chega a ter uns impressionantes 3 metros de atura de terra batida (a da serra) e pedregulhos, alguns de um tamanho impressionável ao olhar. Gostaria de saber qual a ribeira ou até rio do mundo que aguentaria tal avalanche? Grande parte das ribeiras foram devidamente canalizadas pelas autoridades regionais. Aliás, essa sempre tem sido uma preocupação enorme do governo regional, pelo que estou crente que se assim não fosse, ainda teria sido pior a catástrofe. E atenção que as ribeiras só estão canalizadas já na marginal da ilha. É certo que se a água vem da montanha, chega à marginal com uma velocidade impressionante, mas foi precisamente a canalização das ribeiras que condicionou a que muita da água não se espalhasse muito mais. Mas o impressionante, repito, é que a água não chegou ao Funchal somente pelas ribeiras, mas por todo o lado. Dá-me toda a impressão que a obra foi da natureza, pelo menos da natureza que ainda não conhecemos e dominamos cientificamente. Mas tenho dúvida que toda a ciência junta na ilha da Madeira não teria evitado a tragédia.
É já a segunda vez na vida que presencio tragédias com perdas humanas elevadas. A primeira foi a queda da ponte de Entre-os-Rios, Castelo de Paiva, a minha terra natal. Na altura fiquei convencido que a culpa era realmente da componente humana, da falta de conhecimento. As pessoas em geral sentiam insegurança com a ponte há mais de uma década. Eu próprio lá passei duas vezes algumas horas antes da queda e numa dessas vezes comentei o mau estado da ponte que poderia não resistir à força das águas do Douro. Aqui na Madeira a causa parece-me bem diferente.
Para poupar algumas reacções acho que devo dizer que me estou nas tintas para a política regional.