“Culturas diferentes têm códigos morais
diferentes”- pareceu a muitos pensadores ser a chave para compreender a
moralidade. A ideia de verdade universal em ética, afirmam, é um mito. Tudo
quanto existe são os costumes de sociedades diferentes. Não se pode dizer que
estes costumes estão “correctos” ou “incorrectos”, pois isso implicaria ter um
padrão independente decerto e errado pelo qual poderíamos julgá-los. Mas tal
padrão não existe; todos os padrões são determinados por uma cultura. (…) O
relativismo cultural, como tem sido chamado, desafia nossa crença habitual na
objectividade e universalidade da verdade moral. Afirma, com efeito, que não
existe verdade universal em ética; existem apenas os vários códigos morais e
nada mais.
(…)
À primeira vista (o relativismo moral) parece bastante plausível No entanto,
como todas as teorias do género, pode ser avaliado mediante análise racional; e
quando analisamos o relativismo cultural, descobrimos que não é tão plausível
como inicialmente parecia ser.
(…)”A
noção de certo está nos hábitos da população. Não reside além deles, não provém
de origem independente, para os pôr à prova. O que estiver nos hábitos
populares, seja o que for, está certo”. Suponha que tomávamos isto a sério.
Quais seriam algumas das consequências?
1.Deixaríamos de poder afirmar que os
costumes de outras sociedades são moralmente inferiores aos nossos. Isto é
claro, é um dos principais aspectos sublinhados pelo relativismo cultural. (…)
O relativismo cultural iria impedir-nos de dizer que qualquer destas práticas
estava errada. (Nem sequer poderíamos dizer que uma sociedade tolerante em
ralação aos judeus é melhor que uma sociedade anti-semita, pois isso implicaria
um tipo qualquer de padrão transcultural de comparação).
2.
Poderíamos decidir se as acções são
certas ou erradas pela simples consulta dos padrões da nossa sociedade. (…)
O relativismo cultural não se limita a impedir-nos de criticar os códigos de
outras sociedades; não nos permite igualmente criticar a nossa. Afinal de
contas, se certo e errado são relativos à cultura, isto tem de ser verdade
tanto relativamente à nossa própria cultura como relativamente às outras.
3.
A ideia de progresso moral é posta em
dúvida. Pensamos habitualmente que pelo menos algumas das mudanças sociais
são melhorias. (…) Ao longo da maior parte da história ocidental o lugar das
mulheres na sociedade esteve severamente circunscrito. (…) Recentemente, muitas
destas coisas mudaram, e a maioria das pessoas pensa que isto é um progresso.
Mas se o relativismo cultural estiver correcto, poderemos legitimamente pensar
que é um progresso? Progresso significa substituir uma maneira de fazer as
coisas por uma maneira melhor. Mas qual é o padrão pelo qual avaliamos estas novas
maneiras como melhores? Se as velhas maneiras estavam de acordo com os padrões
culturais do seu tempo, então o relativismo cultural diria que é um erro
julgá-las pelos padrões de uma época diferente.
(…)
Estas três consequências do relativismo cultural levaram muitos pensadores a
rejeitá-lo frontalmente como implausível. Faz realmente sentido, afirmam,
condenar certas práticas, como a escravatura, onde quer que ocorram. Faz
sentido pensar que a nossa própria sociedade fez algum progresso cultural, embora
deva admitir-se, simultaneamente, que é ainda imperfeita e necessita de
reformas. Uma vez que o relativismo cultural supõe que estes juízos não fazem
sentido, não pode estar correcto.
(…)
O ímpeto original do relativismo cultural resulta da observação de que as
culturas diferem de forma dramática nas suas perspectivas do que é certo ou
errado. Mas até que ponto diferem realmente? É evidente que há diferenças (…)
mas quando examinamos o que parece ser uma diferença drástica, descobrimos com
frequência que as culturas não diferem tanto quanto parece.
Imagine-se uma cultura na qual as pessoas
acreditam ser errado comer vacas. Pode até ser uma cultura pobre, na qual não
há comida suficiente; mesmo assim, as vacas são intocáveis. Tal sociedade
pareceria ter valores muito diferentes dos nossos. Mas será que tem? Ainda não
perguntámos a razão pela qual estas pessoas se recusam a comer vacas.
Suponha-se que é por acreditarem que depois da morte as almas dos seres humanos
habitam os carpos dos animais, especialmente das vacas, podendo uma vaca ser a
alma da avó de alguém. Vamos continuar a dizer que os valores deles são
diferentes dos nossos? Não; a diferença está noutro lado. A diferença reside
nos nossos sistemas de crenças, e não nos nossos valores. Concordamos que não
devemos comer a nossa avó; limitamo-nos a discordar sobre se a vaca é (ou
poderia ser) a nossa avó. (…) Não podemos, portanto, concluir que há um
desacordo quanto aos valores, só porque os costumes diferem. Pode, pois, haver,
menos desacordo quanto aos valores do que parece.
(…)
Há valores que têm de ser mais ou menos universais. Imagine-se o que seria de
uma sociedade que não valorizasse a verdade. Quando uma pessoa falasse com
outra, não poderia partir-se do princípio de quês estaria a dizer a verdade,
pois poderia facialmente estar a mentir. Nessa sociedade não haveria qualquer
motivo para dar atenção ao que os outros dizem. (…) A comunicação seria então
extremamente difícil, se não mesmo impossível. (…) Pode, naturalmente, haver
excepções a esta regra: pode haver situações nas quais se considere permissível
mentir. No entanto, estas serão excepções a uma regra que está em vigor na
sociedade.
(…)
Há aqui uma conclusão teórica geral, a saber, há algumas regras morais que
todas as sociedades têm em comum, pois essas regras são necessárias para a
sociedade poder existir. (…) É um erro sobrestimar as diferenças entre
culturas. Nem todas as regras morais podem variar de sociedade para sociedade.
(…)
Tudo isto constitui, na verdade, uma completa rejeição da teoria. No entanto,
continua a ser uma ideia muito sedutora (…), a teoria deve ter alguma coisa a
seu favor, pois a não ser assim porque razão se tornaria tão influente? Penso
que, na verdade há alguma coisa correcta no relativismo cultural, e quero agora
passar a dizer o que é. Há duas lições que devemos aprender com a teoria, ainda
que acabemos por rejeitá-la.
Primeiro,
o relativismo cultural alerta-nos, de maneira correcta, para os perigos de
pressupor que todas as nossas preferências estão fundadas numa espécie de
padrão racional absoluto. Não estão. Muitas das nossas práticas (mas não todas)
são particularidades exclusivas da nossa sociedade. (…) O relativismo cultural
começa com a preciosa observação de que muitas das nossas práticas são apenas
isto; produtos culturais.
(…)
A segunda lição relaciona-se com a necessidade de manter o espírito aberto. No
processo de crescimento, cada um de nós adquiriu algumas convicções fortes; (…)
podemos, ocasionalmente, ver essas convicções postas á prova. (…) O relativismo
cultural, ao sublinhar que as nossas perspectivas morais podem reflectir
preconceitos da nossa sociedade, fornece um antídoto para este tipo de
dogmatismo.
(…)
Perceber isto pode levar-nos a uma maior abertura de espírito. Podemos compreender
que os nossos sentimentos não são necessariamente percepções da verdade – podem
não ser mais do que o resultado do condicionamento cultural. (…) Podemos ficar
mais abertos à descoberta da verdade, seja ela qual for.
RACHELS, James, Elementos de Filosofia Moral, pp.33-54
Questões:
1- Em que consiste a tese do
relativismo cultural?
2- Que argumentos apresenta o autor
contra o relativismo cultural?
3- Que pensa o autor sobre as
diferenças culturais que sustentam a defesa do relativismo cultural?
4- O autor sugere que há possibilidade
de encontrar valores transubjectivos?
5- Que aspectos positivos descobre o
autor do texto no relativismo cultural?
Sem comentários:
Enviar um comentário