I
Talvez a melhor prova de que a filosofia não é tão necessária assim seja o facto de até precisar de um dia que assinale a sua necessidade. Será uma necessidade imposta? Talvez. Olho sempre com alguma relutância para aniversários como o Dia da Filosofia. E não costumo apreciar por aí além as dezenas ou centenas de textos que se publicam a exaltar a importância daquilo que a esmagadora maioria das pessoas se está nas tintas. Assim como a esmagadora maioria das pessoas se está nas tintas para milhares de outras coisas que as pessoas consideram muito úteis e necessárias. Haverá talvez um cunho mais pessoal na filosofia do que na matemática ou química para que se perceba a exortação da necessidade inevitável da filosofia. Mas basta ler o livro Como se transforma ar em pão? De Nuno Maulide, o químico português de renome internacional para perceber que as pessoas estão pelo menos tão rodeadas da química como da filosofia e nem por isso se interessam assim tanto por química, nem consta que os químicos se preocupem assim tanto com isso (na verdade Maulide até se preocupa daí ter escrito o livro). São hipóteses.
Então vamos brincar com a suposta necessidade popular da filosofia para ver se funciona como pensamos que deve funcionar. Um dia estava eu a preparar o meu portátil para uma pequena aula/palestra, creio que precisamente no dia da filosofia e aparece uma menina dos seus 15 anos, aluna, que chegou mais cedo à sala. Pediu para entrar e enquanto eu me via ali atrapalhado com fios e ligações atira-me esta questão: “professor desculpe, mas quero fazer esta pergunta antes que chegue a minha professora: para que é que serve a filosofia que eu ainda não percebi muito bem?”. A minha resposta foi simples: “serve para eu ganhar um ordenado ao fim do mês”. A miúda ficou com um ar estarrecido. Mas eu ofereci uma justificação, enquanto me via ainda a braços com as ligações e os fios: “repara, eu tirei um curso de filosofia. Aprendi alguma filosofia. E com isso faço o meu ganha-pão, compreendes?”. Perante o ar incrédulo da miúda, lá fui desenvolvendo a questão: “Ora bem, a pergunta que fizeste pressupõe antes saber o que é a utilidade e se tudo terá de ter exatamente a mesma utilidade. Por exemplo, se um garfo serve para comer, será que a utilidade da filosofia é mais ou menos a mesma que poderá ter um garfo?”
Na verdade, a utilidade pressupõe ela mesmo uma pergunta para a qual precisamos de argumentos. O que é que faz com que o objeto x se torne útil? E eu não menti à aluna, a filosofia serve mesmo para que me paguem um ordenado ao fim do mês. É certamente uma utilidade. Que me serve a mim, apenas. Mas é uma utilidade. Num sentido mais global, em regra os patuscos elogios que vejo por aí à filosofia acabam sempre num lugar-comum: ética aplicada e sentido da vida. E em regra também me parecem forçar a utilidade da filosofia. Pois senão quando os leio penso sempre se sem filosofia as conclusões não seriam exatamente as propostas nesses textos? E em regra acabo sempre a assentir que sim, que mesmo alguém que não tivesse qualquer contacto com a filosofia, chegaria às mesmas conclusões. E por uma questão de ordem quero para já evitar a ideia de que todos somos filósofos. Seremos todos filósofos no mesmo sentido em que seremos matemáticos por fazer contas quando vamos às compras num supermercado. Isto é, não é verdade que todos sejamos filósofos no mesmo sentido que não é verdade que todos sejamos matemáticos. Mas é verdade que a filosofia tem muitos pontos de contacto com vários aspetos da realidade. Nunca contei, mas se calhar tem tantos ou menos que a matemática, a física ou a química. Uma outra possibilidade é a de considerar que pelo menos alguns problemas filosóficos são de interesse comum. Por exemplo apenas especialistas se preocupam com o problema dos universais, mas todas as pessoas se preocupam com a existência de Deus. Mas ainda assim considero que o mesmo se passa com quase todos os outros saberes que tem alguma base de ligação à experiência mais intuitiva. Portanto nem aí vejo algum estatuto especial para a filosofia.
II
Bem, poderia concluir então que a filosofia não merece um dia para se comemorar o seu exercício, história e estatuto ou pelo menos não o merece mais que qualquer outro saber. Sim, é mesmo isso que concluo. Mas não defendo que tal dia não deva existir. Talvez isso fosse o equivalente a considerar que também não deveriam existir prémios com a medalha Fields para a matemática, mesmo com as justas diferenças entre o prémio e o world philosophy day. O que defendo é outra coisa: é que independentemente de existir ou não um dia da filosofia, ela continuará viva enquanto alguém achar que ela é necessária e útil ou então enquanto ela mesma for objetivamente útil e haja alguém que se dê conta disso. Mas ela não é apenas útil para questionar o sentido da existência, até porque nem só apenas a filosofia o questiona. Ela é útil sobretudo pelo modo como o faz incomparável com outro saber ou disciplina, no modo como disciplina os argumentos e os esclarece, no modo como aplica a lógica no esventrar dos argumentos para desbravar novas questões e também no modo como cada vez mais se intersecta com todos os outros saberes não só na mais popular ética ou versão patusca do sentido da existência, mas nos problemas que se colocam em torno da inteligência artificial, as mais recentes descobertas nas neurociências e a relação com a epistemologia moderna, o problema metafísico dos universais e particulares, o lugar do livre-arbítrio, como se conserva a identidade pessoal e as relações com problemas mais práticos como os do aborto ou eutanásia, a criação de sociedades mais justas com problemas como os da redistribuição ou pobreza, e para a definição de conceitos tão fundamentais do modo como configuramos a nossa visão do mundo como o de utilidade.
III
Por enquanto para mim a filosofia serve para duas coisas: ganhar um ordenado e não ficar completamente cego quanto às questões que se possam levantar acerca daquilo que o mundo é.
Bom dia da filosofia a todos. (este ano comemora-se a 17 de Novembro)