Por diversas vezes sou obrigado a escrever duas ou três linhas sobre este espaço, o FES. Surgem nessas vezes comentários – sempre anónimos – reactivos em relação a coisas que escrevo. O último deles refere-se ao post “Atirar matéria como quem atira sacos de cimento”. Um leitor, entusiasmado pelo anonimato nas caixas de comentário, não hesitou em acusar-me que cuspo no próprio prato em que como. Vamos lá esclarecer dois ou três pontos, daqueles que procura não a paz do consenso, mas a reposição clara de alguns aspectos interessantes:
1 – Qualquer pessoa é livre de escrever o que quiser no blog que quiser, assinando ou não. Tal como os autores dos blogues são livres de apagar comentários, inventar outros, insultar os comentadores de forma anónima para proteger a autoria do blog, etc. No meu blog há uma situação de justiça que merece ser reposta e estou cansado de abordar este assunto, o que me faz querer que muitos dos comentadores não acompanham o blog e atiram uns tiros sem ainda conhecer o alvo. Quando eu faço posts ou comentários, revelo a minha identidade. Um anónimo quando comenta está a usar o espaço de interacção e comunicação (estar com) do blog. É suposto que qualquer comentador provoque uma contra resposta. Acontece que quem se me dirige sabe a identidade de quem está a conversar. Basta uma pesquisa no Google e passa logo a saber quem sou, onde trabalho, quantos anos tenho, etc. Mas eu não conheço nada do comentador. É esta situação justa? Não me parece. Posso estar a falar com alguém que se faz passar por meu amigo e está simplesmente a enganar-me. De modo que a regra que se impõe é não responder a comentários anónimos, principalmente quando esses não passam de ataques pessoais e não movidos por motivos de argumentação racional dado tratar-se de um blogue de divulgação de filosofia.
2 – O meu leitor acusa-me de cuspir no prato que como porque critico alguns aspectos do trabalho de um professor que não conheço, ou só conheço indirectamente através de uma explicação que dei a um aluno e apercebi-me de alguns erros. E apercebi-me também de uma má prática de ensino que produz poucos ou nenhuns resultados numa disciplina como filosofia, que consiste em dar a matéria como quem atira sacos de cimento. Para o meu leitor isto parece constituir uma ofensa. Eu devia era estar caladinho e não me meter com a profissão dos outros que é uma coisa séria, é o seu ganha-pão. Mas não seria esta uma boa razão para melhorarmos na nossa profissão, ainda por cima quando já não temos desculpas para determinados erros?
Vamos então analisar a situação fazendo uma simulação:
Tanto o professor X como o professor Y têm a mesma formação, tirada na mesma universidade e mais ou menos a mesma experiência. Ambos dominam a língua materna e mais nenhuma. Ambos ensinam dentro da mesma realidade social e cultural. Ou seja, nenhum deles tem mais ferramentas que outro para poder ser melhor professor. Gozam de boa saúde e têm um horário semelhante.
O professor X
O professor X estuda somente pelo manual adoptado na sua escola e, em regra, perde duas horas semanais a preparar as aulas. Basicamente o que varia nas suas aulas são as estratégias. Umas vezes os alunos trabalham em grupo, outras individualmente. Fazem dois testes por período com 5 perguntas de desenvolvimento cada teste. O professor X acha-se cientificamente competente para avaliar manuais, mas só os analisou na reunião com os colegas para adopção de manual. Votou no manual que recorria a mais esquemas, que tinha mais trabalhos para casa e que oferecia um dvd e uma pasta mais uma esferográfica. Quando o professor X pede um trabalho escrito aos seus alunos, somente lhes dá os temas, a estrutura do trabalho e o número de páginas do mesmo.
O professor Y
Este professor tem o hábito de comprar livros de filosofia. Já não compra a última edição do Ser e Tempo, nem da Crítica da Razão Pura, mas compra as introduções à filosofia que vão aparecendo no mercado. Passa muito do seu tempo abraçado à disciplina que ensina e é nesses livros que aprofunda conhecimentos para as suas aulas. Sempre que necessário, o professor Y compra livros de outras áreas para compreender a relação da sua disciplina com outras áreas do saber. O professor Y tem uma preocupação especial com o manual com que vai trabalhar. Quer um manual actualizado, sem erros científicos, escrito de forma clara para os alunos. Mas não dá grande valor aos extras já que se o manual for competente tal é quanto basta para que os seus alunos tenham uma boa ferramenta para aprender. Uma vez que o professor Y é preocupado com os manuais, normalmente, na altura da adopção, tem um cuidado muito grande em pelo menos ler um ou dois capítulos, daqueles onde é costume aparecer erros, dos manuais que vai recebendo e a partir daí construir uma ideia segura da melhor adopção. Quando o professor Y pede um trabalho aos alunos tem a preocupação de lhes fornecer bibliografia (que conhece porque leu os livros) e ensinar como se escreve um trabalho em filosofia, o ensaio. Os testes do professor Y não exigem ao aluno que seja grande escritor, mas que pense por si mesmo e com correcção.
Ambos os professores auferem das mesmas condições profissionais. A minha questão é: quem é que cospe no prato que come? E, já agora, como avaliar estes professores?
Há ainda uma outra questão que me cabe fazer: parece-me que seria eticamente incorrecto da minha parte avaliar globalmente o trabalho do professor X e do Y. É justo perceber que ambos os professores reúnem qualidades e que tanto um como outro dão boas e más aulas aos seus alunos. Não se trata disso. Independentemente das capacidades de cada um dos professores, a motivação pode, por infinitas razões, variar. Um pode estar mais motivado que outro. E temos sempre o ponto de fuga que consiste em culpabilizar o sistema que não é motivador para todos os professores.
Mas há um aspecto que gostaria de lançar à discussão: o Ministério da Educação português tem dado uma grande liberdade aos professores de filosofia para desenvolverem a disciplina. Quem faz os programas da disciplina são profissionais da filosofia. Quem faz os manuais também são professores de filosofia. Quem tem então a obrigação de melhorar a disciplina, tornando-a não só mais atractiva como pertinente para os dias que correm? Gostaria também que ficasse claro que a disciplina de filosofia como disciplina integrante dos cursos gerais tem melhorado muito nos últimos anos. Hoje há mais rigor, professores mais preparados que há 10 anos atrás. Uma das razões que aponto para este sucesso é que os profissionais da disciplina estão menos isolados em termos de formação, em grande parte graças às tecnologias de comunicação. Todos os dias centenas de professores de filosofia aprendem uns com os outros nos fóruns específicos da disciplina, nos blogs, etc. O exemplo do FES é curioso. O blog existe há pelo menos 5 anos. Recordo na altura da existência de meia dúzia de espaços on line dedicados ao ensino da filosofia. Hoje imensos professores publicam blogs, recolhem materiais e fazem um esforço notável para melhorar o trabalho com a disciplina. Um dos aspectos que mais me tem surpreendido é a explosão da blogosfera no ensino da filosofia. E muitos desses blogs tem um interesse assinalável. Tudo isto, sem quaisquer estudo de prova, faz-me pensar que as coisas vão mudando com melhorias assinaláveis. É por essa razão que não hesito em denunciar más práticas, erros, não para humilhar a disciplina, não para cuspir no prato em que como, mas precisamente para produzir o efeito contrário, para melhorar a disciplina e comer num prato lavado sem ter de cuspir lá para dentro.
É por isso também que me parece que o meu leitor tirou uma conclusão precipitada. O trabalho modesto que vou fazendo no FES não é para denegrir os colegas, para me elevar no meio dos meus colegas. A ideia não é a da brejeirice. Caso contrário como justificar as centenas de posts que ao longo destes anos tenho escrito para salientar as boas práticas no ensino da disciplina?
Mas o ponto de partida talvez explique a diferença de atitudes: como eu, muitos colegas reconhecem que a formação superior não foi a melhor, que teve momentos realmente maus e que temos um esforço suplementar para superar defeitos de fabrico. Reconheço que nem sempre é psicologicamente confortável reconhecer este ponto de partida.
5 comentários:
Boa noite.
A questão que lhe coloco pode parecer um bocado ''parva'', assim dizendo, mas a verdade é que me está a deixar realmente muito confusa. Existe o libertismo moderado? Já li isso em vários sites, mas no meu manual (10ºano) não fala nada sobre isso...
Aguardo a V/resposta.
Obrigada,
Ana Maria Sampaio
10ºano
Olá Ana,
O manual fala das teses que estão na base. Já viste se o manual falasse em todas as teses? Teria de ter umas mil páginas!
O que te interessa saber, para já, é que o libertismo é uma tese incompatibilista. Mas há certamente filósofos que defendem um libertarismo mais moderado. Na teses filosóficas é como no futebol: existem benfiquistas radicais e uns moderados e dentro dos moderados uns ainda são mais que outros. É um pouco como as teorias e as teses: umas são mais radicais e outras mais moderadas, ao ponto até de nem se perceber muito bem.
Espero ter ajudado
Outra coisa Ana: vamos supor que não existe uma só teoria sobre o libertismo moderado. Essa não é razão para que tal tese não possa vir a existir. Desde que algum filósofo a pense e apresente com bons argumento pode defender-se racionalmente qualquer tese. Se assim não fosse as ideias não progrediam.
pois, bem dito sim sr. =)
muito obrigada!
continuaçao de bom trabalho
É verdade que o trabalho do ensino da Filosofia ganhou com a existência deste tipo de espaços para debater ideias e para espreitar o que os outros vão fazendo, assim vamos detectando erros ou falhas no nosso trabalho e podemos utilizar materiais elaborados por outros professores, essa interacção é benéfica para o ensino. Comentários ofensivos ao abrigo do anonimato tivemos e muitos ao ponto de termos colocado moderação nos comentários o que teve os seus custos mas evitou muito lixo. Saudações!
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