sábado, 3 de julho de 2010

Qual o problema de se acabar com a disciplina de filosofia?


As políticas do eduquês fortemente apoiadas pelas correntes construtivistas divulgadas pelas ciências da educação em Portugal minam o saber e o conhecimento no sistema de ensino. Assim, assistimos a uma crescente desvalorização de saberes que a linguagem do eduquês chama de “demasiados académicos” para, gradualmente, os substituir por disciplinas de conteúdos vagos sustentados pela  conversa de um ensino de competências. Neste contexto, disciplinas como História, Física ou Filosofia vêem a sua carga horária ser diminuída para em seu lugar aparecerem disciplinas disfarçadas de modernas como Cidadania e Mundo Actual, Área de Integração, Educação para a Sexualidade, etc, ao mesmo tempo que estes conteúdos são integrados nos programas de Filosofia, História, geografia, etc. Os programas de ensino são tão rasos que muitas das vezes as disciplinas só conservam o nome e pouco mais, ignorando desse modo todo um saber que levou séculos a ser construído e que sucessivas gerações de jovens deixam de ter acesso ao mesmo por via do facilitismo (pensa-se que isto é facilitar, mas isso é outra conversa). Há aqui muita coisa a discutir, mas para já queria colocar uma questão: Será que num sistema de ensino como o português ainda existe a necessidade de ensinar filosofia aos estudantes? Quais as razões que temos para pensar que sim? Ou será que nós, os profissionais da filosofia só estamos preocupados com a nossa actividade profissional e na sua manutenção? Se temos boas razões para pensar que sim, que o ensino da filosofia é essencial a qualquer sistema de ensino – ou somente ao português – por que razão o expomos e discutimos tão pouco? Acho que vale a pena pensar no que faz com que uma disciplina se torne indispensável ao ensino. E realmente tenho a ideia que este problema não é discutido nas escolas. Alguém aceitaria acabar de vez com a matemática e a língua portuguesa do sistema de ensino. Se não, o que faz então que essas disciplinas sejam mais essenciais que outras, como História ou Filosofia ou Física? Vamos discutir? Ou não?

5 comentários:

Carlos JC Silva disse...

Rolando,

É recorrente, ano após ano, a questão da utilidade e manutenção da disciplina de Filosofia nos currículos do secundário, o que não deixa de ser frustrante para quem exerce a docência da disciplina.
Penso que para além de discutir é importante agir no sentido de "influenciar" quem decide, em última análise, sobre as políticas educativas. Para lá da "dimensão racional" da questão, existem seguramente "interesses" em jogo. E para isso existem as associações e outras entidades representativas dos professores que são, do ponto de vista legal, reconhecidas como interlocutoras pelo Ministério da Educação, embora a sua competência não se esgote exclusivamente nesse âmbito.
Se é verdade que a questão da utilidade é relevante, de que falamos quando falamos em utilidade? Não correremos o risco de "embarcar" naquilo a que alguém chamava "A visão Tecnicista do Mundo" se por utilidade concebermos um certo sentido, diria, corrente do termo? Onde reside e em que consiste a utilidade da Filosofia, afinal?
Quando sou confrontado com simples questões de terminologia, como por exemplo a substituição da palavra "objectivos" por "competências", imposta por um qualquer decreto, interrogo-me sobre a subtileza da alteração. Ser "competente" remete para algo prático. O discente que reproduz laboratorialmente determinado fenómeno natural desenvolveu uma competência. Mas poder-se-à falar em "competências" em Filosofia? Esta "simples" alteração terminológica traduz, em minha opinião, uma determinada visão, uma visão Tecnicista do saber que lhe está subjacente. Deste modo "violenta" todo aquele domínio do "saber", a saber, o domínio das Humanidades/Letras, o domínio da "compreensão" por oposição ao domínio da "explicação", característico das ciências ditas exactas. Mas se persistirmos em falar em "competências", tal facto não exclui a aquisição e o domínio prévio de conhecimentos, antes pelo contrário. Como refere Guilherme Valente, no "Expresso"
"o que será uma competência em Filosofia Medieval? Só pode ser o conhecimento do pensamento dos filósofos da época e do contexto em que foi elaborado. O que exige tê-los estudado, dominar o latim, grego, história, etc.".

Carlos JC Silva

António Daniel disse...

Vou desenvolver a minha opinião a partir de duas vias: numa análise formal e material.
1.A Filosofia possui um objectivo cognitivo muito próprio e, por isso, é indissociável da lógica e da argumentação. E só a Filosofia o consegue fazer. A Matemática possui lógica, mas não consegue materializá-la no discurso. Contudo, não consigo desvincular estes factores da linguagem própria da Filosofia. E aqui reside, creio eu, uma das grandes subtilezas da disciplina. Ora, na nossa civilização é importante saber as leis da termodinâmica como é essencial saber o alcance do cogito. São inquestionáveis, creio eu, a importância destas aquisições. Ora, a questão que se coloca é se estas são pertinentes na formação de um aluno do ensino secundário. Se não forem, então a filosofia dever-se-ia inscrever no ensino superior, à semelhança do que se passa nos países anglo-saxónicos. Se forem, então considero pertinente ter filosofia no ensino secundário. Uma coisa eu sei, não é pelo facto das pessoas não quererem que se deve anular uma disciplina, o que, a fazer fé no que vai acontecendo, é uma perspectiva cada vez mais poderosa. Concluindo, se no ensino secundário se estuda Newton em Física, por que não estudar Kant em Filosofia?
2.Chamo material a uma perspectiva decorrente da actividade como professor. A Filosofia marca os alunos, negativa e positivamente. Se quisermos, marca muito, para um lado e para outro, o que revela a sua importância. As aulas de Filosofia são momentos únicos para os jovens. A partir dela, sugere-se respostas, caminhos, percursos, ideias que os nossos jovens raramente vislumbram no dia-a-dia. Mas, nem todos estão para aí virados. Nas minhas tarefas, houve muitas, demasiadas situações em que não consegui transmitir filosofia. De quem foi a responsabilidade? Se for do professor, então tem de melhorar, se for do aluno é por que acontece alguma coisa que obstacualiza a aprendizagem da filosofia. Aquilo que me parece é que as pessoas gostam de argumentar dentro de certa superficialidade. Por isso, também aqui a filosofia é necessária. A questão que se coloca é como... (se não fui claro, peço desculpa)

Carlos JC Silva disse...

... A presente proposta de reforma curricular apresentada pelo "Conselho de Escolas" deve ser entendida à luz de critérios economicistas. Junte-se à redução de carga horária proposta (que, diga-se em abono da verdade, em alguns casos justifica-se, sobretudo no 2.º e 3.º ciclos), o projecto dos "mega-agrupamentos" e obtém-se menos pessoal, docente e não só, ou seja, menos despesa. Eis encontrado o critério: reduzir despesas.
Disciplinas como Cidadania e Mundo Actual e Educação para a Sexualidade, entre outras, constituem áreas "hibridas", destinadas a professores sem horário. Por outro lado, não deixa de ser irónico O Mundo Actual e a Cidadania precisarem de um compartimento específico, como se para compreender a cidadania e o mundo actual pudéssemos abdicar das "ideias" e do passado, da análise dos "valores" na sua relação com a "cultura", em suma, do questionamento filosófico! Querer percepcionar e tornar inteligível o "Mundo Actual" como algo fixo, eterno, algo dado, resulta, a meu ver, de uma concepção errada da realidade, uma concepção nada moderna. De resto, até na idade média poderia ter havido uma disciplina de Cidadania e Mundo Actual nos mosteiros!
Em jeito de conclusão, termino deixando aqui um apelo às entidades que nos representam, sejam analíticos ou hermenêuticos, liberais ou conservadores: "Filósofos de Portugal, uni-vos", a bem da cidadania, do mundo actual e do futuro!

Carlos JC Silva

Rolando Almeida disse...

Daniel,
Eu até vejo as coisas mais simples. Se a escola deve transmitir conhecimentos básicos a todos os seres humanos então faz todo o sentido que exista filosofia, já que a filosofia é a disciplina que mais directamente se relaciona com as preocupações mais elementares de qualquer ser humano. E a escola serve para isso também, ajudar as pessoas a pensar de forma organizada e com cultura os problemas do mundo.
Carlos,
Estou de acordo com os teus argumentos, mas queria chamar a atenção de um que me pode induzir em erros. Se um de nós estiver aflito no orçamento pessoal, vai ter de tomar medidas economicistas. Vamos por exemplo pensar que se corta na despesa da alimentação, em vez de se cortar na opção de trocar de carro. Provavelmente esta medida acarreta resultados imediatos. Com o mesmo orçamento mantemo-nos com carro e alimentados, se bem que a qualidade da alimentação tenha sofrido uma quebra. Por exemplo, deixamos de comprar leite já que o consideramos muito caro. Nesta situação estamos a correr riscos futuros maiores, já que a baixa de qualidade da alimentação implica riscos maiores futuros para a saúde. Podemos, por exemplo, devido a uma má alimentação, pagar uma factura muito maior no futuro. O que não podemos é deixar de usar o critério economicista para poder continuar a ver. Ora, se o eventual desaparecimento da filosofia obedece a critérios economicistas, a verdade é que não vai certamente produzir melhores resultados futuros: não vamos ter melhores resultados por ensinar área de integração ou CMA. De um modo muito geral, um dos factores que faz com que muitos países não aguentem as suas economias num mundo global é que não estão culturalmente preparados para as enfrentar. É certo e sabido que o investimento em educação de qualidade é a via mais segura para aguentar todas as mutações económicas. Ensinar filosofia dá prejuízo ao país? É claro que não que não, não dá. O que dá prejuízo ao país é ensinar má filosofia, sem formação contínua de qualidade, sem exames que possam aferir melhor resultados, sem um programa base e bem estruturado. O que dá lucro ao país é ensinar filosofia a jovens estudantes que depois saibam submeter-se a exames sem problemas e sem grandes taxas de chumbos. Claro que o problema é mesmo este: acaba-se com a maioria dos exames, facilita-se nos existentes, emagrece-se os currículos de conteúdos considerados difíceis ( e aqui pode entrar a filosofia) e o resultado é toda a gente iludida e feliz: os alunos porque passam de ano, os pais porque os filhos passam de ano, os professores porque pensam que lhes dá menos trabalho preparar aulas e os governos porque baixam a estatística do chumbo. Aqui é que está a marosca arquitectada. Ora o desafio de uma escola qualquer é exactamente este, mas com um processo oposto: é garantir este êxito com qualidade, a ensinar com rigor. Para finalizar, pessoalmente acho que os alunos em geral, mesmo os tendencialmente mais fracos e problemáticos, gostam mais de filosofia do que de CMA. Os alunos de CEF, pela experiência que tenho, parece que tanto lhes faz já que o que eles não gostam é da escola, independentemente se esta lhes ensina filosofia ou a apanha do caracol. O CEF é uma realidade à parte, creio, com problemas específicos e a necessitar de outra análise e, para esses cursos, tanto vale tirar a filosofia como outra coisa qualquer.

Nan disse...

Embora considere certa a máxima que diz que não devemos atribuir à maldade oque pode ser atribuído à estupidez pura e simples (será a estupidez simples e/ou pura alguma vez?), começo a achar que as sucesivas «reformas» de que o nosso ensino tem sido vítima somam estupidez a mais para não começar a parecer propositada. A menorização da Filosofia, da História, da Literatura, da Geografia, do Latim, constituem outros tantos ataques à escola que ensina a pensar, a reflectir, a relacionar, a situar-se no mundo e na História. Correndo o risco de soar como quem vê mosquitos na outra banda, parece-me que se pretende impedir, a todo o custo (reduzindo custos...), que quem passa pelo ensino público aprenda seja o que for. Os privilegiados terão outras maneiras de aprender. A massa anónima até é bom que não aprenda muito...