Um destes dias vi o Miguel Sousa
Tavares a atacar o acordo ortográfico com o argumento do património histórico.
Acho que este argumento não é bom, mesmo que até concorde com a sua conclusão.
Vou explicar as minhas razões:
Em primeiro lugar legislar por
políticos sobre uma língua é tão estranho – ou devia ser – como se os políticos
se reunissem em assembleia para legislar sobre o que é e como se faz ciência.
Desde quando é que um acordo precisa de ser decidido pelos políticos? A língua
é um ramo do saber, não resultado de leis impostas aos falantes dessa língua.
Do mesmo modo que a ciência, uma língua evolui pelo seu uso e estudo, pela
descoberta. Mas em Portugal precisamos de regulamentos para tudo e toca lá a
fazer leis que ditem como havemos de escrever. Isto é reduzir as gramáticas e
prontuários ortográficos a meros resultados funcionais da língua, subsidiários
das leis. Um destes dias vamos substituir a disciplina de português nas escolas
para passar a ensinar aos miúdos
qualquer coisa como Direito da Língua, ou da ortografia.
O argumento do MST não colhe pois se assim
fosse teríamos de preservar na nossa cultura muitas coisas parvas somente
porque é tradição. Assim, em vez de irmos ao médico quando nos dói a barriga, fazíamos
umas rezas malucas só porque é tradição. Em vez de termos cuidado com a
instalação eléctrica da casa quando troveja, acendíamos velas e rezávamos a
deus pelo castigo que nos estava a dar atirando relâmpagos cá para baixo (a
minha avó pensava assim por mais que eu lhe tentasse explicar o ciclo da água).
De facto, o acordo não é nenhum
acordo, mas não porque uma língua é um património. Ela é, mas não deixa de ser
um saber e enquanto tal é orgânica, está sujeita a mutações. Mas essas mutações
vem do seu estudo e uso e não de acordos que, afinal de contas, nem são bem
acordos.
Todas as bibliotecas ficaram, de
repente, desactualizadas e isto vai ser assim durante umas gerações, até que se
traduzam todos os livros para o novo acordo. Ou seja, dentro da mesma cultura
linguística, ficamos durante gerações e gerações com duas ortografias. Onde está,
então, o acordo?
Já tivemos tantos acordos depois
de Eça de Queiroz (um dos exemplos consagrados da boa escrita em Português,
tomado como padrão no ensino, pelo menos no meu tempo de estudante de
secundário e creio que ainda o é hoje em dia) que praticamente não o
conseguimos ler tal como ele escreveu e temos de o traduzir para o português
pós acordos ortográficos. Portanto, temos várias ortografias dentro da mesma
língua. Pode haver quem pense que isto é mesmo assim, em resultado da evolução
de uma língua. Correcto, mas que necessidade existe de potenciar essas mudanças
com leis e impondo às pessoas um modo de escrever diferente daquele que até
aprenderam como padrão?
Depois para que um acordo fosse
mesmo um acordo seria necessário mudar toda a semântica de uma língua, enfim,
toda a cultura de uma só vez, já que palavras escritas da mesma maneira
continuam a ter significados bem diferentes em Lisboa, Rio de Janeiro ou
Luanda.
Ainda há um outro argumento que
li no pequeno livro do Malaca Casteleiro da Porto Editora, sobre o acordo. O
argumento de que o acordo aproxima a ortografia à fonética. Mas se assim fosse
por que não fazer uma fonética para cada região de Portugal já que temos tantas
fonéticas diferentes? Por exemplo, “piloto”, na madeira passava a escrever-se “pilhoto”.
“Vaca” passaria a escrever-se “Baca” no Porto e, já agora, “a gente vai”
passaria em Lisboa a expressar-se “a gente vamos”.
Finalmente, temos exemplos óbvios
de outras línguas que nunca precisaram de acordos para viverem em paz com duas
ortografias. O inglês é hoje mais que nunca a língua em que se expressa a alta
cultura do nosso tempo, desde a ciência, filosofia, tecnologia, literatura,
etc. e o inglês dos EUA tem uma ortografia com muitas diferenças do inglês de
Inglaterra e daí não se segue qualquer necessidade de acordos ortográficos.
De modo que, a meu ver, mais uma
vez o acordo só serve os interesses de pequenos grupos e o povo cai nessa
emboscada que nem tansos, com o convénio de muitos professores de português que
acham isso muito natural. O que seria natural numa cultura robusta, era as
pessoas pensarem sobre a própria língua e o seu uso ortográfico em vez de
ficarem reféns de decisões que mais não passam de bacanais de lobbys e
interesses.
São estas as razões que me fazem
pensar que o acordo ortográfico acarreta maiores confusões para a língua e não
havia necessidade de mexer no que estava bem.
Algumas das ideias que aqui defendo têm sido tornadas públicas por outras pessoas, pelo que a ideia não é ser original, mas partilhar algumas boas razões que me fazem pensar que o acordo é desnecessário.
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