quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Um best of muito pessoal



Não é muito fácil elaborar um best of do ano no que respeita a livros publicados entre nós. Primeiro porque não são assim tantos os livros que se publica de filosofia em portugal. Depois porque não os leio todos. E depois porque muitas vezes passo mais tempo a ler livros que já tem uns anos do que propriamente livros acabados de sair. Mas a dizer a verdade ainda são muitos os livros que leio num ano. Nem tenho bem a conta feita, mas são mesmo muitos. Gostaria ainda assim de destacar aqui livros que, mesmo não sendo exclusivamente de filosofia, mereceram o meu tempo e destaque. Outros há que não os destaco, mesmo tendo sido lidos este ano e sendo 2020 o ano da sua edição em língua portuguesa. Não gostei deles e por isso soa-me errado estar a fazer-lhes destaque. Isto porque esta pequena lista assume um carácter inteiramente pessoal. Ao contrário do que até fiz em outros finais de ano não estou a fazer a listagem dos livros mais relevantes que saíram ao longo do ano, mas somente a destacar aqueles que mais gostei. 

Começo por destacar o livro de Pedro Galvão, Três diálogos sobre a morte (Gradiva). É provavelmente o melhor livro de filosofia que me recordo ter lido escrito por um português. Porque os problemas tratados são de difícil argumentação há passagens mais sofisticadas, mas da maneira como está escrito, numa engenhosa trama de diálogos, acaba por transformar algo bem sofisticado num desafio intelectual em que o leitor sai claramente a ganhar. 



Mas Galvão não se ficou por aí este ano. Além de ter também publicado um livro de ficção, uma estreia, que ainda não li, publicou também uma tradução revista do seminal texto de Stuart Mill, Utilitarismo. Para enriquecer esta edição, adicionou um conjunto de ensaios de Mill sobre Bentham e ainda uma extensa e útil introdução aos textos e à filoosfia de Mill. A edição é da Primatur.




Ainda que o livro sobre a morte de Pedro Galvão seja a todos os níveis o melhor livro de filosofia lido este ano, não poderia esquecer a importância da edição, na mesma coleção da Gradiva, a Filosofia Aberta, do livro de John Searle, Da realidade física à realidade humana. Este livro foi publicado na língua portuguesa mesmo antes de ser publicado no original em inglês, o que revela uma perspicácia pouco habitual numa área como a filosofia, principalmente de Aires Almeida, o diretor desta coleção e que tem feito um trabalho soberbo. É uma espécie do melhor da filosofia de Searle. Publicar filosofia em Portugal é muito complicado. Primeiro porque quem se interessa a valer pela área acaba por aprender a ler em inglês e traduzir determinados títulos para a nossa língua é sempre um risco demasiado elevado para os editores. Afinal, quem os vai comprar? Os mais especialistas compram em inglês e os menos especialistas não os compram. Ora, neste contexto, conseguir o que se tem feito com a Filosofia Aberta, só mesmo com muito amor à camisola. 




Destacaria dois livros que não são de filosofia, mesmo que neles se refira muitas vezes filósofos. São eles o livro de Tim Harford, O que os números escondem (Objetiva) e o de Anne Applebaum, O crepúsculo da democracia (Bertrand). E porque destaco estes dois livros? O primeiro porque é uma maneira bastante interessante de nos alertar dos vieses cognitivos que constantemente cometemos na interpretação que fazemos dos acontecimentos e do modo de os evitar. E o segundo porque, também fruto desses vieses, alerta para o perigo que corremos em eleger partidos extremistas para os governos. A autora serve-se do caso da ascensão da extrema direita na Polónia e passa pelo Brexit, Trump, entre outros casos de extremismo populista. São livros bem documentados e que nos enquadra os riscos do nosso comportamento na sociedade moderna. 





O meu último destaque não é tanto dirigido ao livro, mas à ciência em geral. Nos tempos que vivemos, a força da crença irracional, o negacionismo, o erro político de manter a esperança nos extremismos populistas ocupam um destaque social crescente. O recente livro da dupla portuguesa Carlos Fiolhais e David Marçal é mais que um livro apenas sobre a pandemia. É um livro que mostra os erros que se comete constantemente na avaliação dos acontecimentos. Mas é um livro que tem o foco na importância capital que a ciência tem nos nossos dias e no impacto que acaba também por ter nas nossas vidas. Mas como a ciência é contraintuitiva talvez afaste as pessoas do que ela é e como funciona. Por isso estes livros são tão importantes. Porque este ano de 2020 é, para mim, definitivamente o ano da ciência. E o meu maior destaque de 2020 vai mesmo para a ciência.  

Em 2021 continuarei certamente a ler livros de 2020. Alguns estão aí em lista de espera. Haja saúde e paz. 



Outros Best Of meus: AQUI e AQUI

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

2020 em revista

O colega António Gomes, amavelmente, convidou-me a escrever uns apontamentos sobre o que se passou em 2020. Aqui está o resultado e link para aceder app texto completo onde ele foi disponibilizado. Um agradecimento ao António que há décadas faz um trabalho muito decente na internet sendo uma das fontes de inspiração deste mesmo blogue que também já é um veterano. O Gomes já por cá andava. ACEDER AQUI





terça-feira, 1 de dezembro de 2020

"Ninguém vai chumbar a filosofia!" Por, Carlos Café

O professor de filosofia, Carlos Café, ensina na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, em Portimão. Tem um currículo preenchido de criatividade aplicada à filosofia. Assinou este texto que aqui apresento na sua página pessoal do Facebook. E pedi-lhe que, caridosamente, me deixasse fazer pública através do blogue FES, a mensagem do texto, tal e qual foi publicada. Isto porque sempre defendi que devemos aplicar criatividade ao ensino. Se o modelo falhar, mudamos, pois é da mudança que brota a inovação e a inventividade. Uma escola progressista é certamente aquela que respira liberdade, sem se agarrar a modelos fechados, controladores e limitadores. Ensino há 25 anos. Se há modelo que conheço muito bem é o dos chumbos. Já lhe conheço todas as vantagens e fragilidades. E o modelo tem imensas falhas. Porque não tentar outras vias? A verdade é que todos desejamos evitar os chumbos, mas não sabemos bem como fazê-lo e, então, ninguém arrisca. Enquanto isso, nada muda. Claro que o texto do Carlos é a opinião dele que, como espírito livre que demonstra ser, não se importa de partilhar. Há também quem pense que este género de posição pertence a discussões internas nos departamentos curriculares das escolas. Acho que têm uma certa razão. Mas ao mesmo tempo penso que a educação não é uma profissão como as outras. Ela é uma missão de todos, já que envolve toda a comunidade. É um bem público. E como bem público devemos também partilhar publicamente o que fazemos, como fazemos e como achamos que se deve fazer. Isso não se confunde com todos a mandar na sala de aula, de modo algum. Na sala de aula, o professor é ainda o maestro. Só que temos de fazer a banda tocar. E para isso precisamos da colaboração de todos. Dê lá as voltas que o assunto der, de uma coisa estou certo: a atitude do professor Carlos faz mais pela educação que quinhentas medidas políticas para inglês ver. Fica o texto e um agradecimento ao professor Carlos Café por ter autorizado a sua partilha. A foto também é dele. 




 

“Escrevi isto no quadro quando entreguei os testes na semana passada. Ao ver-me tirar a foto, um aluno, na sua ingenuidade, perguntou-me: "está a fotografar para não se esquecer?"

Respondi-lhe que não, que era para postar aqui. Mas, vendo bem, poderia muito bem ser, para não me esquecer do que me levou a fazer esta "profecia" algo temerária. Que passo a explicar.

Uma das coisas mais difíceis para um professor é manter os níveis de motivação dos seus alunos quando eles, apesar do seu esforço, obtêm resultados negativos. Quando entreguei os testes na semana passada, a cena repetiu-se com alguns deles e delas: tristes, desapontados, por vezes chorosos. Tinham recebido o 1.º teste de Filosofia, eles e elas que, há uns meses atrás, estavam ainda no 9.º ano numa outra escola com outro tipo de características e exigências. Foi então que decidi escrever isto no quadro.

Comecei por lhes dizer que, se fosse professor de Matemática, Português ou de Inglês, por exemplo, nunca escreveria tal coisa. Por quê? Porque, apesar dos esforços enormes que os colegas fazem, nem sempre é possível recuperar falhas de anos anteriores com o ritmo exigido no secundário (são turmas do 10.º ano). Mas a Filosofia é uma disciplina nova. "E eu não admito que algum aluno meu chumbe!" - acrescentei. - "Mesmo os que ´desligarem´ e quiserem chumbar vão ter de me 'enfrentar!´" - concluí um tanto provocatoriamente.

Também lhes disse que não ia passar ninguém por pena ou por favor, e que iriam passar todos, sim, mas porque isso era justo e o mereciam.

Para além de ser, como se percebe, uma estratégia de motivação (os alunos percebem que têm em mim alguém que se preocupa e que não vai desistir deles), há por detrás dela uma convicção profunda: não faz sentido algum que haja alunos e alunas a chumbar a Filosofia! Chumbar por quê? Perderam a curiosidade natural? Foram amputados da capacidade de raciocínio lógico? Desprezam a possibilidade de ter opiniões próprias?

Não, nada disso. Na maioria dos casos, os alunos chumbam porque os instrumentos que são utilizados para os avaliar são repetitivos, redutores e não abarcam todas as competências que é suposto serem avaliadas. A tirania do hábito, a tentação da inércia e a pressão social e institucional com os exames para entrar na universidade fizeram com que o secundário se tornasse numa "linha de montagem" de candidatos à universidade, em que os professores se transformaram, lentamente e sem disso se aperceberem, em zelosos e eficazes "explicadores". Já não ensinamos, limitamo-nos a explicar a matéria que pode sair nos exames. 

Bem vistas as coisas, temos andado a comportar-nos como aquela personagem de um curioso cartoon que circula por aí nas redes sociais, que reúne os diferentes animais da selva e lhes diz qualquer coisa como: "Hoje vão todos fazer um teste. Por uma questão de igualdade, a prova terá de ser a mesma para todos. E hoje o teste é o seguinte: todos vocês têm de subir a uma árvore!". 

Pois bem, é mais que tempo de deixar de exigir ao elefante ou ao hipopótamo que tentem subir árvores e dar-lhes a possibilidade de atingirem os mesmos objetivos de acordo com os seus interesses e natureza. 

Na minha escola, por exemplo, a avaliação é feita por competências e os testes valem cerca de 50% da nota dos alunos (fazemos apenas 3 por ano). Tudo é avaliado, mas nem tudo é avaliado por testes. Ao longo do ano, os alunos fazem um ensaio filosófico (uma avaliação mais "académica", portanto) sobre um problema filosófico escolhido por si. Fazem "tarefas coletivas de turma", em que cada aluno contribui para a realização de um trabalho global da turma (a título de exemplo, a clarificação e explicação do que são problemas filosóficos constitui a tarefa "objetos filosóficos", em que cada aluno trouxe para a aula um objeto por si escolhido e explicou aos colegas a razão da escolha e o que ele tem de filosófico). Houve quem levasse um relógio para perguntar "o que é o tempo?", rimmel ("o que é a Beleza?"), 1 euro ("o dinheiro é o mais importante na vida?") ou, ainda, quem não levasse objeto algum para poder perguntar: "o que é o nada?".

Mas o mais interessante é o projeto pessoal de Filosofia (PPF), um trabalho de projeto que é feito ao longo do ano e em que os alunos trabalham um problema/tema filosófico escolhido por si e o abordam da forma que entenderem: texto, banda desenhada, curta metragem, música, dança, jogo, diário gráfico, etc., etc.

Só para que se perceba a importância do PPF, ele tem um peso de 2 valores na nota final do aluno.

Bom, e para além de tudo isto, temos a atitude e o comprometimento nas aulas e o respeito que lhes é exigido pelos colegas e pelas suas opiniões.

Como se constata, os alunos trabalham provavelmente muito mais (e melhor, espero eu) do que se fossem avaliados essencialmente por testes que são o paraíso para quem escreve bem e o inferno para quem preferiria expressar-se também de outras formas.

Nas últimas 3 semanas de aulas, com a matéria já dada e o essencial das notas definidas, os alunos e as alunas apresentam à turma os seus PPF, em que andaram a trabalhar (autonomamente, mas com a minha supervisão) ao longo do ano.

É por tudo isto, cara amiga e caro amigo, que eu posso arriscar imenso e dizer: NINGUÉM VAI CHUMBAR A FILOSOFIA!

Lá para junho conto como foi 😉

Obrigado pela paciência.

 

Carlos Café”