Maria Filomena Molder foi minha professora de Estética no 4º ano de licenciatura em Filosofia, na FCSH, Universidade Nova de Lisboa, onde é docente. Uma pessoa invulgar e inteligente, mas com uma visão da filosofia que sempre me pareceu muito discutível. Aliás, como quase todas. Deu uma entrevista ao Jornal Expresso desta semana. As respostas dadas ao entrevistador são mais um tratado de literatura pós moderna do que de filosofia. Mas há duas passagens no que diz Molder que merecem algum reparo. A determinado momento Molder refere alguns bons autores de filosofia em Portugal com obras publicadas, mas,
“(…)só que não têm difusão pública, devido ao exercício de esquecimento do que seja a cultura que se instalou nos jornais e se propagou nas livrarias. Portugal, nesse aspeto, está quase a chegar à estaca zero. Só falta a censura. A filosofia, ainda mais que a literatura, perdeu a sua audibilidade.”
O que encontro de estranho nesta afirmação é que se fica com a impressão que houve um tempo em Portugal em que a filosofia era audível (no sentido de ser lida, perceptível e vendível). Mas qual era esse tempo? Na verdade, não parece que tenha existido um tempo em que se publicava, escrevia e lia mais filosofia que este. Mas para justificar tal seria necessário um estudo, mais que uma impressão. Acontece que a minha impressão é diferente da de Molder. Por essa razão talvez há algo nesta afirmação que me perturba mais que este aspecto. É que fica-se com a ideia que a culpa disto tudo, a culpa da filosofia não se fazer ouvir, afinal, é dos jornais e das livrarias. Parece que há uma qualquer teoria da conspiração capitalista para vender livros mais comerciais e menos culturais. Acontece que Molder poderia questionar se um livro pode ser culturalmente sofisticado e um sucesso de vendas. Por que não? Isso é o que acontece frequentemente no mundo anglo saxónico, com bons filósofos a publicarem bons livros, que ao mesmo tempo vendem bem, são muito lidos e citados. Talvez a culpa não seja dos jornais e das livrarias, mas da fraca produção filosófica fora da especialidade em Portugal.
Mais tarde, na entrevista, Molder refere:
“Ultimamente tenho andado a pensar muito porque é que não há hoje nenhum grande filósofo.”
Vamos lá tentar interpretar isto da melhor forma. Será que no tempo de Sócrates, Descartes ou Kant as pessoas sabiam que estavam perante grandes filósofos? Provavelmente não. Neste sentido nunca sabemos no presente se há algum grande filósofo e a afirmação de Molder perde o sentido. Mas há outra interpretação a fazer. Molder, que se diz especialista em Walter Benjamim e Goethe (e que eu atesto enquanto seu ex aluno já que tive de estudar textos destes autores mesmo sem ter percebido porque o fazia em aulas de estética e filosofia da arte), que não foram filósofos, será que anda distraída dos bons filósofos que temos hoje em dia? Desde Daniel Dennett a Peter Singer. De Simon Blackburne a Richard Swinburne. De Anthony Kenny a Peter Kivy. São dezenas e dezenas de nomes, de gente que está viva, que faz boa filosofia, que contribui de modo decisivo para o desenvolvimento de argumentos centrais para resolver problemas filosóficos. Molder ignora tudo isto, provavelmente, digo, devido à sua formação filosófica.
Resolvi comentar a entrevista de Filomena Molder não por qualquer questão pessoal. Fui seu aluno e mantenho-lhe grande respeito pela pessoa que conheci, uma pessoa inteligente e com um grande gosto pelas matérias que ensina. Uma pessoa cheia de indiscutíveis méritos. Comento a sua entrevista porque Filomena Molder tem todos os tiques dos intelectuais portugueses, a choraminguice habitual. Ninguém tem mais culpa se a filosofia não tem a visibilidade merecida senão eles próprios. E a maioria deles escrevem e publicam livros só lidos no círculo dos amigos e colegas, mas são incapazes de escrever um livro que seja para um público mais geral, para partilhar o seu saber com quem não o sabe, com os não especialistas. Verdadeiramente incapazes de traduzir o seu trabalho numa linguagem ao emsmo tempo clara, perceptível e rigorosa. E é isto também que nos permite compreender que este tempo não é mais nem menos fechado à publicação e edição de livros de filosofia. Simplesmente o trabalho está por fazer e a filosofia move-se num circuito demasiado fechado. O pretensiosismo intelectual de Molder e de muitos académicos portugueses na filosofia é que tira definitivamente o interesse das pessoas pela filosofia e não as livrarias ou as editoras. Enquanto estes equívocos continuarem (e não há sinais de auto crítica nos académicos neste sentido) as coisas pouco ou nada mudarão.
7 comentários:
Ultimamente tem andado a pensar muito sobre o assunto, diz. E já chegou a alguma conclusão?
Ó Rolando, atestas que MFM é especialista em Benjamin porque levava textos dele para estudarem nas aulas? :-) Então, se eu começar a levar textos de Platão para as aulas, também passo a ser especialista em Platão?
Pois eu expressei-me mesmo mal. o que eu atesto é que ela se diz especialista.
Descobri este blog hoje e já estou a gostar.
Como amantíssima da Filosofia e muito mais ignorante dela ainda, continuo, insistentemente, a tentar conhece-la, estuda-la.Puro interesse intelectual.Não podia estar mais de acordo com a sua análise sobre a entrevista à sua ex-professora.Recentemente candidata ao ingresso no Ensino Superior, escolhi, está bom de ver, Filosofia, como uma das disciplinas.
Se me permitir, gostaria, em privado, de lhe enviar uma carta que escrevi de rajada, madrugada dentro, à minha professora de Filosofia, exactamente por causa da ignorância explicita e implícita que revelou, ao criticar implacavelmente os seus alunos de Filosofia, pelas sua ingénuas manifestações de paixão pelo saber filosófico.Não soube aproveitar esta paixão, esta apetência, ainda que ingénua; não foi capaz de reformular com os seus alunos sobre O QUE É A FILOSOFIA, sem danificar a auto-estima dos mesmos, atirando para desistência maciça potenciais amantes verdadeiros da Filosofia.diz-se que "De médico e de louco, todos temos um pouco".Acrescento que de Filósofo e de louco, todos temos um pouco", também.
Há que não desperdiçar esta apetência inata para a Filosofia, a despeito de, na maioria das vezes, o nosso primeiro encontro com ela como disciplina, ser, se não desastroso, pelo menos feito com muita desilusão.Como Professora do 1º ciclo, e dedicando muita atenção especialmente à pedagogia e didáctica das disciplinas na sua relação dialéctica com os alunos específicos que tenho à minha frente, surpreendeu-me que, nos tempos actuais, ainda exista tanta ignorância nestas matérias, quando se trata do ensino desta disciplina.
Vou continuar a segui-lo.
Obrigada.Fazem falta mais sites como o seu.Da discussão nasce a luz, não é mesmo?
Abraço académico
MVMcampos
Olá MVM Campos,
Antes de tudo obrigado pelo seu testemunho. O blog existe já há uns 7 anos. recentemente tem andado muito mais parado, já que colaboro em outras publicações. Mas a ideia do blog sempre foi a de chegar precisamente às pessoas que não se relacionam directamente com o mundo da filosofia e fazer com que o interesse nelas seja despertado. Se desejar contactar-me para a tal carta, deixo o meu e-mail: rolandoa@netmadeira.com
cumprimentos e obrigada
Parabéns! Sete anos?É preciso coragem...
Foi a vontade de voltar aos bancos da escola que me colocaram na situação de "devoradora" de informação, ao meu gosto, bem entendido, neste mar em que continuamos a navegar, agora via bites.
Julgo que o valor da carta estará no sentimento colectivo, que acabei por canalizar - e espelha bem uma das grandes dificuldades do ensino desta disciplina - de espanto e desilusão que o comum cidadão, futuro "Aprendiz de Feiticeiro" sente, quando defrontado com a sua ignorância sobre a disciplina FILOSOFIA.Esta ignorância é, não raro, feita sentir com dureza e despejada sem dó nem piedade, pelo professor desta disciplina.O professor de Filosofia, como "especialista" na matéria, já vai "muito à frente" e, por isso mesmo, revela, na maior parte das vezes, impaciência,desprezo mesmo, pela ignorância na abordagem ao tema, por parte dos alunos.Há falta de humildade que só os GRANDES, capazes e sensíveis à evolução, são capazes.Dar-me-á, depois, e quando tiver tempo ( tenho paciência de esperar anos, posso dizer-lhe já, uma vez que me me vou entretendo sempre com outros assuntos)o seu feed-back.É importante que o professor de Filosofia saiba RECUAR, sempre que tem à sua frente novos alunos.É preciso paciência, criatividade e paixão por "ensinar/aprender", independentemente da idade dos alunos.Este caso, sobre o qual irei enviar-lhe a carta, refere-se a estudantes entre as idades 23 anos e cerca de 70 anos, com predominância para as idades na casa dos 30-50.
Obrigada pela sua confiança, ao partilhar o seu endereço de email.
Abraço
MariaVictória
Bem, o que diz é real. Não tenho a certeza é se essa realidade é exclusivamente da disciplina de filosofia. A diferença é que sendo a filosofia uma disciplina de carácter geral não é intuitivamente perceptível a sua utilidade como o é do português ou de falar uma língua estrangeira, isto para falar nas outras duas disciplinas teóricas da formação geral. Creio que a diferença é essa, pois se aplicar o que disse às outras disciplinas verifica-se, muitas vezes, exactamente o mesmo pois o problema que foca não é um problema do ensino da filosofia, mas um problema de cultura académica em geral.
Olá
Gosto de filosofia. Medianamente. Sem paixão, mas em constância:) descobri o blogue através do nome Filomena Molder, senhora que faltou a uma conferência em que estive presente, levando-me a procurá-la. E olhe só onde a encontrei!:); parece que a sua ausência se deveu a um inesperado dos moldes de a Molder ter caído a um poço e não ter conseguido sair a tempo da conferência (era na Gulbenkian, não estou inventando).
Quanto ao academismo...é um traço de carácter dos nossos intelectuais muitos. A filosofia é tão da vida e sobre ela. Não se entende o hermetismo de que a cercam. Será que pensam que, se seja simples e entendível é filosofia menor?
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