quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A Arte de Pensar, Como um Manual Mudou as Minhas Aulas de Filosofia (o fim da Plátano/Didáctica)

                                (foto da 1ª edição do Arte de Pensar, que ainda conservo em casa)


Nota prévia sobre o tom

Antes de mais, um alerta: este texto tem marca pessoal assumida. Vai na primeira pessoa, com a franqueza de quem fala da própria experiência e do seu percurso. O objetivo não é impor verdades, mas partilhar um caminho — com entusiasmos, equívocos e mudanças de perspetiva.


O regresso ao ensino regular (2005)

Por volta de 2005 regressei ao ensino regular, depois de quatro anos no ensino profissional numa escola privada. Não esperava tanta mudança. Foi o ano das conhecidas e muito discutidas OLPF – Orientações de Lecionação do Programa de Filosofia.

Durante muitos anos vigorou um programa de Filosofia de carácter temático, sem conteúdos claramente definidos. Ora, é difícil ter um exame nacional rigoroso sem um corpus de conteúdos. Daí a urgência de um documento paralelo e vinculativo que desse consistência ao que seria avaliado: as OLPF.

Para a maioria dos professores — e para mim — muitos conteúdos eram novidade.


O desencontro com os manuais

Fui colocado numa escola pública e, ao chegar, percebi rapidamente o problema: o manual adotado não acompanhava as OLPF. Tornou-se evidente que não conseguiria trabalhar com ele.

Na altura falava-se bastante de “educação centrada no aluno”. Alguns manuais levaram o mote tão à letra que se transformaram em reflexões superficiais, quase conversas de café. Mesmo sem OLPF, já era estranho trabalhar com materiais assim: muita coleção de textos, pouca filosofia, salvo honrosas exceções.


Um computador na biblioteca, disquetes e o Finisterra

Volto uns anos atrás. Quando foi instalado um computador com internet na biblioteca (recordo-o como iniciativa do Ministério da Educação e Ciência), dava eu aulas em Lamego. À noite, nos intervalos, refugiava-me na biblioteca a encher disquetes com textos. Foi assim que encontrei o nome de Desidério Murcho, no Finisterra. Os seus textos eram críticos — como tantos outros —, mas de outra natureza: sólidos, estruturados, com a fundamentação que me faltava ver noutros lugares. Ainda estávamos nos anos 90. Falava de ensino e também de música (essa parte, confesso, nunca me convenceu), mas o que me prendeu foi a crítica bem armada ao ensino da Filosofia.


Materiais próprios, o blogue e um conselho

Regresso a 2005: OLPF numa mão, manual desadequado na outra. Percebi que teria de produzir materiais. Nasceu assim este blogue (primeiro na plataforma SAPO) para distribuir textos aos alunos numa altura em que até as fotocópias tinham limitações.

Telefonei a um amigo, autor de manuais. A recomendação foi direta:

“Deita os manuais ao lixo, arranja A Arte de Pensar da Didática/Plátano e trabalha com ele e com as OLPF. É o único em consonância.”

Escrevi à editora a pedir o manual. Responderam que o teria de comprar (com desconto), por não estar adotado na minha escola. Dei uma resposta dura, alinhada com a “teoria da suspeita” que circulava: haveria uma conspiração entre a Plátano e o Ministério para que o único manual conforme às OLPF fosse o deles. Vistas as coisas hoje, retenho duas notas: (1) foi uma má cartada, de facto; (2) é muito difícil mudar o que está instalado sem “golpes de estado”.

Dias depois, encontrei o manual A Arte de Pensar esquecido num armário da escola e levei-o para casa. Nem reparei que um dos autores era Desidério Murcho. Fui com ele para casa revoltado: era, afinal, “o livro dos conspiradores”, dos “traidores do sistema” — e traidores não se perdoam (mesmo quando o sistema é mau). Hoje sei que um manual que vende bem é negócio; e o negócio, muitas vezes, corrompe o espírito da coisa. Mais tarde, ao envolver-me na conceção de um manual, vi com os meus olhos o jogo que há pelo meio. Seria essa a intenção dos autores do Arte, uma artimanha para ganhar dinheiro com a conspiração? Pois, mas aqui o dinheiro era bem ganho, pois há mais história para contar.


A noite em que li um manual de enfiada

Chegada a hora de deitar, peguei no A Arte de Pensar. A experiência não foi a habitual. Os manuais que conhecia eram compilações desconexas, aborrecidas, sem fio condutor. Aqui encontrei clareza, coerência, ligação entre as matérias. Li o volume do 10.º ano de enfiada. Adormeci a pensar: “Se eu fosse aluno, era assim que queria aprender.”


Analítica, preconceitos e aprendizagem

Nas aulas de Epistemologia do 2.º ano do curso tinha ouvido qualquer coisa sobre filosofia analítica. Recordo o desdém com que era apresentada — ironia incluída. Eu próprio herdei esse preconceito: encarava a filosofia analítica como uma simplificação “inglesa” e confundia-a, sem qualquer cerimónia, com o positivismo lógico. Usava a mesma ironia fácil que fica mal a quem se dedica ao saber: ridicularizar o falhanço. É humano, mas pouco elegante; o conhecimento progride muito por erros. Se ignorar isto já não é aceitável no senso comum, costuma ser fatal quando lidamos com o saber e a ciência. O manual ajudou-me a desfazer caricaturas. Não converti a fé, corrigi o mapa que me orientava.


O blogue e o eco inesperado

Nesse ano surgiram novos manuais para adoção (creio que para o 11.º ano). Comecei a escrever apaixonadamente sobre eles — e, não poucas vezes, a desancar. Para meu espanto, o blogue passou a registar 300 a 600 visitas diárias. Chegaram telefonemas, emails, comentários. 

“Tivemos em conta as tuas análises na adoção do manual.”, escreveram muitos.

Havia sede de crítica estruturada. Nem tudo foram flores: apareceram inimizades, anónimos a denunciar “mais um lacaio do Desidério”, “o analítico da Madeira” e, pior, autores que não apreciaram as críticas. Uns foram cordiais; outros vingativos. A instituição foi, talvez, a mais dura: dividiu-se entre “analíticos” e os da “filosofia verdadeira” — aquela em que muitos, como eu, fomos formatados.

Com o tempo, iniciou-se um projeto meu para um manual que ainda está no mercado (mas já sem a minha autoria). E, apesar de tudo, mantenho este ponto essencial: nunca me interessou se a filosofia é analítica ou não analítica (ou “paralítica”, como muitas vezes eu próprio referi). Interessa-me o que funciona com os alunos. O modelo inaugurado com as OLPF e com A Arte de Pensar funcionava — e, em geral, funciona até melhor. Hoje acrescento uma reserva: qualquer modelo funciona se o professor for verdadeiramente apaixonado pelo que faz.


Uma revolução (a boa)

Em trinta anos de ensino de Filosofia (com a interrupção de quatro), esta foi a única boa revolução que vi. Surgiu quando se questionava o lugar da disciplina no currículo, com propostas para a tornar opcional. Vieram milhares de discussões (muitas infantis) e ódios pessoais que a internet ajudou a mascarar, amplificar e punir. Não sei se a causalidade se comprova, mas deixou-se de falar em acabar com a disciplina e recuperou-se dignidade. Paradoxalmente, ainda hoje há quem acuse a disciplina de ter sido “esvaziada de conteúdos” — quando, em 2005, o vazio era precisamente o problema.


2025: fecho da Plátano e balanço

Este ano de 2025 trouxe a notícia do fecho da Plátano. Desde 2005 e até há pouco tempo desenvolvi algum trabalho com o Desidério Murcho. Tive de refazer aprendizagens: ler autores novos, reler clássicos com outro olhar, estudar lógica ao ponto de ajudar colegas com formação na área. O Desidério foi um excelente professor, sem nunca me cobrar nada. Um dia disse-me, a propósito do meu email inflamado que enviei ao editor:

“Ele não tem razão, mas está aqui um professor interessado em aprender e vale a pena responder-lhe.”

Tenho gratidão por isso. As aulas que hoje dou nada têm a ver com as de antes desta revolução provocada — imagine-se — por um manual.

Quanto ao futuro, não faço ideia. Não sei se haverá continuadores desta linha, nem como será o futuro dos manuais e do ensino da Filosofia. Muitos dos nossos manuais tem algo do Arte de Pensar e são também por isso, melhores. Esqueceremos depressa? Ou a revolução ficou para durar?

Sei apenas isto: para mim, e para muitos alunos, a Filosofia deixou de ser um amontoado de textos e passou a ser, de facto, uma arte de pensar.

Sem comentários: