terça-feira, 1 de dezembro de 2020

"Ninguém vai chumbar a filosofia!" Por, Carlos Café

O professor de filosofia, Carlos Café, ensina na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, em Portimão. Tem um currículo preenchido de criatividade aplicada à filosofia. Assinou este texto que aqui apresento na sua página pessoal do Facebook. E pedi-lhe que, caridosamente, me deixasse fazer pública através do blogue FES, a mensagem do texto, tal e qual foi publicada. Isto porque sempre defendi que devemos aplicar criatividade ao ensino. Se o modelo falhar, mudamos, pois é da mudança que brota a inovação e a inventividade. Uma escola progressista é certamente aquela que respira liberdade, sem se agarrar a modelos fechados, controladores e limitadores. Ensino há 25 anos. Se há modelo que conheço muito bem é o dos chumbos. Já lhe conheço todas as vantagens e fragilidades. E o modelo tem imensas falhas. Porque não tentar outras vias? A verdade é que todos desejamos evitar os chumbos, mas não sabemos bem como fazê-lo e, então, ninguém arrisca. Enquanto isso, nada muda. Claro que o texto do Carlos é a opinião dele que, como espírito livre que demonstra ser, não se importa de partilhar. Há também quem pense que este género de posição pertence a discussões internas nos departamentos curriculares das escolas. Acho que têm uma certa razão. Mas ao mesmo tempo penso que a educação não é uma profissão como as outras. Ela é uma missão de todos, já que envolve toda a comunidade. É um bem público. E como bem público devemos também partilhar publicamente o que fazemos, como fazemos e como achamos que se deve fazer. Isso não se confunde com todos a mandar na sala de aula, de modo algum. Na sala de aula, o professor é ainda o maestro. Só que temos de fazer a banda tocar. E para isso precisamos da colaboração de todos. Dê lá as voltas que o assunto der, de uma coisa estou certo: a atitude do professor Carlos faz mais pela educação que quinhentas medidas políticas para inglês ver. Fica o texto e um agradecimento ao professor Carlos Café por ter autorizado a sua partilha. A foto também é dele. 




 

“Escrevi isto no quadro quando entreguei os testes na semana passada. Ao ver-me tirar a foto, um aluno, na sua ingenuidade, perguntou-me: "está a fotografar para não se esquecer?"

Respondi-lhe que não, que era para postar aqui. Mas, vendo bem, poderia muito bem ser, para não me esquecer do que me levou a fazer esta "profecia" algo temerária. Que passo a explicar.

Uma das coisas mais difíceis para um professor é manter os níveis de motivação dos seus alunos quando eles, apesar do seu esforço, obtêm resultados negativos. Quando entreguei os testes na semana passada, a cena repetiu-se com alguns deles e delas: tristes, desapontados, por vezes chorosos. Tinham recebido o 1.º teste de Filosofia, eles e elas que, há uns meses atrás, estavam ainda no 9.º ano numa outra escola com outro tipo de características e exigências. Foi então que decidi escrever isto no quadro.

Comecei por lhes dizer que, se fosse professor de Matemática, Português ou de Inglês, por exemplo, nunca escreveria tal coisa. Por quê? Porque, apesar dos esforços enormes que os colegas fazem, nem sempre é possível recuperar falhas de anos anteriores com o ritmo exigido no secundário (são turmas do 10.º ano). Mas a Filosofia é uma disciplina nova. "E eu não admito que algum aluno meu chumbe!" - acrescentei. - "Mesmo os que ´desligarem´ e quiserem chumbar vão ter de me 'enfrentar!´" - concluí um tanto provocatoriamente.

Também lhes disse que não ia passar ninguém por pena ou por favor, e que iriam passar todos, sim, mas porque isso era justo e o mereciam.

Para além de ser, como se percebe, uma estratégia de motivação (os alunos percebem que têm em mim alguém que se preocupa e que não vai desistir deles), há por detrás dela uma convicção profunda: não faz sentido algum que haja alunos e alunas a chumbar a Filosofia! Chumbar por quê? Perderam a curiosidade natural? Foram amputados da capacidade de raciocínio lógico? Desprezam a possibilidade de ter opiniões próprias?

Não, nada disso. Na maioria dos casos, os alunos chumbam porque os instrumentos que são utilizados para os avaliar são repetitivos, redutores e não abarcam todas as competências que é suposto serem avaliadas. A tirania do hábito, a tentação da inércia e a pressão social e institucional com os exames para entrar na universidade fizeram com que o secundário se tornasse numa "linha de montagem" de candidatos à universidade, em que os professores se transformaram, lentamente e sem disso se aperceberem, em zelosos e eficazes "explicadores". Já não ensinamos, limitamo-nos a explicar a matéria que pode sair nos exames. 

Bem vistas as coisas, temos andado a comportar-nos como aquela personagem de um curioso cartoon que circula por aí nas redes sociais, que reúne os diferentes animais da selva e lhes diz qualquer coisa como: "Hoje vão todos fazer um teste. Por uma questão de igualdade, a prova terá de ser a mesma para todos. E hoje o teste é o seguinte: todos vocês têm de subir a uma árvore!". 

Pois bem, é mais que tempo de deixar de exigir ao elefante ou ao hipopótamo que tentem subir árvores e dar-lhes a possibilidade de atingirem os mesmos objetivos de acordo com os seus interesses e natureza. 

Na minha escola, por exemplo, a avaliação é feita por competências e os testes valem cerca de 50% da nota dos alunos (fazemos apenas 3 por ano). Tudo é avaliado, mas nem tudo é avaliado por testes. Ao longo do ano, os alunos fazem um ensaio filosófico (uma avaliação mais "académica", portanto) sobre um problema filosófico escolhido por si. Fazem "tarefas coletivas de turma", em que cada aluno contribui para a realização de um trabalho global da turma (a título de exemplo, a clarificação e explicação do que são problemas filosóficos constitui a tarefa "objetos filosóficos", em que cada aluno trouxe para a aula um objeto por si escolhido e explicou aos colegas a razão da escolha e o que ele tem de filosófico). Houve quem levasse um relógio para perguntar "o que é o tempo?", rimmel ("o que é a Beleza?"), 1 euro ("o dinheiro é o mais importante na vida?") ou, ainda, quem não levasse objeto algum para poder perguntar: "o que é o nada?".

Mas o mais interessante é o projeto pessoal de Filosofia (PPF), um trabalho de projeto que é feito ao longo do ano e em que os alunos trabalham um problema/tema filosófico escolhido por si e o abordam da forma que entenderem: texto, banda desenhada, curta metragem, música, dança, jogo, diário gráfico, etc., etc.

Só para que se perceba a importância do PPF, ele tem um peso de 2 valores na nota final do aluno.

Bom, e para além de tudo isto, temos a atitude e o comprometimento nas aulas e o respeito que lhes é exigido pelos colegas e pelas suas opiniões.

Como se constata, os alunos trabalham provavelmente muito mais (e melhor, espero eu) do que se fossem avaliados essencialmente por testes que são o paraíso para quem escreve bem e o inferno para quem preferiria expressar-se também de outras formas.

Nas últimas 3 semanas de aulas, com a matéria já dada e o essencial das notas definidas, os alunos e as alunas apresentam à turma os seus PPF, em que andaram a trabalhar (autonomamente, mas com a minha supervisão) ao longo do ano.

É por tudo isto, cara amiga e caro amigo, que eu posso arriscar imenso e dizer: NINGUÉM VAI CHUMBAR A FILOSOFIA!

Lá para junho conto como foi 😉

Obrigado pela paciência.

 

Carlos Café”

2 comentários:

Raquel disse...

Li com curiosidade o texto do professor Carlos Café. De facto, dá-nos uma perspetiva filosófica acerca disciplina de Filosofia e, mais concretamente, acerca da avaliação em geral e na Filosofia em particular. Estou de acordo com a linha de pensamento do professor Carlos Café, pois avaliar um aluno na disciplina de Filosofia não se pode reduzir a um somatório de cotações nos testes. Por isso, é necessário considerar outros instrumentos de avaliação, nomeadamente, apresentação de temas, por escrito ou oralmente.

O princípio de que parte o autor do texto é que a Filosofia deve descer à realidade dos aprendizes, às suas circunstâncias culturais e interesses pessoais. No entanto, penso que é igualmente importante propor tarefas que despertem capacidades adormecidas dos alunos, ainda que isso possa ser visto como árido, do ponto de vista dos alunos.

Penso que o texto peca por considerar que é apenas o professor que deve adaptar o seu método aos alunos. Será que o aluno não deverá ser igualmente capaz de acolher a proposta do professor e, da síntese, nascerá uma aprendizagem produtiva e pessoal?


Teresa Sousa

Carlos Café disse...

Antes de mais, obrigado ao Rolando Almeida pela divulgação que faz do meu texto no seu excelente blogue. E à Teresa Sousa, que teve a gentileza de perder um pouco do seu tempo a ler o meu texto e a comentá-lo.

O meu texto tem, como se percebe, um caráter algo "confessional". Tinha como objetivo inicial a referência a um facto ocorrido nas aulas e pouco mais. Mas depois apercebi-me de que seria necessário contextualizar um pouco aquela minha declaração temerária junto dos meus alunos.

Não quero que pensem que defendo uma facilitação. Acreditem, se alguém dissesse isso ao pé dos meus alunos eram sorririam decerto. Muitos de entre eles lamentam que lhes indique tantos trabalhos para fazer e tanto em que pensar. Mas acho que a esmagadora maioria deles espera sempre "qualquer coisa" de diferente das minhas aulas. Para um professor isso é muito agradável, mas cria-nos uma pressão enorme. Mas não vou mentir, adoro a sensação. Já agora, aproveito para dizer que não faço o pino nas aulas nem malabarismos de circo. Limito-me a ser eu próprio, na esperança de que as minhas aulas despertem o melhor que há neles.

Só há um aspeto no comentário da Teresa Sousa que gostaria de esclarecer: eu não penso que é apenas o professor que deve tentar chegar aos alunos. O que acontece é exatamente o contrário: os alunos gostam da descoberta do "mundo filosófico" do professor e, muitos deles fazem um esforço notável para o conseguir.

Vou dar um exemplo: hoje, para explicar a metodologia de uma "tarefa filosófica de turma" (uma tarefa que cada um deles tem de fazer e partilhar a partir de um desafio comum) expliquei-lhes a ideia assim:
"Sabem uma coisa? O nosso trabalho vai ser como um concerto de jazz. No jazz, os músicos partem de um tema comum e, inspirados por ele, dedicam-se a um improviso, para o qual não há partitura alguma para seguir. Cada instrumentista é "desafiado" a improvisar à sua maneira e, no final, todos os músicos regressam ao tema inicial. Portanto, meus caros, o que eu quero que vocês sejam neste trabalho é só isto: músicos de jazz! Inspirem-se no tema, improvisem o vosso "solo", mas não percam de vista o tema inicial a que teremos todos de regressar".

De seguida, ouvimos em conjunto o tema "Take Five", de Dave Brubeck, e eles puderam constatar como funciona o jazz (ando sempre com uma pequena, mas poderosa, coluna de som na mochila e o Spotify à mão).

Vou dizer o que me deu mais gozo: nenhum deles manifestou enfado pela minha proposta e todos ficaram curiosos com o que lhes ia mostrar. Esta disponibilidade para entender as propostas para eles inéditas do seu professor de Filosofia já se tinha manifestado em relação a filmes ou livros. E hoje, no meio de uma aula de Lógica sobre tabelas de verdade, surgiu espontaneamente uma animada discussão acerca da existência de Deus, com vários argumentos e objeções a serem esgrimidos. E veio a pergunta inevitável: "Professor, vamos ter mais aulas destas?" "Sim, claro -respondi-, praticamente todas. Mas agora estamos a acabar as aulas preparatórias no "laboratório" ou "atelier": em janeiro começam as descobertas e a criação das vossas "obras" individuais."

Agora não posso desapontá-los. E sei que também eles não me querem desapontar. É isso que me permite ser otimista e dizer: "Ninguém vai chumbar a Filosofia!" :)