quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Sobre os Milagres


David Hume deixou argumentos interessantes em relação aos milagres. Pela recente atribuição de um milagre ao Papa João Paulo II, lembrei-me desta passagem, que aqui só reproduzo uma pequena parte, de Simon Blackburn.
Hume retira uma conclusão famosa:
 
      A consequência clara é (e é uma máxima geral que merece a nossa atenção) «Que nenhum testemunho é suficiente para estabelecer um milagre, a não ser que o testemunho seja tal que a sua falsidade seja mais milagrosa do que o facto que esse testemunho procura estabelecer; e mesmo nesse caso há uma destruição mútua de argumentos, e o superior só nos dá uma certeza adequada ao grau de força que fica depois de deduzido o grau de força do inferior.» Quando uma pessoa me diz que viu um morto voltar à vida pergunto-me imediatamente se a probabilidade de esta pessoa me estar a enganar ou de estar enganada será superior à probabilidade de ter realmente acontecido o que ela relata. Comparo a probabilidade dos milagres entre si; e de acordo com a superioridade que eu descobrir pronuncio a minha decisão, rejeitando sempre o maior milagre. Se a falsidade do seu testemunho for mais milagrosa do que o acontecimento que ele relata, então, e só então, pode ele pretender guiar a minha convicção ou opinião.
 
     O argumento pode ser analisado de várias maneiras. É útil concebê-lo da seguinte maneira:
     Suponha que alguém me fala de um acontecimento a, altamente surpreendente ou improvável. De facto, seja a um acontecimento tão improvável quanto se consiga imaginar. Assim, a minha justificação para a é que «esta pessoa diz que a aconteceu». Tenho agora uma escolha entre duas hipóteses no que respeita a esta questão:
    
1) Esta pessoa diz que a aconteceu. Mas a não aconteceu.
2) Esta pessoa diz que a aconteceu. E a aconteceu.
 
     Ora, cada uma das alíneas anteriores contém um elemento surpreendente. A hipótese 1 contém uma surpresa: a pessoa disse uma falsidade. A hipótese 2 contém a surpresa de a ocorrer. Assim, tenho de pesar qual das duas é mais surpreendente ou improvável, rejeitando então «o maior milagre».
     O problema, como Hume elegantemente faz notar, é que é muito comum os testemunhos serem falsos. Há casos óbvios de mentiras deliberadas. Há casos de ilusões. Há lapsos notórios de memória. Onde há transmissão de informação há erros: tradução e compreensão erradas, pessoas que tomam metáforas como se fossem verdades literais, e assim por diante. Logo, 1 não envolve o mesmo tipo de improbabilidade do que 2. A hipótese 2 implica um milagre: um acontecimento tão improvável quanto se possa imaginar. A hipótese 1 só implica o tipo de coisa que nós sabemos que acontece em qualquer caso: as pessoas enganam-se. Logo, a barreira «nenhum testemunho é suficiente para estabelecer um milagre, a não ser que o testemunho seja tal que a sua falsidade seja mais milagrosa do que o facto que esse testemunho procura estabelecer» é um obstáculo que qualquer testemunho tem uma enorme dificuldade em ultrapassar. E mesmo assim tudo o que ganhamos é uma espécie de confusão: ficamos sem saber em que devemos acreditar, de modo que a opção sábia é suspender o juízo.
            De facto, Hume defende depois que jamais os indícios usados para estabelecer um sistema religioso estiveram perto de ultrapassar a barreira. Hume chama a atenção para várias coisas: os relatos de milagres têm tendência para ter origem em tempos e lugares remotos e bárbaros; ou para terem origem em pessoas cujas paixões estão inflamadas; ou em pessoas que têm interesse em vender uma história

Simon Blackburn, Pense, Gradiva


1 comentário:

João Carlos disse...

Deixa-me concentrar na definição conceptual de milagre: se um milagre é definido como um acontecimento tão improvável quanto se possa imaginar, ou como um acontecimento altamente improvável, mas não lógica, fisica ou metafisicamente impossível, então, apesar de, em termos relativos ou de proximidade causal, existirem naturalmente acontecimentos mais ou menos prováveis, em termos absolutos isso não é tão claro, já que todo e qualquer acontecimento depende, em última análise, de uma combinatória virtualmente infinita de outros acontecimentos, causas, condições e/ou circunstâncias que sequencialmente o determinaram, fazendo assim do milagre a regra geral. Se pensarmos qual era a probabilidade de qualquer um de nós nascer, tanto pela combinação genética única de um determinado espermatozóide com um determinado óvulo como pela probabilidade de os nossos pais nunca se terem conhecido, ou pelo facto de eles e todos os nossos antepassados terem sido possíveis e gerados exactamente pelo mesmo processo até à origem do homem como espécie; se pensarmos qual era a probabilidade, no tempo dos dinossauros, de qualquer um de nós, ou mesmo da nossa espécie inteira, vir a existir hoje; se pensarmos qual seria, no momento da "criação"(?) do universo a probabilidade de a vida vir a emergir aqui na Terra ou onde quer que fosse, então veremos que, se aceitarmos aquela definição de acontecimento milagroso e a menos que acreditemos de facto num desígnio inteligente à escala cósmica, num sentido radical ou bem que tudo é milagre ou então nada o é.
Que te parece?