A medida para avaliar a aprendizagem dos alunos é a
classificação final. Supostamente o chumbo permite, em teoria, repetir as
aprendizagens para que estas se revelem eficazes. Vou admitir que este
princípio está correto. É assim que aprendemos as tarefas mais básicas desde
pequenos. Mas a realidade nas escolas parece mostrar outros indicadores, a
saber, que o chumbo muitas das vezes, senão mesmo na maioria, não resolve os
problemas de aprendizagem e chega a agravá-los. Assim nasce a discussão entre
os que defendem o chumbo e os que, na outra margem, defendem que o chumbo só em
casos excecionais deve ser aplicado. Vou aqui analisar, não de forma exaustiva,
apenas um argumento para cada lado da discussão.
Argumento a favor do
chumbo – o argumento do laxismo
Este argumento baseia-se no premissa de que passar alunos sem
saber produz uma atitude de laxismo da parte dos mesmos, pelo que é de concluir
que os alunos devem chumbar. O argumento formalizado ficaria assim:
(p1) Se passarmos os alunos sem saber, eles vão achar que a
escola não passa de um lugar de lazer
(p2) mas a escola não é somente um lugar de lazer
(c) Logo, não se deve passar alunos sem saber
Este parece ser o principal argumento contra o chumbo.
Acontece que as premissas são muitíssimo discutíveis, o que faz com que o
argumento, apesar de ser logicamente válido, daí não se segue que seja bom,
isto se conseguirmos mostrar que pelo menos uma das premissas é falsa. Ao mesmo
tempo as premissas parecem conter algum elemento de verdade. Resta, portanto,
questionar se podemos instituir o chumbo como medida de aprendizagem, apenas
com meias verdades? Mas como mostrar que as premissas são falsas? A (p1) é
parcialmente falsa se considerarmos que a condição de aprendizagem de um aluno
não depende apenas do seu esforço individual. Sou tentado a defender que o
esforço será sempre o melhor meio para obter resultados e que sem ele,
resultado algum será meritório se for positivo. No entanto, de que depende,
afinal, o sucesso de um aluno? Depende, como sabemos hoje, de um conjunto de fatores
sociais, económicos e eventualmente também biológicos. Acontece que alunos mais
jovens parecem não ser de todo responsáveis pelo meio social em que vivem, pela
sua própria biologia e também pela sua condição económica. Se isto for verdade,
estamos a chumbar alunos, não em detrimento da sua responsabilidade ou do seu
laxismo, mas por fatores que ele não domina de todo. Será isso justo? Neste
caso, o que a escola indica ao aluno não é que ele não seja capaz por si mesmo,
mas que aquilo que a escola lhe pede, não está em conformidade com o seu
contexto. Mas como pode o aluno mudar o seu contexto? A verdade é que não pode
e somente um número muito reduzido de alunos vão conseguir ultrapassar as
dificuldades contextuais. Nesse caso a escola falha o seu objetivo, que é fazer
com que aqueles que não possuem meios de aprendizagem venham a obtê-los na
escola. E, por conseguinte, a escola acentua as assimetrias sociais e
económicas. Parece que nesta condição os alunos apenas ingressam na escola para
que esta lhes passe um certificado pela sua condição social e biológica da qual
não são grandemente responsáveis.
A (p2) parece ser menos problemática, ainda que o conceito de
lazer possa ser discutível. Mas não me parece necessário entrar por aí. Creio
ter mostrado as insuficiências do argumento apenas derrotando a (p1).
Argumento contra o
chumbo – o argumento da ineficácia
O argumento principal contra o chumbo baseia-se na premissa
de que chumbar não produz melhores efeitos, isto é, que a esmagadora maioria
dos alunos que chumbam, não revelam futuramente melhores resultados por terem
chumbado. Assim, poderíamos formalizar o argumento mais ou menos deste modo:
(p1) se chumbar alunos é eficaz então os alunos que chumbam
produzem melhores resultados
(p2) mas os alunos que chumbam não produzem melhores
resultados
(c) logo, chumbar alunos é ineficaz
Mais uma vez, formalmente o argumento é válido. Segue-se que,
se as premissas forem verdadeiras, a conclusão também o será. Mas serão as
premissas verdadeiras? Já mostramos na análise do argumento a favor do chumbo
que os dados têm revelado que chumbar não produz melhores resultados. E se tal
for verdadeiro (não possuo dados concretos para analisar com rigor científico o
valor de verdade da premissa), isto é, se for verdade que chumbar alunos não
produz melhores resultados, então, racionalmente, temos de procurar outras
respostas como medidas de aprendizagem. E onde é que elas estão? Na minha
opinião, estas respostas residem em dois fatores principais:
1.
Programas de ensino têm de ser
reformados – os
programas de ensino, em regra, têm uma página de atividades e estratégias de
ensino para cada 10 de conteúdos. Ora, isto transforma a esmagadora maioria das
aulas numa espécie de “debitadora de sabedoria”. O que é que isto quer dizer?
Se o professor se vê a braços com um extenso programa de conteúdos, cheio de
pormenores, a sua preocupação central será o cumprimento do programa,
ensinando-o com a maior correção possível. Talvez por isso em 20 anos de ensino
tenha ouvido muito na sala de professores coisas como “em que parte do programa
vais?”. Mas raramente ou mesmo nunca ouvi qualquer coisa como “os teus alunos
estão a aprender o que tens para lhes ensinar?”. Isto acontece precisamente na
medida em que a confiança no ensino é depositada no que o professor tem de
ensinar e não tanto no modo como o aluno aprende. O aluno passa a ser muito
mais passivo na sua aprendizagem. As recentes reclamações de associações de
professores de matemática em relação aos programas parece vir neste sentido. Ou
seja, muitos conteúdos para ensinar, pouco tempo para aprender. A forma mais
simples e economicamente mais favorável de resolver isto é inverter a tendência
dos programas de ensino. Como? Invertendo a formula de “uma página de
estratégias para a cada 10 de conteúdos”, para “uma página de conteúdos para cada
10 de estratégias”. Isto permitiria aos professores de mais tempo para que os
alunos pratiquem o que aprendem. Ou seja, para que aprendam os conteúdos e
aprendam a aprendê-los, que é coisa raramente vista pelo menos no sistema de
ensino português. A matemática mais uma vez aparece como disciplina exemplar.
Como há muitos conteúdos a desenvolver, os alunos não chegam a praticar o
necessário nas aulas. Por isso pagam explicações privadas para que passem tempo
a fazer o que não fazem nas aulas, a praticar.
2.
Por
outro lado há também um outro fator que reforça esta minha ideia. Hoje em dia o professor já não o único meio de acesso
ao conhecimento para os alunos. A internet mudou a forma como acedemos ao
conhecimento. O que não falta são meios de aprendizagem através das novas
tecnologias. Os alunos têm acesso a
livros, resumos, testes, exames, etc. sem ter de esperar pelo professor como
única fonte de conhecimento. A autoaprendizagem é uma realidade claramente
possível nos nossos dias. Isto porque o acesso ao conhecimento é muitíssimo
mais universal. Ora, esta realidade muda o papel do professor que passa a ser
mais um orientador no modo como se aprende e não como o transmissor em
exclusividade do conhecimento. Resultado disto? Sobra mais tempo para praticar,
para treinar.
3.
As escolas precisam de mais meios – assistimos a um discurso sobre
economia que tem tanto de interessante como de paradoxal. Por todo o lado
representantes políticos e económicos defendem o empreendedorismo, que o investimento
é o fator mais determinante no sucesso de uma economia. As empresas que mais
investem são as que mais sobrevivem às intempéries económicas. Então não se
percebe a razão pela qual o discurso em ensino e educação é exatamente o
contrário, ou seja, que “fazemos mais com menos”, que “quem ensina 10 alunos
também ensina 30”, etc. Mas que investimentos precisamos mais em educação?
Principalmente o investimento no tempo que os professores dispõem para
acompanhar as aprendizagens. Os professores precisam de tempo para poderem
ponderar avaliações para além dos testes. Um professor que tenha uma média de
100 alunos e que peça um trabalho escrito de 2 páginas (no secundário, por
exemplo) fica com 200 páginas para corrigir (fora testes e todos os outros
trabalhos burocráticos). Os testes e exames são instrumentos úteis às
aprendizagens. Mas não têm de ser os mais importantes. Quando trabalhei durante
quatro anos em exclusivo numa escola profissional privada foi isso que percebi.
Os alunos não eram nem mais nem menos capazes que os outros. Mas tinham mais
sucesso, apesar de uma boa maioria ter alguma história de insucesso no ensino
regular. A diferença é que, sendo a avaliação modular, um módulo podia
avaliar-se com uma exposição oral e um outro com um teste escrito e ainda um
outro com um trabalho prático e de grupo. Por outro lado as avaliações tendiam
a ser realizadas em espaços de tempo mais curtos.
A discussão que aqui proponho está longe de ter um fim. Inclino-me
a pensar que chumbar não é a melhor resposta da escola. E isto porque de todas
as estratégias possíveis, o chumbo é aquela que melhor conheço. No sistema de
ensino português ( e provavelmente da maioria dos países) não são testadas
outras respostas ao problema do insucesso. É obvio que se levantam inúmeros
problemas quando se fala em experimentar soluções quando estamos a falar da
vida das pessoas. Mas precisamente por isso valeria a pena arriscar um pouco
mais. Isto porque acaso se descubra um dia que a figura do chumbo é inadequada,
a verdade é que passamos séculos de história a recorrer ao chumbo sem sequer
testar modelos alternativos. Quantas vidas se prejudicou? Em educação requer-se
verdade e honestidade. Mas uma e outra não vivem pacificamente sem algum risco.
Porque educar não é um lugar seguro.