quarta-feira, 3 de setembro de 2025

A Arte de Pensar, Como um Manual Mudou as Minhas Aulas de Filosofia (o fim da Plátano/Didáctica)

                                (foto da 1ª edição do Arte de Pensar, que ainda conservo em casa)


Nota prévia sobre o tom

Antes de mais, um alerta: este texto tem marca pessoal assumida. Vai na primeira pessoa, com a franqueza de quem fala da própria experiência e do seu percurso. O objetivo não é impor verdades, mas partilhar um caminho — com entusiasmos, equívocos e mudanças de perspetiva.


O regresso ao ensino regular (2005)

Por volta de 2005 regressei ao ensino regular, depois de quatro anos no ensino profissional numa escola privada. Não esperava tanta mudança. Foi o ano das conhecidas e muito discutidas OLPF – Orientações de Lecionação do Programa de Filosofia.

Durante muitos anos vigorou um programa de Filosofia de carácter temático, sem conteúdos claramente definidos. Ora, é difícil ter um exame nacional rigoroso sem um corpus de conteúdos. Daí a urgência de um documento paralelo e vinculativo que desse consistência ao que seria avaliado: as OLPF.

Para a maioria dos professores — e para mim — muitos conteúdos eram novidade.


O desencontro com os manuais

Fui colocado numa escola pública e, ao chegar, percebi rapidamente o problema: o manual adotado não acompanhava as OLPF. Tornou-se evidente que não conseguiria trabalhar com ele.

Na altura falava-se bastante de “educação centrada no aluno”. Alguns manuais levaram o mote tão à letra que se transformaram em reflexões superficiais, quase conversas de café. Mesmo sem OLPF, já era estranho trabalhar com materiais assim: muita coleção de textos, pouca filosofia, salvo honrosas exceções.


Um computador na biblioteca, disquetes e o Finisterra

Volto uns anos atrás. Quando foi instalado um computador com internet na biblioteca (recordo-o como iniciativa do Ministério da Educação e Ciência), dava eu aulas em Lamego. À noite, nos intervalos, refugiava-me na biblioteca a encher disquetes com textos. Foi assim que encontrei o nome de Desidério Murcho, no Finisterra. Os seus textos eram críticos — como tantos outros —, mas de outra natureza: sólidos, estruturados, com a fundamentação que me faltava ver noutros lugares. Ainda estávamos nos anos 90. Falava de ensino e também de música (essa parte, confesso, nunca me convenceu), mas o que me prendeu foi a crítica bem armada ao ensino da Filosofia.


Materiais próprios, o blogue e um conselho

Regresso a 2005: OLPF numa mão, manual desadequado na outra. Percebi que teria de produzir materiais. Nasceu assim este blogue (primeiro na plataforma SAPO) para distribuir textos aos alunos numa altura em que até as fotocópias tinham limitações.

Telefonei a um amigo, autor de manuais. A recomendação foi direta:

“Deita os manuais ao lixo, arranja A Arte de Pensar da Didática/Plátano e trabalha com ele e com as OLPF. É o único em consonância.”

Escrevi à editora a pedir o manual. Responderam que o teria de comprar (com desconto), por não estar adotado na minha escola. Dei uma resposta dura, alinhada com a “teoria da suspeita” que circulava: haveria uma conspiração entre a Plátano e o Ministério para que o único manual conforme às OLPF fosse o deles. Vistas as coisas hoje, retenho duas notas: (1) foi uma má cartada, de facto; (2) é muito difícil mudar o que está instalado sem “golpes de estado”.

Dias depois, encontrei o manual A Arte de Pensar esquecido num armário da escola e levei-o para casa. Nem reparei que um dos autores era Desidério Murcho. Fui com ele para casa revoltado: era, afinal, “o livro dos conspiradores”, dos “traidores do sistema” — e traidores não se perdoam (mesmo quando o sistema é mau). Hoje sei que um manual que vende bem é negócio; e o negócio, muitas vezes, corrompe o espírito da coisa. Mais tarde, ao envolver-me na conceção de um manual, vi com os meus olhos o jogo que há pelo meio. Seria essa a intenção dos autores do Arte, uma artimanha para ganhar dinheiro com a conspiração? Pois, mas aqui o dinheiro era bem ganho, pois há mais história para contar.


A noite em que li um manual de enfiada

Chegada a hora de deitar, peguei no A Arte de Pensar. A experiência não foi a habitual. Os manuais que conhecia eram compilações desconexas, aborrecidas, sem fio condutor. Aqui encontrei clareza, coerência, ligação entre as matérias. Li o volume do 10.º ano de enfiada. Adormeci a pensar: “Se eu fosse aluno, era assim que queria aprender.”


Analítica, preconceitos e aprendizagem

Nas aulas de Epistemologia do 2.º ano do curso tinha ouvido qualquer coisa sobre filosofia analítica. Recordo o desdém com que era apresentada — ironia incluída. Eu próprio herdei esse preconceito: encarava a filosofia analítica como uma simplificação “inglesa” e confundia-a, sem qualquer cerimónia, com o positivismo lógico. Usava a mesma ironia fácil que fica mal a quem se dedica ao saber: ridicularizar o falhanço. É humano, mas pouco elegante; o conhecimento progride muito por erros. Se ignorar isto já não é aceitável no senso comum, costuma ser fatal quando lidamos com o saber e a ciência. O manual ajudou-me a desfazer caricaturas. Não converti a fé, corrigi o mapa que me orientava.


O blogue e o eco inesperado

Nesse ano surgiram novos manuais para adoção (creio que para o 11.º ano). Comecei a escrever apaixonadamente sobre eles — e, não poucas vezes, a desancar. Para meu espanto, o blogue passou a registar 300 a 600 visitas diárias. Chegaram telefonemas, emails, comentários. 

“Tivemos em conta as tuas análises na adoção do manual.”, escreveram muitos.

Havia sede de crítica estruturada. Nem tudo foram flores: apareceram inimizades, anónimos a denunciar “mais um lacaio do Desidério”, “o analítico da Madeira” e, pior, autores que não apreciaram as críticas. Uns foram cordiais; outros vingativos. A instituição foi, talvez, a mais dura: dividiu-se entre “analíticos” e os da “filosofia verdadeira” — aquela em que muitos, como eu, fomos formatados.

Com o tempo, iniciou-se um projeto meu para um manual que ainda está no mercado (mas já sem a minha autoria). E, apesar de tudo, mantenho este ponto essencial: nunca me interessou se a filosofia é analítica ou não analítica (ou “paralítica”, como muitas vezes eu próprio referi). Interessa-me o que funciona com os alunos. O modelo inaugurado com as OLPF e com A Arte de Pensar funcionava — e, em geral, funciona até melhor. Hoje acrescento uma reserva: qualquer modelo funciona se o professor for verdadeiramente apaixonado pelo que faz.


Uma revolução (a boa)

Em trinta anos de ensino de Filosofia (com a interrupção de quatro), esta foi a única boa revolução que vi. Surgiu quando se questionava o lugar da disciplina no currículo, com propostas para a tornar opcional. Vieram milhares de discussões (muitas infantis) e ódios pessoais que a internet ajudou a mascarar, amplificar e punir. Não sei se a causalidade se comprova, mas deixou-se de falar em acabar com a disciplina e recuperou-se dignidade. Paradoxalmente, ainda hoje há quem acuse a disciplina de ter sido “esvaziada de conteúdos” — quando, em 2005, o vazio era precisamente o problema.


2025: fecho da Plátano e balanço

Este ano de 2025 trouxe a notícia do fecho da Plátano. Desde 2005 e até há pouco tempo desenvolvi algum trabalho com o Desidério Murcho. Tive de refazer aprendizagens: ler autores novos, reler clássicos com outro olhar, estudar lógica ao ponto de ajudar colegas com formação na área. O Desidério foi um excelente professor, sem nunca me cobrar nada. Um dia disse-me, a propósito do meu email inflamado que enviei ao editor:

“Ele não tem razão, mas está aqui um professor interessado em aprender e vale a pena responder-lhe.”

Tenho gratidão por isso. As aulas que hoje dou nada têm a ver com as de antes desta revolução provocada — imagine-se — por um manual.

Quanto ao futuro, não faço ideia. Não sei se haverá continuadores desta linha, nem como será o futuro dos manuais e do ensino da Filosofia. Muitos dos nossos manuais tem algo do Arte de Pensar e são também por isso, melhores. Esqueceremos depressa? Ou a revolução ficou para durar?

Sei apenas isto: para mim, e para muitos alunos, a Filosofia deixou de ser um amontoado de textos e passou a ser, de facto, uma arte de pensar.

domingo, 31 de agosto de 2025

Mensagem para o novo ano letivo: Neste tempo é que é!


Sócrates ficou na memória coletiva não apenas pelo seu pensamento, mas sobretudo pela coragem de preferir morrer pela verdade a viver na falsidade. Esse amor à verdade continua a inspirar, ainda hoje, todo o mundo do saber e das instituições escolares. Se não fosse a fama maior de Jesus, arrisco dizer que Sócrates seria o grande herói da nossa cultura ocidental.

Esse horizonte da verdade é também um imperativo ético para as escolas. Uma instituição de ensino só se mantém viva com a energia dos jovens, que ainda não se deixam aprisionar pelo peso das contas ou das rotinas, e que trazem consigo a vontade de mudar o mundo.

No ano passado defini como objetivo o “foco”. Em vez de me limitar a lamentar a falta dele, procurei perceber como se constrói, lendo e estudando sobre o tema. Valeu a pena. Descobri que muitas vezes não é apenas o foco dos alunos que muda: é também o olhar do professor, que envelhece enquanto os alunos têm sempre a mesma idade.

A experiência dos mais velhos é indispensável, mas a vitalidade dos mais novos é igualmente necessária. Infelizmente, temos poucas escolas com um corpo docente verdadeiramente rejuvenescido. Talvez não possamos mudar isso de imediato, mas um professor experiente pode sempre recorrer à memória: recordar a ingenuidade e a esperança do início de carreira. Esse exercício é antídoto contra frases feitas como “no meu tempo é que era” ou “hoje os jovens já não respeitam ninguém”.

As dificuldades existem e existirão sempre. Para alunos e professores, jovens ou veteranos. O que nos cabe é abraçar os desafios em vez de viver resignados à rotina. Foi exatamente para não perder o horizonte da verdade que Sócrates deu a vida.




terça-feira, 26 de agosto de 2025

O trabalho de Marcelo Fischborn

Há uns anos que acompanho o trabalho do Marcelo nas redes sociais. O que escreve, as linhas orientadoras que segue para o ensino da filosofia, os materiais que partilha, têm sido uma motivação e inspiração. Soube pelas redes que publicou o seu livro sobre a maneira como olha o ensino da filosofia e a própria filosofia. É uma pena se não chegar a Portugal dado que deve ser o reflexo de todo o seu trabalho e visão do ensino da filosofia e do que ela representa. Recordo que o trabalho do Marcelo pode ser visto no seu canal de YouTube (ver aqui) e também no site onde disponibiliza muitos materiais bastante úteis a quem ensina e aprende filosofia. O site do autor está AQUI. (Edit: após uma pesquisa percebi que a livraria Travessa importa o livro e o preço nem sequer é muito elevado. Poderá ser encomendado AQUI. O meu já vem a caminho). 




domingo, 25 de maio de 2025

Uma aula de filosofia política - John Rawls e as objeções

 Ocasionalmente vou gravando aulas para    os meus alunos reverem os conteúdos. Esta sobre filosofia política tem já 2 anos e estava a aguardar uma edição melhor. Resolvi publicar mesmo assim enquanto não edito novamente uma outra. Os materiais de suporte são uma compilação de outros trabalhos e seguem as Aprendizagens Essenciais. Espero que seja uma aula útil especialmente aos alunos que vão realizar exame de filosofia. 




terça-feira, 4 de março de 2025

Como uso o chat GPT nas minhas aulas


(imagem gerada pelo ChatGPT)

 

Em contexto profissional quando começo a falar de IA imediatamente surge a questão sobre as maldades da IA. Nada há no universo que não contenha aspetos negativos. E a IA não é diferente por isso. Não desvalorizo os perigos, de modo algum. Mas não consigo perceber porque não nos questionamos sobre todos os perigos de todos os aspetos de estar numa sala de aula. Temos seres humanos cada vez mais tempo sentados em salas de aula. Isso parece maravilhoso, o acesso universal ao conhecimento. Mas há um custo com os crescentes problemas mentais. Não passa pela cabeça de ninguém por essa razão acabar com as escolas, mas talvez seja necessário repensar o espaço e horário escolar e os fins a que se destina a escola. É assim que encaro a IA. E antes de a eliminar de todo, procuro compreender as suas potencialidades e usar como convém a um fim: promover aprendizagens e gosto pelo aprender. Já expus em outros artigos mais ou menos extensos como uso as tecnologias, como faço aulas mais diversificadas com elas, como comunico melhor com alunos. Este blogue, que tem cerca de 20 anos de existência, é disso exemplo. Recordo que este blogue, uma ferramenta muito usada e conhecida, que chegou a ser citado em publicações como o Jornal Público, que é provavelmente um dos dedicados ao ensino da filosofia que possui neste momento maior longevidade no espaço da internet (não estou a dizer que é o melhor), surgiu exatamente quando vou para uma escola, com um manual adotado que era sofrível e a escola limitava as fotocópias. Na altura falava-se em blogosfera e tive a ideia de divulgar os materiais no blogue para os alunos, mesmo com todas as dificuldades de então. Uma delas que me colocavam sempre e que era verdade é a de que nem todos os alunos tinham acesso à internet. Por isso promovi aulas de apoio na sala da escola com computadores ligados à internet. A IA é apenas a continuidade desse trabalho, o de usar o que disponho de melhor para promover o conhecimento.

Atualmente quando entro na minha sala de aula tenho, felizmente, disponível um quadro eletrónico, uma rede de internet excelente e todos os meus alunos tem um Chromebook. Trabalho na ilha da Madeira e a Secretaria Regional da Educação promoveu um extenso programa de digitalização do ensino que possibilita a que os alunos tenham acesso a um Chromebook. Um Chromebook é um computador portátil com o sistema operativo da Google, o que o torna mais eficiente em termos de computação necessária a uma sala de aula. Nele os alunos têm acesso a todos os manuais escolares bem como a todos os materiais que os professores disponibilizam. Há uma equipa tutelada pela SRE que coordena todo o projeto e limita os chromebooks a tarefas mais dirigidas às escolares para que os laptops sejam mais bem utilizados e rentabilizados em contexto de aprendizagem. Assim, consigo ter a minha pasta de materiais sempre pronta a ser usada e partilhada com os alunos. Um pequeno exemplo: proponho uma tarefa que pode consistir na leitura de um texto e responder a um questionário. Mas há alunos com dificuldade na interpretação e outros que interpretam bem. Dou 20 minutos. Enquanto circulo pela sala de aula vou vendo quem se adianta mais e quem se atrasa mais. Se notar que alguns alunos estão muito avançados, partilho de imediato outra tarefa. Se notar que um aluno até gosta mais de interpretar de outra maneira, visualizando um powerpoint, por exemplo, posso propor que algum outro o faça como resumo e o partilhe ou então eu próprio partilho com o aluno enquanto proponho outra tarefa aos mais adiantados. Com as tecnologias os meus alunos passam mais tempo a descobrir e eu a orientar. Sem ela as aulas eram muitíssimo mais expositivas, com mais problemas de falta de concentração, maior cansaço para mim, mais frustração. 

E com a IA? Já tenho partilhado aqui no blogue como faço algumas tarefas. Uma delas, que gosto particularmente, é pedir aos alunos para preparem o prompt para conhecerem os filósofos que vão estudar. Abrem o Chat GPT e começam por pedir que o chat faça de conta que é Descartes, Kant ou Mill e lhes responda a questões como se fosse um desses filósofos. Não dou muita orientação sobre exatamente que questões devem ser feitas, mas devem questionar aspetos relacionados com a época onde viveu, porque pensou aquelas teorias, o que o fascina na filosofia, que objeções sentiu às suas teorias, se foram bem aceites, etc.. A enorme vantagem disto é que os resultados obtidos são bastante diferentes pois cada aluno faz questões diferentes e não estão a usar a mesma fonte. Mas assim passamos a saber algo do contexto dos filósofos, algo que é relevante quando os estudamos para perceber algum do contexto das suas principais teorias. Mas há mais que se pode fazer. Por exemplo, pedir para que o chat elabore questões de escolha múltipla, etc. Muitos colegas dizem que o problema é que o Chat ainda se engana. Pois, isso é verdade. E quantas vezes não se enganam os professores? Recordo um dia ter conhecido um colega mais velho que me disse que nunca na vida cometeu um erro científico. Estávamos a falar de ensinar Descartes e eu referi que o Descartes cometeu muitos erros científicos e disparates. Mas o colega não quis saber disso para nada, só queria mesmo dizer-me que, ele, não erra. Tive pena do Descartes!!! Mas a verdade é que nos enganamos, umas vezes porque estamos mal preparados, outras por ingenuidade, outras porque o próprio conhecimento é altamente vulnerável a erros. Outra das objeções que me colocam quando falo que uso (e abuso) da IA nas aulas é que está quase tudo em português do Brasil. Bem, no que respeita ao ChatGPT já comunica bastante bem em português europeu. Mas talvez a melhor solução para já seja outra: ver menos novelas e fazer o que os brasileiros fazem com muito mais à vontade que a maioria dos portugueses: partilhar na internet. Por exemplo, conheço dezenas de canais de Youtube de professores americanos ou brasileiros que partilham em vídeo o que estou aqui a fazer escrevendo, como são as suas aulas, como trabalham, etc. Há médicos, professores, etc que fazem isso. Mas em português de Portugal são praticamente inexistentes. E para já a IA vai ao espaço virtual tentar apanhar o que lá anda. Se anda mais em português do brasil é natural que a IA aprenda melhor a falar português do brasil. 

Mas vamos a pequenos exemplos de como trabalhar na aula. Vamos partir do exemplo de um exercício de correspondências que aparece no manual. Os manuais estão adotados durante 6 anos e durante 6 anos esse exemplo não mudará. A ponto que quem trabalha com manuais físicos se depara com a dificuldade de alguns alunos terem já o exercício resolvido se o manual lhe foi emprestado por outro aluno do ano anterior. Podemos tirar uma foto a esse exercício, partilhar no ChatGPT e pedir que nos faça o exercício mas com correspondências diferentes. Mais, podemos até pegar no nosso powerpoint e partilhar no ChatGPT e pedir qualquer coisa como isto: “faz um exercício a partir deste powerpoint com 10 questões de verdadeiro e falso e faz também um com outras 10 com correspondências”. O trabalho do professor é rever tudo. E pode pedir também a correção. Até pode no final dizer que não gosta e que queria algo mais criativo. Quando dou estes exemplos surge sempre a objeção: mas isso limita a criatividade, é deixar nas mãos da máquina o que deve ser feito por humanos. Bem, isto soa-me algo estranho pois com o tempo, nós, professores, passamos a adotar manuais apenas que contenham exercícios para usarmos, testes, planificações. E tudo isso com um custo monetário para as famílias. Também numa boa parte das reuniões (lá haverá as devidas exceções) passamos a maior parte do tempo a resolver problemas burocráticos sem dedicar tempo a criar exercícios, testes, etc. que depois preparamos em casa. A melhor resposta que encontro a essa objeção é esta: aproveitem o tempo que vos sobra para fazerem outras coisas que gostam mais no âmbito da profissão e que se queixam de não terem tempo. Por exemplo, a mim vai-me sobrando mais tempo para escrever este texto. Há umas semanas tive a incumbência de escrever uma ata. Mas não a escrevi. Peguei no sumário que fiz da reunião e preparei um prompt e a IA escreveu-a por mim. Há quem goste de escrever atas de reuniões. Eu não! Fiquei com mais tempo livre para os meus alunos. E mais!!! No que respeita à produção de materiais até nem fiquei com mais tempo: produzo é muitíssimo mais e mais diversificados e criativos exercícios. 

Há certamente aspetos que me preocupam na IA, como o facto de coletar tudo o que lhe peço, que lhe digo e não sei os usos que poderá ter. O nosso trabalho, opiniões, etc.. sempre foram coletados, distorcidos, etc, mas com a IA isso passa a acontecer à escala universal. Eu prefiro pensar nas possibilidades que se nos abre. Há uns dias ouvia na rádio uma notícia hilariante: graças à IA vamos ter uma gigantesca poupança de água no futuro exatamente porque com a IA consegue-se calcular com precisão que água é necessária para a produção X e não se gasta nem mais 1 litro. É este o meu ponto para o ensino: venha ela e eu vou aproveitá-la enquanto isso ajudar os meus alunos. 

 

Nota: eu uso a versão paga do ChatGPT, mas a diferença mais substancial é que a versão grátis limita o número de questões que podemos fazer por dia. Se quisermos falar com o ChatGPT a versão grátis está limitada a uns 15m por mês. 

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Compreender porque há um problema com a liberdade de escolher

Nós, humanos, temos um cérebro. Não o compreendemos em grande parte, mas continuamos a investir muitos esforços para o compreender. De igual modo vivemos num planeta com árvores, outros seres vivos, pedras... e queremos compreender tudo isso. Achamos tudo isso necessário. E para isso criamos estudos desde a botânica, neurociências, geologia, biologia, física... e vivemos num imenso cosmos que também queremos compreender com a astronomia, que mistura matemática, física e, imagine-se, filosofia. Porque queremos compreender tudo isto implica uma resposta exigente e complexa. Mas à cabeça vem-nos logo algumas respostas: porque queremos compreender o mundo onde vivemos, queremos vencer obstáculos como doenças, fome, etc... e por isso também temos de estudar melhores maneiras de nos organizarmos. Daí que exista uma disciplina que questiona quais serão as maneiras mais adequadas, a que chamamos filosofia política. Mas não só a filosofia tenta compreender estes fenómenos. A sociologia também os quer compreender e a psicologia também os estuda. E tal como a astronomia é auxiliada pela matemática e física, também a filosofia política pode ser auxiliada pela história ou sociologia. Mas há casos em que a filosofia tem de ser auxiliada por outras ciências, como a física ou matemática ou estas mesmas disciplinas tem de ser auxiliadas pela filosofia. É esta razão que explica que as melhores universidades do mundo tenham bons departamentos de matemática e física, mas também de psicologia e filosofia. Todos sabemos que fazemos escolhas, mas saber porque as fazemos e se elas implicam a liberdade que intuitivamente pensamos que têm é em si um problema da filosofia, dado que é um problema que pode ser auxiliado pela experiência de alguma ciência, mas jamais pela experiência podemos considerar que somos livres ou não. Essa resposta, a existir, é do domínio da filosofia e a ela cabe responder ao problema central: se a ciência nos disser que não somos livres e que a nossa liberdade não passa de ilusão, então como justificar a responsabilidade moral? E é isto que os filósofos fazem com o problema, tentar compreender as implicações morais na incompatibilidade lógica de proposições como “tudo está determinado” e “somos livres”. Os filósofos não querem justificar que tudo está determinado. Pelo contrário querem é justificar como melhor adequar a responsabilidade moral se for verdade que tudo está determinado.  




sábado, 14 de dezembro de 2024

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Uma BD filosófica no sapatinho de Natal

Entre os vários elementos de avaliação que recolho, estará sempre presente um trabalho. Neste caso um trabalho mais livre o 1º período, uma oral específica no 2º e o ensaio filosófico no 3º. No 10º ano, para o primeiro trabalho pedido, gosto de dar liberdade criativa aos alunos. E é verdade que alguns exploram muito bem essa oferta de liberdade. É assim que alguns alunos resolvem enviar poemas sobre o tópico sugerido, outros vídeos (este ano tive até vídeos muito bons), outros, claro, pedem à IA que lhes faça o trabalho. Há de tudo e os trabalhos são também uma oportunidade para os ajudar a fazer melhor, discutir as melhores maneiras de os fazer e, atualmente, aprender sobre ferramentas que os alunos usam e desconheço. Gostaria de divulgar mais trabalhos aqui no blogue, mas peço sempre autorização e respeito quando os alunos ou alunas torcem o nariz. Estão no seu direito à sua privacidade. A autora desta BD respondeu sem qualquer reserva ao convite de publicação. Disse-me como fez o trabalho sendo que o mesmo não se resume a esta BD, mas também a um documento explorado em PPT aprofundando conhecimentos aqui expostos. E eu deixo aqui este pequeno exemplo aproveitando para que o mesmo possa soar a prenda natalícia. Boas festas a todos os leitores deste blogue. A autora tem 15 anos e é aluna do 10º ano. 




segunda-feira, 23 de setembro de 2024

João Carlos Silva e a filosofia perene

Não acho justo escrever acerca de livros que ainda não li. Mas este acabou de chegar e não resisto a deixar algumas palavras públicas neste canal que há muitos anos dedico à filosofia. Em parte, essa vontade acontece pois já conheço a obra do seu autor, o João Carlos Silva. Já perdi a conta à quantidade de livros publicados pelo João porque é impressionante a sua capacidade de escrita que só se compreende pelo amor que dedica à causa*. Desta vez, o João “ataca” a filosofia de modo direto, como sempre o fez, com 7 ensaios sobre questões fundamentais. E eu adianto que todos os livros de filosofia do João são quase sempre sobre questões fundamentais. Mas o João é um autor bastante raro, dado que não é comum aparecer um autor que tanto produz filosofia desta maneira. Antes de tudo é um leitor compulsivo sem deixar de parte a toada crítica que se espera de um bom leitor. E, acima de tudo, é um autor que pensa e pensa e pensa. Pensa sobre questões acerca da moral, da justiça da guerra, de conhecimento, religião ou do engajamento de determinadas filosofias (Filosofias particulares politicamente comprometidas versus filosofia universal politicamente descomprometida). A edição é da Lisbon International Press.

 

*São 8 livros no total, sendo que dos 8, 6 são de filosofia, um de contos e um de poesia. 


A fotografia com o livro é a minha maneira de homenagear o seu autor. 





terça-feira, 3 de setembro de 2024

Filosofia: o despertador das paixões. Cadeiras que são cebolas e o novo ano letivo?


 

Dado que estamos prestes a iniciar um novo ano letivo nada melhor do que aproveitar o tempo e partilhar algumas dicas de ensino. Um destes dias via uma série na Netflix com um autor americano que tinha como tarefa convencer políticos a melhorar as condições das cidades de modo a garantir mais saúde e bem-estar e aumentar a longevidade das pessoas. A determinado momento o autor refere que nos EUA tem de se arranjar sempre um argumento pela economia. Se for economicamente viável, pode ser aceite. Caso contrário está condenado ao fracasso. Pouco depois quando questionado sobre como as pessoas vão aderir a novos programas que visem a sua longevidade, o autor responde de um modo curioso. “É preciso ser sexy”. Pois eu acredito que a apresentação de uma disciplina como a filosofia para novos alunos tem de ser do mesmo modo. É o primeiro passo. E não é nada fácil consegui-lo, principalmente quando tem de se repetir a dose entre várias turmas, com múltiplos níveis de ensino e disciplinas com que se desdobra um dia de trabalho de um professor. E eu próprio não tenho resposta a todas essas barreiras. Afinal de contas estou no mesmo barco. Acontece que o trabalho pode ser divertido e é nesse sentido que aqui escrevo estas linhas, pois o trabalho que faço, ensinar filosofia, ainda me diverte. Pensem que passamos muito tempo das nossas vidas dentro de uma escola. Porque não aproveitar? Estas sugestões são aplicáveis tanto no 10º como no 11º, embora estejam mais pensadas para o 10º ano. E é necessário pensar sempre que vamos estar pelo menos 9 meses com aqueles alunos, pelo que de nada vale se a surpresa inicial não for conduzida nos meses seguintes ao que pretendemos. Esperem!!! Eu escrevi “9 meses”? Pois... isto.... não vos lembra nada? A Maiêutica socrática? É isso colegas. Estamos em trabalho de parto após estes 9 meses e nós, os professores, somos os parteiros (as). E o trabalho de parto é exigente e não são todos iguais. Uns são mais fáceis e outros mais difíceis. 

Vamos à obra? Vou concentrar-me em 2 ou 3 ideias simples para uma primeira aula. E os exemplos que vou aqui dar foram todos usados por mim em anos anteriores, uns mais bem-sucedidos que outros. 

Primeiro que tudo: pensem no Plano B. Chego mesmo a pensar no Plano B antes do A. “E se isto não funciona?...”, “bem... avanço então por ali”. E não pensem que mesmo ao fim de quase 30 anos a ensinar filosofia não fico ocasionalmente “encravado” sem saber bem que direção tomar. Faz parte. A menos que optem pelo seguro que é chegar à sala e cumprir apenas com o plano, sem contarem que vocês são professores e professoras, sem contar sequer que amam aquilo que fazem, sem se emocionarem pelo facto de nós mesmos, que estamos na filosofia, por vezes nos aborrecermos com ela e sentimos o vazio que qualquer ser que se questione tem de sentir ocasionalmente. 

Então e o que fazer? E os exemplos? Está bem, está bem. Vamos a isso.

 

Exemplo 1: a gravidade é uma treta

Há uns anos entrei na sala de aula na primeira aula com um prato de plástico, a habitual garrafa de água e uma maça. Nunca tinha visto aqueles alunos na vida. Sem lhes dirigir a palavra, peguei no prato com uma mão e coloquei a maça bem no meio. Depois peguei com a outra mão na garrafa de água aberta e fui despejando água por cima da maçã, a ponto de a água transbordar a pequena beira do prato e cair ao chão. Os alunos pávidos a observar o que aquele doido estava a fazer. No final ouviram a minha voz pela primeira vez quando disse apenas uma frase: “Acho que acabei de provar que a terra é plana”. Foram vários os teens que irritados me contrariaram com os argumentos que conhecemos. “É a lei da gravidade?”E eu apenas fui colando questões: “O que é isso da lei da gravidade?”, “a lei da gravidade vê-se?”, “Mas como sabem que existe se nunca a viram?”, “como conseguem provar que existe tal lei?”, “porque acreditam nos cientistas e naquilo que vos disseram os professores?”, “porque não acreditam no que acabei de vos mostrar?”.




 

Exemplo 2: quando as cadeiras são cebolas

Estes exemplos não estão aqui expostos por ordem cronológica pois este da cadeira inventei-o logo a seguir ao estágio. Raramente repito os exemplos. A razão? Farto-me deles e deixo de lhes achar piada. Numa boa discussão eu próprio enquanto professor de filosofia devo, acho eu, manter uma boa dose de ingenuidade e uma ainda maior de ignorância. Afinal, quero expor problemas e não respostas a problemas. Quero, queremos, apenas mostrar que as coisas são um pouco mais difíceis do que pensamos. E o exemplo? Ah bom! Entro na sala e mais uma vez sem me apresentar e coloco uma cadeira vazia em cima da minha secretária e faço apenas uma questão: “O que é isto?”. Obviamente os alunos mais corajosos respondem que é uma cadeira. “Mas se lhe retirar as pernas continua a ser uma cadeira?”, “E se lhe retirar o encosto?”, “E se a deitar estragada ao lixo?”. Já estão a ver, não é? Já temos a pancadaria montada na sala de aula, pois neste momento já há divisões, aqueles que acham que a cadeira mesmo no lixo sem pernas e encosto continua a ser cadeira e aqueles que acham que a cadeira deixou de o ser para passar a ser lixo. Usei este exemplo durante uns bons anos e muitos eram os alunos que nunca esqueciam esta primeira aula. Mesmo aqueles que se entediaram com o programa que temos de seguir (eu próprio me entedio bastante), continuavam a manifestar respeito pela disciplina que transformava cadeiras em cebolas. Sim, pois, uma vez que a determinado momento eu convidava os alunos a chamarem cebolas às cadeiras e na aula seguinte a primeira coisa que lhes dizia era: “Vá, sentem-se nas cebolas que a aula já começou”.




 

Exemplo 3: o universo nunca existiu

Poderia aqui relatar muitos mais exemplos. Uns não me recordo, outros não são tão expressivos. Mas o professor é também um criador de conteúdos, um inventor de roupagens para os programas de ensino. Sem esta criatividade não sei como encarar o ensino senão como uma tarefa que se executa sem gosto. Na primeira aula levanto apenas uma questão “O que é que vos garante que o universo não começou a existir há 5 minutos?”. Espero que imaginem a perplexidade que se gera numa sala de aula com uma questão destas. 

 

O desafio principal

 

Todos os anos costumo pensar nos meus objetivos e quais os principais desafios. Embora compreenda costuma-me bastante chegar todo enérgico à escola e ter de enfrentar todo um lado menos positivo que se resume a burocracias enormes, reuniões fora de horas, problemas profissionais de toda a ordem, gente a queixar-se ao mesmo tempo que insiste que amam o que fazem, etc.. cada um é como cada qual. Da minha parte e com a experiência que já tenho sugiro que os professores façam este exercício que parece ingénuo, mas é de uma eficácia tremenda. Escrevem 2 ou 3 objetivos para o ano letivo. Devem ser coisas que não vos envolve apenas a vocês, mas ao mesmo tempo que possam contribuir para que algo mude. Por exemplo não adianta de nada pensar como objetivo “melhorar as políticas educativas”, pois isso não vai acontecer numa década que fará num ano. Mas pensem em objetivos como este “fazer com que o máximo de alunos do 10º ano goste da disciplina”. Não adianta de nada escreverem nos projetos docente coisas articuladas com o projeto educativo da escola se vocês não sentirem que é isso que desejam. E não há problema nisto, pois qualquer projeto educativo tem escrito aquilo que qualquer professor motivado deseja que é o sucesso dos alunos. 

Já trabalhei com os meus objetivos (sempre e apenas 2 ou 3) de várias maneiras. Já os escrevi e meti dentro de um envelope que abria no final do 1º e 2º período para pensar se os estava a cumprir ou não e no caso de não os cumprir o que podia mudar. Já os escrevi junto ao horário para os ler todos os dias. Já fiz muitos e variados testes e nem sempre funcionam. Por exemplo sinto que de alguma maneira o ano que passou ficou bastante aquém dos meus objetivos. Nunca revelei os objetivos publicamente, mas vou neste momento revelar um dos meus objetivos para este ano que serve aqui apenas como exemplo do que exponho: “Trabalhar o foco dos alunos”. Já li e reli dezenas de coisas, desde artigos a livros completos (quem me segue nas redes sociais sabe que o faço) sobre a desatenção, a falta de foco, etc. Isto ao mesmo tempo que sinto que as minhas palavras não conseguem atingir os coraçõezinhos dos adolescentes e lá habitarem mais que 2 ou 3 minutos. Até há uns anos eu sentia que ficava ali eco. Agora nem por isso. Este meu sentimento tem exigido de mim duas coisas principais: a primeira que me informe, lendo artigos da especialidade, procurando formação adequada. A segunda, uma autoanálise. Eu estou mais velho e naturalmente mais rotinado. Até que ponto eu mesmo estou num ponto de viragem e a minha rotina afeta a minha perceção da realidade? Não quero aqui fazer dissertações sobre o problema da falta de foco das novas gerações, mas é do que mais se fala. E honestamente eu já conheço o problema. Só me interessa, enquanto professor, ajudar a resolvê-lo. Não me sinto confortável com a ideia de chegar ao final do 1º período e nas reuniões atribuir classificações baixas com justificações como “eles não me ouvem”, “não conseguem estar atentos e quietos 5 minutos”. Isto é obviamente verdade. Só que tenho de ter a consciência que é com ele que vou ter de lidar. E claro que é também no seio da nossa comunidade de trabalho que devemos resolvê-lo pois ninguém o vai resolver isoladamente. Contudo, é um dos meus objetivos e o principal deste ano que agora se vai iniciar: trabalhar o foco. Até porque sendo que qualquer disciplina e aprendizagem exige foco, a filosofia neste aspeto tem uma característica especial: não sendo experimental só se faz com o cérebro. E um cérebro desfocado nada faz, muito menos pensar. E, sublinho, trabalharei com os meus colegas de escola, de grupo e conselhos de turma, para levar avante este meu objetivo. O caminho é longo e são 9 meses até ao parto. 

 

Espero que estas sugestões simples e exemplos possam ser sexy, que possam estimular para que o ano letivo seja especial, pois a vida tem mais sentido se ela tiver um propósito e ensinar é um propósito para quem gosta desta profissão. 

Bom ano a todos 


Nota: as imagens usadas foram geradas por IA