Sobre o problema do acolhimento de refugiados de guerra
O problema mais discutido neste momento nas redes sociais é o
dos refugiados. Neste pequeno post vou tentar dar algumas pistas aos mais novos
para organizarem uma discussão, usando este problema como exemplo, poupando-me
ao esforço de explicar qual é o problema pressupondo que é conhecido por todos.
Há várias questões que se colocam com o problema dos refugiados. Aqui vou usar
somente uma entre todas as outras questões que se podem levantar.
Problema: Queremos saber
se devemos ou não aceitar refugiados na europa e, mais concretamente, no nosso
país.
Como resposta ao problema fiz um levantamento dos argumentos
mais utilizados na imprensa e redes sociais e que sintetizei neste quadro:
Sim, devemos acolher os refugiados
|
Não, não devemos acolher os refugiados
|
·
Temos obrigação
moral de proteger os que fogem da guerra e sofrimento
·
Há princípios
políticos registados em convenções que nos obrigam a acolher refugiados de
guerra
·
Os refugiados
não são responsáveis pela guerra e pelo que sucede no país deles
·
Quem não aceita
o acolhimento de refugiados é xenófobo e racista
|
·
Os refugiados
constituem uma ameaça pois vem de uma cultura terrorista e de violência
·
Os refugiados
não aceitam a cultura dos países de acolhimento
·
Estamos numa
situação de crise e primeiro devemos ajudar os nossos e somente após os
outros
|
É difícil estabelecer quando o problema começa a ser moral e
deixa de ser político, ou começa a ser social ou mesmo psicológico. Todos estes
campos de leitura se misturam e tomei-os aqui como um todo, embora reconheça
que torna a discussão menos clara. Quando perguntamos se temos a obrigação de
acolher refugiados, temos de questionar se essa obrigação é moral, política ou
outra. Isto é importante pois alguém pode defender que temos a obrigação moral
de os acolher, mas não política. Ou o contrário, por respeito a determinadas
convenções políticas temos a obrigação política de os acolher, mas não temos
moralmente de o fazer. Mesmo alertando para esta confusão, vale sempre a pena
dar algum caminho à discussão.
O espaço deste post não pretende analisar exaustivamente cada
um dos principais argumentos apresentados. Há muitos mais, mas estes parecem
ser os mais representativos segundo a minha experiência subjetiva de leitura). Vou
pegar apenas em cada um dos argumentos e tentar mostrar onde podem acertar e
falhar. Assim, na parte do “Sim”, pego no argumento que defende:
O Sim
“Quem não aceita o
acolhimento de refugiados é xenófobo e racista”.
O argumento pode ser formalizado logicamente de modos muito
diferentes, o que o torna mais complexo. Isto acontece pois pode-se invocar
razões diferentes para esta mesma conclusão. No entanto se a forma de um
argumento não for explicitada, não o conseguimos discutir. Vale então a pena o
esforço de mostrar a sua forma. Quem quiser mostrar a sua forma deve fazer
apenas a seguinte pergunta: o que é que me leva a defender isto? Defender sem
razões é conversa vazia, o que queremos evitar. Vamos supor que alguém defende
esta posição com base nestas premissas:
(P1) Se não aceitar os refugiados então é xenófobo
(P2) E não aceita os refugiados
(c) Logo, é xenófobo
A forma do argumento ainda assim dá uma ideia vaga do que se
está a defender, mas pelo menos temos de saber explicar a primeira premissa. Será
ela uma premissa verdadeira ou falsa? A verdade ou falsidade da premissa será
determinante para o argumento ser bom ou mau, mesmo que ele seja válido. Para saber
avaliar a premissa temos de saber as razões pelas quais alguém não aceita o
acolhimento dos refugiados e por isso aqui, parece, o «ónus da prova» teria de
recair sobre os argumentos do lado do “Não”.
Mas há aqui um aspeto a considerar também. Ser xenófobo é uma
coisa boa ou má? E se é má é sempre má? É claro que de uma forma geral ser
xenófobo é algo mau, pelo menos moralmente, mas não é difícil encontrar
pequenos contra exemplos em que ser xenófobo até pode ter bons resultados. Se avaliarmos
uma ação pelas suas consequências, pelo menos temos de admitir essa
possibilidade. O que aqui recomendo que se evite é limitar a discussão apenas pelo
recurso à acusação, pois já que ela tem uma conotação bastante negativa, em regra,
mesmo quem assume posições xenófobas, recusa ser xenófobo, um pouco como o
princípio de que “não sou racista pois os ciganos não são uma raça”. O que
quero mostrar para o proveito da discussão é que se as posições forem xenófobas
as pessoas devem assumir que o são, sem com isso recusar os argumentos, mesmo
que discordemos deles. Um argumento pode ser xenófobo e ser um bom argumento. Ou
mau. Ou seja, a qualidade do argumento não tem que ver com o ser ou não
xenófobo. Vamos supor que era verdade que todos os refugiados são terroristas. Nesse
caso ser xenófobo rejeitando o seu acolhimento podia ser uma coisa correta a
fazer. Não teríamos de acolher uma comunidade de terroristas que ameaça o bem-estar
da nossa comunidade só por não querermos ser xenófobos.
O Não
Vamos agora analisar, ainda que brevemente, um argumento de
quem defende o “Não”.
·
“Os
refugiados constituem uma ameaça pois vem de uma cultura terrorista e de
violência.”
Parece que aqui há contra exemplos evidentes a este
argumento. Os próprios europeus já estiveram no século xx nesta situação de
refugiados. Só para citar um exemplo entre centenas senão milhares, Einstein
foi para os EUA porque era judeu*. Segundo li numa das suas biografias quando
chegou a Princeton o salário oferecido era de longe superior ao esperado. Os
EUA têm hoje dos centros universitários mais sofisticados do mundo. Mas eram
moribundos antes da segunda grande guerra. E podem agradecer ao nazismo e à
guerra que condicionou milhares de pessoas ao refúgio. Não é muito difícil
imaginar que do outro lado do atlântico muitas pessoas tivessem uma péssima
impressão dos refugiados que iriam chegar, praticamente descalços e sem grandes
perspetivas de vida. Claro que nem todos os povos que emigraram para os EUA
foram tão bem sucedidos como alguns europeus. Com a emigração forçada também
chegaram a máfia italiana, judeus radicais, etc… O que concluir daqui? Provavelmente que é
certa a ideia que muitos refugiados nos vão trazer problemas. Como é certa a
ideia que muitos refugiados nos vão trazer coisas boas. Mas o que parece
manifestamente improvável é que todos os refugiados nos tragam coisas boas como
todos os refugiados nos tragam coisas más. Mas daqui também poderíamos ser
levados a outra conclusão curiosa: o acolhimento de refugiados, como acabamos
de ver, tem consequências más, mas também tem consequências boas. O mesmo então
seria de esperar do não acolhimento. Em ambos os casos, coisas boas e coisas
más. O que não parece aceitável na discussão é qualquer uma das posições mais
radicais: que só há boas consequências ou que só há más consequências. Para
referir uma má consequência: vamos supor que não aceitamos refugiados. Passados
10 anos somos invadidos pelos chineses e a maioria da nossa população terá de
fugir para salvar a vida para países como Egito ou Argélia, que, nessa altura,
até eram países seguros e pacíficos. Mas porque não os aceitamos no passado,
eles agora não nos aceitam e somos obrigados a uma situação de guerra que não
escolhemos.
Ainda um contra argumento ao argumento que defende que também
os europeus também se refugiaram nos EUA: é que os refugiados desta vaga não
tem o nível de instrução que os europeus tinham. Tem uma escolaridade baixa e
por isso não tem educação. Ora, parece que este aspeto depende mais da forma
como se faz o acolhimento do que do nível de instrução. Mesmo que seja verdade
(o que neste momento não sei dizer) tudo depende de como a integração for
feita.
Como referi mais acima, não analisei os outros argumentos da
tabela. Não interessa tanto esclarecer os argumentos ou, sequer, marcar uma
posição. Neste pequeno e modesto trabalho apenas pretendo contribuir com
algumas pistas para a condução de uma discussão aberta, racional e inteligente.
Espero ter conseguido.
Algumas regras elementares para melhorar a discussão:
1.
Evitar
a ofensa deliberada (já que se pode ofender sem ter a intenção de)
2.
Ter
algum cuidado com as fontes citadas. Há fontes para todos os gostos disfarçadas
de estudos científicos. A esmagadora maioria dos problemas tratados não são
sequer tratados cientificamente e os problemas científicos são problemas e não
respostas.
3.
Dar
especial relevância às premissas (razões) invocadas e menos às conclusões a que
se chega, pois só assim é possível um debate produtivo.
4.
Dar
a liberdade às pessoas de defender o que quiserem, mesmo que sejam ideias à
primeira vista, completamente tolas
5.
Estabelecer
um limite a partir do qual a discussão não é mais viável (em regra proponho que
esse limite se situe na ofensa direta e deliberada)
6.
Sobretudo
testar as nossas próprias ideias em vez de as querer impor aos outros. Quando defendemos
que pensamos criticamente queremos dizer que somos capazes de criticar as
nossas próprias ideias.
Dada a polémica que este problema suscita, gostaria de deixar
um apelo para sugestões e comentários onde eventualmente a exposição do
problema possa falhar, pois certamente contém muitas falhas sobre as quais sou
o único responsável.
Notas:
Para este texto a definição que usei de xenofobia é a que
aparece no dicionário Priberam e que
serve perfeitamente o propósito.
Xenofobia: aversão aos estrangeiros, ao que vem do estrangeiro
e ao que é estranho ou menos comum. Xenófobo: que ou quem detesta os
estrangeiros ou manifesta xenofobia.
A definição de Thomas Mautner, Dicionário de Filosofia, Ed.70 de racismo também é interessante
para o propósito do texto:
1.
Perspetiva baseada
na ideia, em inglês por vezes chamada racialism,
de que a humanidade está dividida em raças naturalmente distintas que podem
ser classificadas em ordens de superioridade, e que atribui a outra raça
qualidades inferiores ou perigosas. Esta perspetiva é frequentemente
associada à ideia de que nas relações com a outra raça, a inferioridade ou o
caráter perigoso desta justificam a suspensão das restrições morais
habituais.
2.
A prática de
discriminar com base na raça, com desvantagem dos membros da outra raça.
Os racistas
consideram frequentemente a outra raça como biológica, intelectual ou
moralmente inferior – mas nem sempre. Os sentimentos hostis contra os judeus,
os chineses, etc…, surgiram por vezes do medo da sua suposta superioridade
racial em determinados aspetos.
|
*A saída de Einstein para os EUA não foi inicialmente
forçada, mas ameaçada ao próprio que acabou por antecipa-la, sendo mais tarde
expulso da academia Alemã. Mesmo assim Einstein pretendia, nos EUA, fundar a
Universidade de Jerusalém e usou do seu estatuto para proteger judeus
refugiados. Fonte: Johannes Wickert, Albert Einstein, Ed. Sol90, Expresso, 2011
(Prefácio Nuno Crato).
6 comentários:
Boa noite, Rolando Almeida
Achei a sua proposta de discussão muito interessante. Importa-se
que a divulgue aos meus alunos (obviamente, indicando a autoria)?
Bom ano letivo. :)
Luísa
Claro que sim Luísa. É mesmo para isso que publiquei :-) Aproveito para desejar bom ano letivo.
Obrigada. :)
:)
:)
Enviar um comentário