Dado que estamos prestes a iniciar um novo ano letivo nada melhor do que aproveitar o tempo e partilhar algumas dicas de ensino. Um destes dias via uma série na Netflix com um autor americano que tinha como tarefa convencer políticos a melhorar as condições das cidades de modo a garantir mais saúde e bem-estar e aumentar a longevidade das pessoas. A determinado momento o autor refere que nos EUA tem de se arranjar sempre um argumento pela economia. Se for economicamente viável, pode ser aceite. Caso contrário está condenado ao fracasso. Pouco depois quando questionado sobre como as pessoas vão aderir a novos programas que visem a sua longevidade, o autor responde de um modo curioso. “É preciso ser sexy”. Pois eu acredito que a apresentação de uma disciplina como a filosofia para novos alunos tem de ser do mesmo modo. É o primeiro passo. E não é nada fácil consegui-lo, principalmente quando tem de se repetir a dose entre várias turmas, com múltiplos níveis de ensino e disciplinas com que se desdobra um dia de trabalho de um professor. E eu próprio não tenho resposta a todas essas barreiras. Afinal de contas estou no mesmo barco. Acontece que o trabalho pode ser divertido e é nesse sentido que aqui escrevo estas linhas, pois o trabalho que faço, ensinar filosofia, ainda me diverte. Pensem que passamos muito tempo das nossas vidas dentro de uma escola. Porque não aproveitar? Estas sugestões são aplicáveis tanto no 10º como no 11º, embora estejam mais pensadas para o 10º ano. E é necessário pensar sempre que vamos estar pelo menos 9 meses com aqueles alunos, pelo que de nada vale se a surpresa inicial não for conduzida nos meses seguintes ao que pretendemos. Esperem!!! Eu escrevi “9 meses”? Pois... isto.... não vos lembra nada? A Maiêutica socrática? É isso colegas. Estamos em trabalho de parto após estes 9 meses e nós, os professores, somos os parteiros (as). E o trabalho de parto é exigente e não são todos iguais. Uns são mais fáceis e outros mais difíceis.
Vamos à obra? Vou concentrar-me em 2 ou 3 ideias simples para uma primeira aula. E os exemplos que vou aqui dar foram todos usados por mim em anos anteriores, uns mais bem-sucedidos que outros.
Primeiro que tudo: pensem no Plano B. Chego mesmo a pensar no Plano B antes do A. “E se isto não funciona?...”, “bem... avanço então por ali”. E não pensem que mesmo ao fim de quase 30 anos a ensinar filosofia não fico ocasionalmente “encravado” sem saber bem que direção tomar. Faz parte. A menos que optem pelo seguro que é chegar à sala e cumprir apenas com o plano, sem contarem que vocês são professores e professoras, sem contar sequer que amam aquilo que fazem, sem se emocionarem pelo facto de nós mesmos, que estamos na filosofia, por vezes nos aborrecermos com ela e sentimos o vazio que qualquer ser que se questione tem de sentir ocasionalmente.
Então e o que fazer? E os exemplos? Está bem, está bem. Vamos a isso.
Exemplo 1: a gravidade é uma treta
Há uns anos entrei na sala de aula na primeira aula com um prato de plástico, a habitual garrafa de água e uma maça. Nunca tinha visto aqueles alunos na vida. Sem lhes dirigir a palavra, peguei no prato com uma mão e coloquei a maça bem no meio. Depois peguei com a outra mão na garrafa de água aberta e fui despejando água por cima da maçã, a ponto de a água transbordar a pequena beira do prato e cair ao chão. Os alunos pávidos a observar o que aquele doido estava a fazer. No final ouviram a minha voz pela primeira vez quando disse apenas uma frase: “Acho que acabei de provar que a terra é plana”. Foram vários os teens que irritados me contrariaram com os argumentos que conhecemos. “É a lei da gravidade?”E eu apenas fui colando questões: “O que é isso da lei da gravidade?”, “a lei da gravidade vê-se?”, “Mas como sabem que existe se nunca a viram?”, “como conseguem provar que existe tal lei?”, “porque acreditam nos cientistas e naquilo que vos disseram os professores?”, “porque não acreditam no que acabei de vos mostrar?”.
Exemplo 2: quando as cadeiras são cebolas
Estes exemplos não estão aqui expostos por ordem cronológica pois este da cadeira inventei-o logo a seguir ao estágio. Raramente repito os exemplos. A razão? Farto-me deles e deixo de lhes achar piada. Numa boa discussão eu próprio enquanto professor de filosofia devo, acho eu, manter uma boa dose de ingenuidade e uma ainda maior de ignorância. Afinal, quero expor problemas e não respostas a problemas. Quero, queremos, apenas mostrar que as coisas são um pouco mais difíceis do que pensamos. E o exemplo? Ah bom! Entro na sala e mais uma vez sem me apresentar e coloco uma cadeira vazia em cima da minha secretária e faço apenas uma questão: “O que é isto?”. Obviamente os alunos mais corajosos respondem que é uma cadeira. “Mas se lhe retirar as pernas continua a ser uma cadeira?”, “E se lhe retirar o encosto?”, “E se a deitar estragada ao lixo?”. Já estão a ver, não é? Já temos a pancadaria montada na sala de aula, pois neste momento já há divisões, aqueles que acham que a cadeira mesmo no lixo sem pernas e encosto continua a ser cadeira e aqueles que acham que a cadeira deixou de o ser para passar a ser lixo. Usei este exemplo durante uns bons anos e muitos eram os alunos que nunca esqueciam esta primeira aula. Mesmo aqueles que se entediaram com o programa que temos de seguir (eu próprio me entedio bastante), continuavam a manifestar respeito pela disciplina que transformava cadeiras em cebolas. Sim, pois, uma vez que a determinado momento eu convidava os alunos a chamarem cebolas às cadeiras e na aula seguinte a primeira coisa que lhes dizia era: “Vá, sentem-se nas cebolas que a aula já começou”.
Exemplo 3: o universo nunca existiu
Poderia aqui relatar muitos mais exemplos. Uns não me recordo, outros não são tão expressivos. Mas o professor é também um criador de conteúdos, um inventor de roupagens para os programas de ensino. Sem esta criatividade não sei como encarar o ensino senão como uma tarefa que se executa sem gosto. Na primeira aula levanto apenas uma questão “O que é que vos garante que o universo não começou a existir há 5 minutos?”. Espero que imaginem a perplexidade que se gera numa sala de aula com uma questão destas.
O desafio principal
Todos os anos costumo pensar nos meus objetivos e quais os principais desafios. Embora compreenda costuma-me bastante chegar todo enérgico à escola e ter de enfrentar todo um lado menos positivo que se resume a burocracias enormes, reuniões fora de horas, problemas profissionais de toda a ordem, gente a queixar-se ao mesmo tempo que insiste que amam o que fazem, etc.. cada um é como cada qual. Da minha parte e com a experiência que já tenho sugiro que os professores façam este exercício que parece ingénuo, mas é de uma eficácia tremenda. Escrevem 2 ou 3 objetivos para o ano letivo. Devem ser coisas que não vos envolve apenas a vocês, mas ao mesmo tempo que possam contribuir para que algo mude. Por exemplo não adianta de nada pensar como objetivo “melhorar as políticas educativas”, pois isso não vai acontecer numa década que fará num ano. Mas pensem em objetivos como este “fazer com que o máximo de alunos do 10º ano goste da disciplina”. Não adianta de nada escreverem nos projetos docente coisas articuladas com o projeto educativo da escola se vocês não sentirem que é isso que desejam. E não há problema nisto, pois qualquer projeto educativo tem escrito aquilo que qualquer professor motivado deseja que é o sucesso dos alunos.
Já trabalhei com os meus objetivos (sempre e apenas 2 ou 3) de várias maneiras. Já os escrevi e meti dentro de um envelope que abria no final do 1º e 2º período para pensar se os estava a cumprir ou não e no caso de não os cumprir o que podia mudar. Já os escrevi junto ao horário para os ler todos os dias. Já fiz muitos e variados testes e nem sempre funcionam. Por exemplo sinto que de alguma maneira o ano que passou ficou bastante aquém dos meus objetivos. Nunca revelei os objetivos publicamente, mas vou neste momento revelar um dos meus objetivos para este ano que serve aqui apenas como exemplo do que exponho: “Trabalhar o foco dos alunos”. Já li e reli dezenas de coisas, desde artigos a livros completos (quem me segue nas redes sociais sabe que o faço) sobre a desatenção, a falta de foco, etc. Isto ao mesmo tempo que sinto que as minhas palavras não conseguem atingir os coraçõezinhos dos adolescentes e lá habitarem mais que 2 ou 3 minutos. Até há uns anos eu sentia que ficava ali eco. Agora nem por isso. Este meu sentimento tem exigido de mim duas coisas principais: a primeira que me informe, lendo artigos da especialidade, procurando formação adequada. A segunda, uma autoanálise. Eu estou mais velho e naturalmente mais rotinado. Até que ponto eu mesmo estou num ponto de viragem e a minha rotina afeta a minha perceção da realidade? Não quero aqui fazer dissertações sobre o problema da falta de foco das novas gerações, mas é do que mais se fala. E honestamente eu já conheço o problema. Só me interessa, enquanto professor, ajudar a resolvê-lo. Não me sinto confortável com a ideia de chegar ao final do 1º período e nas reuniões atribuir classificações baixas com justificações como “eles não me ouvem”, “não conseguem estar atentos e quietos 5 minutos”. Isto é obviamente verdade. Só que tenho de ter a consciência que é com ele que vou ter de lidar. E claro que é também no seio da nossa comunidade de trabalho que devemos resolvê-lo pois ninguém o vai resolver isoladamente. Contudo, é um dos meus objetivos e o principal deste ano que agora se vai iniciar: trabalhar o foco. Até porque sendo que qualquer disciplina e aprendizagem exige foco, a filosofia neste aspeto tem uma característica especial: não sendo experimental só se faz com o cérebro. E um cérebro desfocado nada faz, muito menos pensar. E, sublinho, trabalharei com os meus colegas de escola, de grupo e conselhos de turma, para levar avante este meu objetivo. O caminho é longo e são 9 meses até ao parto.
Espero que estas sugestões simples e exemplos possam ser sexy, que possam estimular para que o ano letivo seja especial, pois a vida tem mais sentido se ela tiver um propósito e ensinar é um propósito para quem gosta desta profissão.
Bom ano a todos
Nota: as imagens usadas foram geradas por IA