terça-feira, 28 de junho de 2016

Argumentos contra e a favor do chumbo


Este pequeno texto surge a propósito de discussões como a que vê AQUI e AQUI
A medida para avaliar a aprendizagem dos alunos é a classificação final. Supostamente o chumbo permite, em teoria, repetir as aprendizagens para que estas se revelem eficazes. Vou admitir que este princípio está correto. É assim que aprendemos as tarefas mais básicas desde pequenos. Mas a realidade nas escolas parece mostrar outros indicadores, a saber, que o chumbo muitas das vezes, senão mesmo na maioria, não resolve os problemas de aprendizagem e chega a agravá-los. Assim nasce a discussão entre os que defendem o chumbo e os que, na outra margem, defendem que o chumbo só em casos excecionais deve ser aplicado. Vou aqui analisar, não de forma exaustiva, apenas um argumento para cada lado da discussão.

Argumento a favor do chumbo – o argumento do laxismo
Este argumento baseia-se no premissa de que passar alunos sem saber produz uma atitude de laxismo da parte dos mesmos, pelo que é de concluir que os alunos devem chumbar. O argumento formalizado ficaria assim:

(p1) Se passarmos os alunos sem saber, eles vão achar que a escola não passa de um lugar de lazer
(p2) mas a escola não é somente um lugar de lazer
(c) Logo, não se deve passar alunos sem saber

Este parece ser o principal argumento contra o chumbo. Acontece que as premissas são muitíssimo discutíveis, o que faz com que o argumento, apesar de ser logicamente válido, daí não se segue que seja bom, isto se conseguirmos mostrar que pelo menos uma das premissas é falsa. Ao mesmo tempo as premissas parecem conter algum elemento de verdade. Resta, portanto, questionar se podemos instituir o chumbo como medida de aprendizagem, apenas com meias verdades? Mas como mostrar que as premissas são falsas? A (p1) é parcialmente falsa se considerarmos que a condição de aprendizagem de um aluno não depende apenas do seu esforço individual. Sou tentado a defender que o esforço será sempre o melhor meio para obter resultados e que sem ele, resultado algum será meritório se for positivo. No entanto, de que depende, afinal, o sucesso de um aluno? Depende, como sabemos hoje, de um conjunto de fatores sociais, económicos e eventualmente também biológicos. Acontece que alunos mais jovens parecem não ser de todo responsáveis pelo meio social em que vivem, pela sua própria biologia e também pela sua condição económica. Se isto for verdade, estamos a chumbar alunos, não em detrimento da sua responsabilidade ou do seu laxismo, mas por fatores que ele não domina de todo. Será isso justo? Neste caso, o que a escola indica ao aluno não é que ele não seja capaz por si mesmo, mas que aquilo que a escola lhe pede, não está em conformidade com o seu contexto. Mas como pode o aluno mudar o seu contexto? A verdade é que não pode e somente um número muito reduzido de alunos vão conseguir ultrapassar as dificuldades contextuais. Nesse caso a escola falha o seu objetivo, que é fazer com que aqueles que não possuem meios de aprendizagem venham a obtê-los na escola. E, por conseguinte, a escola acentua as assimetrias sociais e económicas. Parece que nesta condição os alunos apenas ingressam na escola para que esta lhes passe um certificado pela sua condição social e biológica da qual não são grandemente responsáveis.  
A (p2) parece ser menos problemática, ainda que o conceito de lazer possa ser discutível. Mas não me parece necessário entrar por aí. Creio ter mostrado as insuficiências do argumento apenas derrotando a (p1).


Argumento contra o chumbo – o argumento da ineficácia
O argumento principal contra o chumbo baseia-se na premissa de que chumbar não produz melhores efeitos, isto é, que a esmagadora maioria dos alunos que chumbam, não revelam futuramente melhores resultados por terem chumbado. Assim, poderíamos formalizar o argumento mais ou menos deste modo:

(p1) se chumbar alunos é eficaz então os alunos que chumbam produzem melhores resultados
(p2) mas os alunos que chumbam não produzem melhores resultados
(c) logo, chumbar alunos é ineficaz

Mais uma vez, formalmente o argumento é válido. Segue-se que, se as premissas forem verdadeiras, a conclusão também o será. Mas serão as premissas verdadeiras? Já mostramos na análise do argumento a favor do chumbo que os dados têm revelado que chumbar não produz melhores resultados. E se tal for verdadeiro (não possuo dados concretos para analisar com rigor científico o valor de verdade da premissa), isto é, se for verdade que chumbar alunos não produz melhores resultados, então, racionalmente, temos de procurar outras respostas como medidas de aprendizagem. E onde é que elas estão? Na minha opinião, estas respostas residem em dois fatores principais:
1.      Programas de ensino têm de ser reformados – os programas de ensino, em regra, têm uma página de atividades e estratégias de ensino para cada 10 de conteúdos. Ora, isto transforma a esmagadora maioria das aulas numa espécie de “debitadora de sabedoria”. O que é que isto quer dizer? Se o professor se vê a braços com um extenso programa de conteúdos, cheio de pormenores, a sua preocupação central será o cumprimento do programa, ensinando-o com a maior correção possível. Talvez por isso em 20 anos de ensino tenha ouvido muito na sala de professores coisas como “em que parte do programa vais?”. Mas raramente ou mesmo nunca ouvi qualquer coisa como “os teus alunos estão a aprender o que tens para lhes ensinar?”. Isto acontece precisamente na medida em que a confiança no ensino é depositada no que o professor tem de ensinar e não tanto no modo como o aluno aprende. O aluno passa a ser muito mais passivo na sua aprendizagem. As recentes reclamações de associações de professores de matemática em relação aos programas parece vir neste sentido. Ou seja, muitos conteúdos para ensinar, pouco tempo para aprender. A forma mais simples e economicamente mais favorável de resolver isto é inverter a tendência dos programas de ensino. Como? Invertendo a formula de “uma página de estratégias para a cada 10 de conteúdos”, para “uma página de conteúdos para cada 10 de estratégias”. Isto permitiria aos professores de mais tempo para que os alunos pratiquem o que aprendem. Ou seja, para que aprendam os conteúdos e aprendam a aprendê-los, que é coisa raramente vista pelo menos no sistema de ensino português. A matemática mais uma vez aparece como disciplina exemplar. Como há muitos conteúdos a desenvolver, os alunos não chegam a praticar o necessário nas aulas. Por isso pagam explicações privadas para que passem tempo a fazer o que não fazem nas aulas, a praticar.
2.      Por outro lado há também um outro fator que reforça esta minha ideia. Hoje em dia o professor já não o único meio de acesso ao conhecimento para os alunos. A internet mudou a forma como acedemos ao conhecimento. O que não falta são meios de aprendizagem através das novas tecnologias.  Os alunos têm acesso a livros, resumos, testes, exames, etc. sem ter de esperar pelo professor como única fonte de conhecimento. A autoaprendizagem é uma realidade claramente possível nos nossos dias. Isto porque o acesso ao conhecimento é muitíssimo mais universal. Ora, esta realidade muda o papel do professor que passa a ser mais um orientador no modo como se aprende e não como o transmissor em exclusividade do conhecimento. Resultado disto? Sobra mais tempo para praticar, para treinar.
3.      As escolas precisam de mais meios – assistimos a um discurso sobre economia que tem tanto de interessante como de paradoxal. Por todo o lado representantes políticos e económicos defendem o empreendedorismo, que o investimento é o fator mais determinante no sucesso de uma economia. As empresas que mais investem são as que mais sobrevivem às intempéries económicas. Então não se percebe a razão pela qual o discurso em ensino e educação é exatamente o contrário, ou seja, que “fazemos mais com menos”, que “quem ensina 10 alunos também ensina 30”, etc. Mas que investimentos precisamos mais em educação? Principalmente o investimento no tempo que os professores dispõem para acompanhar as aprendizagens. Os professores precisam de tempo para poderem ponderar avaliações para além dos testes. Um professor que tenha uma média de 100 alunos e que peça um trabalho escrito de 2 páginas (no secundário, por exemplo) fica com 200 páginas para corrigir (fora testes e todos os outros trabalhos burocráticos). Os testes e exames são instrumentos úteis às aprendizagens. Mas não têm de ser os mais importantes. Quando trabalhei durante quatro anos em exclusivo numa escola profissional privada foi isso que percebi. Os alunos não eram nem mais nem menos capazes que os outros. Mas tinham mais sucesso, apesar de uma boa maioria ter alguma história de insucesso no ensino regular. A diferença é que, sendo a avaliação modular, um módulo podia avaliar-se com uma exposição oral e um outro com um teste escrito e ainda um outro com um trabalho prático e de grupo. Por outro lado as avaliações tendiam a ser realizadas em espaços de tempo mais curtos.

A discussão que aqui proponho está longe de ter um fim. Inclino-me a pensar que chumbar não é a melhor resposta da escola. E isto porque de todas as estratégias possíveis, o chumbo é aquela que melhor conheço. No sistema de ensino português ( e provavelmente da maioria dos países) não são testadas outras respostas ao problema do insucesso. É obvio que se levantam inúmeros problemas quando se fala em experimentar soluções quando estamos a falar da vida das pessoas. Mas precisamente por isso valeria a pena arriscar um pouco mais. Isto porque acaso se descubra um dia que a figura do chumbo é inadequada, a verdade é que passamos séculos de história a recorrer ao chumbo sem sequer testar modelos alternativos. Quantas vidas se prejudicou? Em educação requer-se verdade e honestidade. Mas uma e outra não vivem pacificamente sem algum risco. Porque educar não é um lugar seguro. 

1 comentário:

Anónimo disse...

Esse argumento a favor do chumbo é um espantalho, dirão alguns, porque passar os alunos que não aprendem o que é suposto é injustiçar os que aprendem o que é suposto. Ou seja, se uns e outros passam, então de que forma é que aqueles que aprendem têm o que merecem?

Não pode ser o caso que eles têm o que merecem simplesmente porque passam de ano, pois, sem chumbos, os que não aprendem também passam e certamente não merecem o mesmo.
Responder que obter o conhecimento é uma recompensa suficiente não parece convincente, porque a escola não dá apenas conhecimento, mas tem também outras consequências, e.g., sociais, económicas, etc.

E por isso, sem os chumbos merecidos, aqueles que cumpriram o que lhes era exigido estariam em muitas coisas em pé de igualdade com o que não cumpriram o que lhes era exigido (por exemplo, ter um canudo com o 12º, os pais não terem de gastar mais dinheiro para os filhos estarem no mesmo ano, etc.). Ou seja, seria injusto para eles.

Ricardo